A religião, nomeadamente o fundamentalismo islâmico, é um parâmetro não despiciendo em todo o conflito - a Etiópia é o único país de maioria cristã na zona - que tem redesenhado em sangue as fronteiras nesta região assolada por uma seca devastadora, causada pelo desflorestamento e pela erosão do solo. Religião que está igualmente subjacente à alteração da influência soviética na Somália por uma influência norte-americana.
De facto, a Somália subsistiu durante a Guerra Fria com ajuda soviética, que apoiou a ditadura marxista corânica de Barre até 1977, data da guerra do Ogaden, altura em que passou para a esfera de influência dos americanos.
Para além de outros factores que determinaram esta alteração de campo da Somália no xadrez da Guerra Fria, esta mudança pode ser traçada à conversão ao cristianismo de Siad Barre, o ditador brutal da Somália entre 1969 e 1991. Por volta desta data, Barre passou a pertencer a uma célula de oração da Familia ou Fellowship, que integrava senadores - nomeadamente o senador republicano Chuck Grassley - e generais norte-americanos que canalizaram apoio militar para o «irmão em Cristo» somali.
De facto, durante a administração Reagan floresceram as células de «Deus» instituidas por Abraham Vereide, uma rede de poder semi-clandestina em que os membros são generais, senadores, pregadores e executivos de grandes empresas, cujo objectivo é a construção do Reino de Deus na Terra com capital em Washington*.
A «Worldwide Spiritual Offensive» destas células dedica-se à expansão mundial do poder americano como forma de expansão do Evangelho apoiando, por exemplo e para além de Barre, Carlos Eugenios Vides Casanova em El Salvador e os esquadrões de morte salvadorenhos. Aqueles a que muitos chamam a Mafia cristã foram ainda muito activos no combate à ameaça comunista apoiando ditadores como o marechal Artur da Costa e Silva no Brasil, o general Suharto na Indonésia, e o general Gustavo Alvarez Martinez nas Honduras.
No caso da Somália, este apoio à ditadura militar de Barre não conseguiu superar o fracasso na guerra de Ogaden, no início de 1978. Por outro lado, a popularidade cada vez maior dos movimentos armados da oposição no Norte e depois no Sul da Somália, no fim do anos 80 - que ditaram a queda da ditadura em 1991 e a ascensão dos «senhores da guerra» - explica-se por uma série de factores que a Família, pouco preocupada com questões «menores», não teve em devida conta: subemprego exponencial nos meios urbanos, queda brusca da produção industrial, subsequente à retirada dos cooperantes técnicos do bloco de Leste, e implosão económica, caracterizada por um endividamento internacional massivo.
Os mesmos factores tornaram pasto fértil para o fundamentalismo islâmico uma Somália predominantemente muçulmana sunita e desde 1991 imersa em guerra civil. Desde Junho a Dezembro de 2006, data da ofensiva etíope, grande parte do território somali, a capital Mogadíscio inclusive, esteve sob controle da guerrilha islâmica sob o nome «União dos Tribunais Islâmicos», que impusera a lei islâmica no território controlado.
*Sam Brownback, o republicano que os teocratas gostariam ter na presidência dos Estados Unidos em 2008 - que se converteu ao catolicismo em 2002 através do Opus Dei-, pertence a uma destas células, com a qual se reúne para rezar todas as terças-feiras. As regras da «Família» proibem que se divulgue os nomes dos irmãos, mas pensa-se incluir esta célula, entre outros teocratas congressistas, o senador Tom Coburn, conhecido por pedir a pena de morte para os «abortistas».
Como escreve Jeff Sharlet neste indispensável artigo da Roling Stone, Brownback e os seus «irmãos» são os guardadores de promessas de Deus, os defensores por «ordem divina» do casamento e dos cidadãos em estado embrionário e fetal. São os eleitos que assumiram o amor paradoxal do Cristo de Mateus 10:34 «Eu não vim para vos trazer a paz mas sim a espada».
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11 comentários:
estou absolutamente banzado com este post. não sabia da existência desta organização sinistra mas faz todo o sentido.
os artigos da Harper, da Roling Stone, do The revealer, e o da Insider são de fazer cair os queixos.
quando estive na Austrália não percebi o tal National Prayer Breakfast, que alastrou para lá
agora que sabia como procurar já percebi:
"The growing influence of conservative religion on Australian politics."
GOD AT WORK IN CANBERRA NACL DINNER. NATIONAL PRAYER BREAKFAST, NATIONAL PRAYER COUNCIL NOV '06
sinistro! muito sinistro!
O que este post da Palmira mostra é algo que as pessoas por vezes não compreendem. O debate religião/ciência é apenas uma máscara. Se fosse um debate a sério, as pessoas quereriam informar-se sobre filosofia da religião e sobre filosofia da ciência, quereriam ler, estudar, e não haveria tantos azedumes no debate.
O verdadeiro debate é político. Algumas pessoas não se sentem bem com a sociedade livre e aberta em que vivemos, querem uma sociedade de Talibã. Há muita gente que se sente incomodada com a liberdade contemporânea -- depois arrajam desculpas de mau pagador, falam da tecnocracia, da liberdade de ensino religioso, etc., mas isto é só uma máscara. Estas pessoas querem realmente é meter os ateus na cadeia. Ponto.
Segundo um simpatizante do Comunhão e Libertação não querem pôr na cadeia os ateus; só os querem expulsar de Portugal.
Embora outro lamentasse que a Inquisição não tivesse sido mais eficiente nos churrascos. E dissesse que o que fazia falta era outra Inquisição...
Ah! Isto foi escrito por alguns fanáticos católicos nas caixas de comentários do DA.
Meus caros
Eles podem pretender tudo. Até expulsar as suas próprias mães. O que eles não entendem é que nem com as fogueiras ateadas em nome da purificação conseguiram fosse o que fosse. A não ser o teram ficado na historia da ignominia. Mas isso eles não entendem. O que eles entendem é que os não compreendem e devia ser sobre esse aspecto que deveriam meditar durante a curta existência. E nunca consegui entender essa vontade indomável de tudo ser feito à sua imagem e pensamento. sinceramente não consigo entender.
Acho que atribuir um papel importante à religião no conflito no Corno de África é um disparate.
A razão fundamental do conflito é uma razão ecológica: luta por recursos escassos, num ambiente de população demasiadamente grande. É a mesma causa, ao fim e ao cabo, que nas chacinas no Ruanda.
A religião fornece desculpas. As pessoas dizem que combatem por motivos religiosos. Na verdade, no fundo no fundo combatem porque há uma terra com homens a mais e recursos a menos.
Em terra onde não há pão, todos guerreiam e ninguém tem razão.
Luís Lavoura
Claro que o Luís lavoura acha um disparate que a religião tenha alguma coisa com guerra; da mesma forma que achava (ainda acha?) um disparate proibir-se a mutilação genital feminina.
muitas confusões entre religião e fundamentalismo. enfim...a religião não parece ser uma coisa intrinsecamente má, apenas alguns usos religiosos é que podem ser valorizados como maus, tal como o podem ser alguns usos dos resultados científicos. acho que confudir as duas coisas é confundir a bota com a perdigota. inté
Mesmo admitindo que este post tenha uma componente especulativa muita elevada, o que sobra, já é só por si extremamente relevante.
Há de facto quem não tenha esquecido que ao longo dos tempos foi sempre pela fé que o homem melhor foi controlado. Algumas coisas sabía, outras suspeitava mas outras !...
Um post para ter em todas suas correlações. Bravo.
Cara Palmira
Nas sociedades liberais democratas, existem umas coisinhas chamadas lobbies. A "Máfia" a que se refere é um deles. A cruz vermelha internacional é outra, mesmo depois da cruz ter sido retirada. (ou seja, não são mafias, mas organizações ideologicas com propositos conhecidos e explicitados) As inumeras missoes do Vaticano também poderiam ser entendidas desta forma. Só que estas e outras missões não pretenderam a instituição do mais vil totalitarismo (vide Sudão, e o que andam os Janjaweed aos cristãos) Interessante: foi a corrupção da mafia cristã que criou as condições para o islamismo fundamentalista. A Etiopia esteve sujeita, durante anos, às mais flagrantes violações da sua integridade territorial por islamicos fundamentalistas da Somália. A ascensão ao poder pelos fundamentalistas foi, em grande parte, patrocinada por inumeros estados arabes, do golfo. O cristianismo já há muito que aprendeu a conviver com a divisão de poderes. O islamismo não. A missão civilizacional cristã, que foi em tempos perniciosa sem dúvida, já há muito que conteve os seus impetos violentos. Todos os outros que cita-honduras, el salvador etc-foram casos emblemáticos da guerra "fria".(a religião era usada para combater o comunismo) As FARC marxistas colombianas não são conhecidas pelas suas boas maneiras. Se procura por inocentes impolutos aqui, desengane-se. Hoje, muitos dos marxistas da guerra fria são politicos democraticamente eleitos. OS EUA não os depôs, nem tentou, tanto quanto sei.
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