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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

"Experimenter". Um filme sobre os estudos de Stanley Milgram

Na introdução do capítulo Influência social, do livro Psicologia social, Leonel Garcia-Marques coloca esta questão:
"Se estivesse a participar numa experiência de aprendizagem por referência de aprendizagem, chegaria ao ponto de punir os erros de alguém com choques eléctricos que pusessem em risco a vida dessa pessoa? Nunca, pois não? Eu, se fosse a si não estaria tão seguro, e sabe porquê? Porque grande parte dos sujeitos que participaram em experiências de influência social fizeram coisas assim" (p. 201).
Imagem retirada daqui.
Mais adiante, no ponto 4 do mesmo capítulo, intitulado O respeitinho é muito bonito: as experiências de Milgram, Garcia-Marques explica as famosas experiências de Stanley Milgram (imagem ao lado) sobre a obediência à autoridade, publicadas em 1963 e que são objecto de um filme americano - Experimenter - recentemente estreado (imagem  abaixo).

Justifica-se a atenção passado mais de meio século, pois elas estão entre as mais amplamente discutidas dentro e fora da psicologia. "Foram discutidas em igrejas e associações cívicas, na comunicação social e em inúmeros livros dirigidos ao grande público. As filmagens das experiências foram dos mais vendidos filmes da psicologia científica e até surgiram excertos delas em filme de Hollywood" (p. 229).

Imagem retirada daqui
O psicólogo social que citamos, professor da Universidade de Lisboa, questiona: "porquê tão grande sucesso?". E aponta várias razões, destaco duas: são "surpreendentes e assustadoras" e "parecem comparáveis a acontecimentos terríveis da história recente da humanidade". Explica:

[Segundo Milgram], "a obediência é um fenómeno tanto comum como útil (...) útil porque garante o funcionamento rápido e eficaz das nossas complexas estruturas sociais (...) mas também representa um perigo para a democraticidade e humanidade da nossa civilização (...). Milgram pretendeu estudar em laboratório até onde são capazes de ir pessoas normais que se limitam a obedecer" (p. 229). E foi assim que aconteceu há 53 anos na Universidade de Yale:
"... participaram quarenta sujeitos com idades compreendidas entre os vinte e os cinquenta anos, que se apresentaram em resposta a um anúncio de jornal. As suas profissões iam desde carteiro e professor até ao engenheiro e vendedor (...).
Um sujeito crítico e uma «vítima» (comparsa do investigador) recebiam a seguinte explicação: «Presentemente sabemos muito pouco acerca do efeito de punição na aprendizagem, por se não terem realizado praticamente nenhuns estudos verdadeiramente científicos com sujeitos humanos. Por isso, estamos a juntar uma série de adultos com diferentes ocupações e idades, e estamos a pedir a alguns deles que sejam professores e a outros que sejam aprendizes. Queremos saber que efeito pessoas diferentes têm umas nas outras, enquanto professores e aprendizes, e qual é o efeito que a punição terá nesta situação. Portanto, pedirei a um de vós para ser professor e a outro para ser aprendiz. Alguém tem alguma preferência?»
O sujeito crítico e o comparsa tiravam à sorte (...) e ao primeiro calhava sempre ser professor (...) eram levados para uma sala (...) e o aprendiz era atado a uma «cadeira eléctrica»
Muito sumariamente, numa encenação criada, era dito ao «professor que seriam dadas tarefas ao «aprendiz» (por exemplo, memorização de pares de palavras) e, caso este respondesse errado, deveria aplicar-lhe choques eléctricos de intensidade crescente, podendo chegar aos que faria perigar a vida. O «professor» teria de operar numa máquina com interruptores organizados por ordem de voltagem.

A partir da aplicação de um certo patamar de «voltagem», os «professores» tendiam a protestar, recusando-se alguns a continuar, mas eram estimulados pelo investigador. Também queriam saber, caso acontecesse alguma coisa de mal ao «aprendiz», de quem era a responsabilidade, ao que o investigador respondia que seria inteiramente sua, deles, «professores». Ainda assim, muitos continuavam (trinta e cinco em quarenta), chegando a «aplicar» a voltagem capaz de matar.

A observação (directa e em vídeo) do comportamento dos sujeitos revelou uma tensão progressivamente mais acentuada: "suavam, tremiam, riam nervosamente, mordiam os lábios e murmuravam continuamente. Muitas vezes diziam que tinham de parar e... continuavam" (p.223).

Milgram não se ficou por esta experiência, fez muitas outras (sobretudo variações desta), das quais tirou diversas conclusões que em muito contribuíram para assombrar a imagem que temos da condição humana.
Uma delas é a seguinte (as palavras são do próprio investigador, que não ficou indiferente a essas mesmas conclusões): "uma proporção substancial de pessoas faz o que lhe mandam, qualquer que seja o conteúdo do acto e sem entraves de consciência, desde que considerem que o comando é emitido por uma autoridade legítima" (p. 235).
Apesar dos problemas éticos que, desde o início, esta experiência levantou pelo tipo de manipulação que envolveu (submetida agora a uma comissão de ética em investigação, certamente não seria autorizada), vale a pena (voltar a) pensar nela, no caso, pela mão do cinema.

Afinal, em certos aspectos a arte, pela liberdade interpretativa que lhe é característica, pode explorar aspectos do humano que a ciência, com todas as suas (necessárias) amarras de objectividade não pode.

Referência bibliográficaGarcia-Marques, L. (1997). Influência social. In J. Vala & M. B. Monteiro. Psicologia social (pp. 201-257). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.


terça-feira, 30 de abril de 2013

UMA VISITA POLITICAMENTE INCORRECTA AO CÉREBRO HUMANO

Recensão publicada primeiramente na imprensa regional.

«Será a mente humana capaz de descobrir qualquer coisa que a transcenda» questiona o eminente neurocientista Alexandre Castro Caldas na introdução do seu mais recente livro “Uma visita POLITICAMENTE INCORRECTA ao cérebro humano”.
Publicado em Fevereiro de 2013 pela editora Guerra & Paz, este livro apresenta e desvenda as novidades do conhecimento que as neurociências têm alcançado sobre esse órgão, o cérebro, que o leitor está a usar para entender o que está a ler agora mesmo.

«Quem somos então, o que somos nós, o que é que o cérebro e as suas funções?» pergunta-nos Alexandre Castro Caldas, para logo responder que as “páginas deste livro não pretendem ser resposta, mas pretendem abrir portas para a reflexão”.

No panorama actual da literatura de divulgação científica portuguesa em geral, e das neurociências em particular, este livro destaca-se pela sua actualidade científica, pela sua simplicidade rigorosa e pela sua utilidade para o leitor que com ele se compreende melhor.

Os diversos casos clínicos que ajudam a entender melhor como o nosso cérebro funciona, são apresentados despedidos de jargões técnicos, para que qualquer um de nós os entenda e logo entenda melhor como o seu próprio cérebro funciona. As notas e as referências bibliografias são dispensadas nesta visita POLITICAMENTE INCORRECTA ao cérebro humano, o que torna fluida a leitura deste livro. 


A propósito do autor, diga-se que Alexandre Castro Caldas começou a sua vastíssima e relevante carreira de investigação científica de excelência com António Damásio, em 1970, e que ficou a dirigir o Laboratório de Estudos de Linguagem, quando, em 1975, Damásio saiu de Portugal.

Mas voltemos ao livro. Está estruturado em dez capítulos que o leitor pode ler pela ordem que entender, eventualmente movido pela sua maior curiosidade, ou interesse por um dado aspecto do nosso cérebro.
No 1.º capítulo “reflecte-se sobre a forma como acreditamos nas coisas”.
No 2.º discute-se como a consciência humana pode ter começado “num sonho”.
Conhece-te a ti mesmo” é o título do 3.º capítulo, no qual de descreve “como o cérebro interage com o sensível”.
No 4.º, intitulado “quem fui eu, quem sou eu”, Castro Caldas discute a questão da identidade.
“Quem és tu? Que casa é esta”, intitula o 5º capítulo que apresenta casos em que o cérebro processa mal a informação sobre o que lhe está próximo, como sejam as pessoas da sua família e os locais que lhe são habituais.
O 6.º capítulo é dedicado a aspectos marcantes da personalidade: “quando se faz aquilo que se não quer fazer” e sobre “o livre-arbítrio”, levando-nos a reflectir sobre a questão da vontade própria.
Abordando aspectos anatómicos, mas funcionais, o 7.º capítulo apresenta ao leitor a realidade da “Dominância Cerebral” e discute-se sobre qual manda, se o hemisfério esquerdo se o direito e quando.
O género sexual e a sua influência sobre o cérebro, um “tema que tanto estimula a imaginação”, é tratado no 8.º capítulo.
Numa época em que vivemos sob a influência de uma nova e globalmente esmagadora tecnologia de informação, Castro Caldas descreve no 9.º capítulo como “Manter o cérebro em forma” numa aproximação aos desafios modernos da “interacção entre o natural e o artificial”.
Por fim, o 10.º capítulo, o qual, como os outros, pode ser lido em primeiro lugar: “Experiências de quase-morte” é o seu título e nele se desmistificam as fantasias, as ilusões geradas pelo cérebro sobre a memória de experiências traumáticas na “fronteira abrupta” entre a vida e a morte.

A leitura deste livro é uma experiência rica em que o autor nos ajuda a compreender melhor o mundo em que vivemos ao explicar à luz do conhecimento actual como é que o cérebro compreende e funciona no mundo em que vive.

António Piedade

terça-feira, 19 de junho de 2012

A inveja construtiva


Sentir inveja (construtiva) é bom para você!
Em recente trabalho (Pers. Soc. Psychol. Bull., June 2011, vol. 37, n.º 6, 784-795 ) refere-se que a inveja pode ser destrutiva – você acha que o sucesso de alguém que alcançou o que você queria não é merecido e deseja que aquela pessoa se dê mal. Já a inveja construtiva surge quando você vê o que os outros alcançam e fica motivado a buscar seus objetivos porque sente que “se outra pessoa conseguiu, você também consegue”. A inveja construtiva pode motivá-lo, torná-lo mais criativo e mais inteligente. A criatividade surge da observação (Journal of Personality and Social Psychology, Vol. 73(1), Jul. 1997, 91-103).

quinta-feira, 8 de março de 2012

"POEIRA DA ALMA": O FIM

Final do livro "Poeira da Alma", do psicólogo Nicholas Humphrey (na foto), que acaba de sair na Gradiva, n.º 193 da colecção Ciência Aberta:

"Estou quase a terminar. Mas estes últimos capítulos foram todos sobre a consciência humana e, como é evidente, uma teoria evolutiva não pode ocupar-se de uma única espécie. Assim, continuamos a ter de responder a perguntas sobre o modo como a consciência humana se relaciona com a de outros seres, passados e presentes.

Não apresento desculpas pelo facto de o tema dos últimos seis capítulos ter tido em grande medida a ver com os humanos. Não se trata apenas de chauvinismo de espécie da minha parte. Qualquer observador objectivo — como a nossa visitante de Andrómeda —, ao olhar para a história natural mais vasta da consciência no reino animal, não pode deixar de observar que a consciência humana é inigualável. Em vários aspectos óbvios, a consciência é mais importante para os humanos do que para qualquer outro animal. Desempenha um papel maior e mais complexo a moldar as suas vidas e relações. Na realidade, actualmente os humanos são a maior publicidade que se possa imaginar para a consciência.

Assim sendo, penso que é seguro pormos a hipótese de a consciência ter estado submetida a uma maior pressão da selecção natural nos humanos do que nos não-humanos. Por conseguinte, podemos imaginar que os humanos evoluíram e se tornaram mais conscientes do que qualquer outra espécie — essa consciência é mais saliente, está mais próxima da zona frontal das suas mentes. No entanto, devemos também supor que a consciência esteve submetida a qualquer tipo especial de pressão da selecção nos humanos? E, se assim foi, devemos supor que os humanos evoluíram não apenas para serem mais conscientes, mas para serem conscientes de uma maneira diferente — de modo que «como é» para um humano experienciar sensações é qualitativamente diferente de como é para outras espécies?

No final do capítulo 6, referi pela primeira vez a possibilidade de haver diferenças evolutivas de qualidade fenoménica em relação com a nossa tese de os seres humanos serem os únicos animais a recearem a sua própria morte. Escrevi que era uma questão fascinante saber se isso significaria que a consciência humana tinha sido impelida numa nova direcção capaz de remodelar o ipsundrum. Depois, nos capítulos subsequentes, explorámos outras áreas em que a tendência humana para reflectir no significado da consciência pudesse de novo ter exposto o ipsundrum a novas forças evolutivas. Assim, temos novas razões para pôr essa questão fascinante. E é chegada a altura de lhe dar a resposta, da melhor maneira que soubermos.

Parece haver dois cenários possíveis.

Por um lado, poder-se-ia dar o caso de a consciência fenoménica, tendo evoluído sob a influência de outros factores, tal como o simples amor à vida e o valor de ter um eu nuclear substancial, ter atingido um ponto alto muito antes de os seres humanos e a reflexão intelectual terem entrado em cena. Nesse caso, a qualidade da consciência já seria uma espécie de acessório — e hoje continuaria a ter aproximadamente o mesmo papel onde quer que exista consciência na Terra. Embora a consciência contribuísse para a sobrevivência humana de maneiras que nunca se verificaram com outros animais — e embora isto pudesse ter produzido modificações na maneira como os humanos têm acesso à consciência, como, por exemplo, quando sonham — não se teriam registado modificações na qualidade básica.

Por outro lado, pode ter-se dado o caso de os novos usos que os humanos faziam da consciência terem criado oportunidades para fazer o trabalho ainda melhor «aperfeiçoando » a qualidade da experiência fenoménica enquanto tal: especificamente, de modo a desencadear o medo do nada, a aumentar o sentimento de temor, a acentuar a solidão e a individualidade, a encorajar os pensamentos sobre a imortalidade, e assim sucessivamente. Nesse caso, o ipsundrum talvez tivesse sido remodelado repetidamente nas últimas fases da evolução humana, de modo a agora haver várias dimensões peculiarmente humanas para o «como é».

Que sabe até onde isto poderia ter chegado? Penso que devíamos pelo menos ter admitido a possibilidade de os humanos terem evoluído de modo a terem formas de experiência fenoménica radicalmente diferentes (e — quem sabe? — radicalmente mais maravilhosas) do que qualquer outro ser. Confesso que considero esta possibilidade tão preocupante quanto intrigante. Um dos consolos que os humanos encontram no facto de viverem no nicho da alma tem sido que, uma vez que o leitor reconhece que há outras pessoas igualmente conscientes e que partilham o mesmo mundo fenoménico, é-lhe fácil e é natural supor que o mesmo é válido para muitos animais não-humanos. Mas se isto não for assim, a cortina da separação existencial começa de novo a fechar-se à sua volta. O seu cão não gosta que lhe faça cócegas como imagina que ele gosta? A cotovia não se apercebe do seu canto glorioso? Preocupante ou não, não me parece que existam nenhumas boas razões para desvalorizar isto. Já referi que talvez haja mesmo motivos anatómicos para supor que as sensações nos seres humanos possuem características que não existem nos outros animais.

No entanto — chamem-me cobarde, se quiserem — sinto-me tentado a pensar que a verdade se encontra no meio. Ou seja, enquanto a experiência consciente é quase certamente mais rica, mais marcante ou mais pungente para os humanos do que para os nossos primos animais — mais verdadeiramente marteladora da alma, para retomar essa frase útil — ela continua a recorrer aos mesmos truques básicos. Assim, é possível reconhecer que as qualidades da consciência fenoménica, que surgiram muito cedo, continuam a ser as mesmas em toda a espécie consciente existente (ou a cientista de Andrómeda reconhecê-las-ia como sendo as mesmas, caso ela pudesse — como nós, cientistas terráqueos, ainda não podemos — fazer a comparação). Embora as diferenças entre humanos e não-humanos existam, não são tão grandes que tornem completamente inacessíveis as tentativas humanas de imaginar como é ser um animal.

Permitam-me que explique melhor o meu ponto de vista regressando à minha metáfora favorita, embora tenha de vos pedir de novo que não a tomem demasiado à letra. O triângulo impossível, a que chamei o triângulo de Penrose no capítulo 1, foi descoberto pelo artista sueco Oscar Reutersvärd em 1934, quando, aos dezoito anos, fazia garatujas na margem de um manual durante uma aula de latim. Começou por desenhar uma estrela perfeita de seis pontas, depois começou a acrescentar-lhe cubos, colocando-os à volta da estrela, encaixados nos espaços entre as pontas. Enquanto prosseguia com o desenho, apercebeu-se de que, por casualidade, tinha criado um novo tipo de objecto extraordinário.


Oscar Reutersvärd, Opus I

Esse seria o primeiro de muitos objectos impossíveis que Reutersvärd iria criar. Mas a evolução e a elaboração desses objectos não teve lugar imediatamente. Na realidade, só na década de 1950, quando Roger Penrose apareceu independentemente com o mesmo desenho, Reutersvärd percebeu que a «ilusão de perspectiva» que tinha conseguido com o triângulo podia ser usada para criar toda uma família de figuras igualmente paradoxais. A seguir produziu a primeira «escada impossível» e o primeiro «diapasão do diabo». Estas ideias não tardaram a ser absorvidas e embelezadas por outros, designadamente pelo artista holandês M. C. Escher e pelo suíço Sandro Del Prete. Assim, aconteceu que, na década seguinte, o desenho original de Reutersvärd produziu catedrais de impossibilidade cada vez mais complexas. A figura seguinte mostra uma das variantes mais recentes, o Portal de Acesso à Quarta Dimensão, de Del Prete.


Sandro Del Prete, Portal de Acesso à Quarta Dimensão, 1966.

Por isso, agrada-me que houve uma progressão evolutiva semelhante com o ipsundrum. O primeiro passo crucial teria sido a descoberta por parte da Natureza — através de qualquer «garatuja natural» — de uma variação na reacção expressiva à estimulação sensorial, à sensição, que por casualidade orientasse a actividade reverberatória nos circuitos de feedback para um novo tipo de estado atractor: um estado que talvez desse origem à ilusão de que existia um «tempo espesso» e, desse modo, elevasse a sensação até ao plano fenoménico.

Na natureza das coisas, este passo inovador deve ter ocorrido num determinado momento de uma determinada linha evolutiva (embora seja possível ter-se repetido mais tarde em outras linhas.) Fazendo recuar as coisas tanto quanto parece credível, permitam-me que sugira que isso teve lugar há cerca de 300 milhões de anos nos répteis primitivos que foram os antepassados das aves e dos mamíferos. Podemos pressupor que, para ter sido seleccionada nessa época, a inovação teria tido de produzir benefícios imediatos para a sobrevivência. Vamos então supor que estes teriam envolvido benefícios do tipo que abordámos nos capítulos 6 e 7 — embora sem dúvida de início se tivesse tratado de versões relativamente modestas desses benefícios. Assim, os antigos répteis conscientes já teriam começado a desfrutar dos benefícios de terem um eu nuclear e de existirem num mundo encantado.

A partir deste ponto, qualquer regresso ao estado de ter sensações não-fenoménicas teria sido severamente punido pela selecção natural. No entanto, é possível que tenha havido um longo período de estabilidade no qual, excepto no que diz respeito aos pequenos ajustes e aperfeiçoamentos, o ipsundrum não sofreu novos desenvolvimentos. Como outras antigas invenções biológicas, como o coração, por exemplo, a consciência tinha atingido um nível de eficiência para além do qual não eram necessários quaisquer melhoramentos. Então, como era a consciência para esses antigos répteis continuou a ser como é a consciência; e o que era a sua função evolutiva continuou a ser o que é a sua função — para todas as espécies de animais conscientes que mais tarde descenderam deles, desde os corvos até aos gatos e golfinhos.

Para todas, excepto uma. Com o advento dos seres humanos, apareceu uma espécie cujos membros reflectiam sobre a sua experiência de maneiras completamente diferentes. Os humanos surgiram como conhecedores da consciência que tinham um interesse sem precedentes pelos pormenores fenomenológicos de como é estar aqui e que reflectiam nas suas ramificações metafísicas. Assim, aspectos de qualidade fenoménica, que nada teriam contado antes, tornaram-se importantes. Isto podia ter sido a pista para modificações significativas na apresentação de sensações, ou mesmo uma renovação completa do espectáculo mágico para este público filosoficamente mais exigente. Porém, como se veio a verificar, estou convencido de que isto era desnecessário. Já havia suficiente potencial «não utilizado» nas qualidades da consciência que existiam para satisfazer as novas exigências sem um afastamento drástico da tradição original. Tudo o que era necessário — e que foi conseguido — era uma nova encenação inteligente: uma nova iluminação, um cenário mais ousado, espelhos adicionais para acrescentarem novas camadas à ilusão, mas, essencialmente, mais do mesmo. Neste contexto, a consciência fenoménica estava pré-adaptada para assumir o seu papel alargado nos humanos.

Enquanto cientistas, como seria possível sabermos?

Vou repetir a verdade metodológica a que dei realce no primeiro capítulo. Na nossa condição de historiadores naturais da consciência, tudo o que podemos ver são as consequências comportamentais, e estas não têm necessariamente um mapeamento único para os estados mentais internos que as produzem. Retomando uma analogia já apresentada anteriormente, o mesmo sorriso pode ser produzido por muitas piadas diferentes.

No fim de contas, talvez só haja uma maneira de saber, que consistiria em entrar na cabeça do sujeito — armados das leis neurofenomenológicas correctas para proceder à tradução entre actividade cerebral e representações conscientes. Supusemos que a cientista de Andrómeda já dispunha de todas as ferramentas necessárias, de modo que ela, ao contrário de nós agora, devia poder comparar a consciência nas espécies e indivíduos e obter respostas definidas. Quando ela completar o seu livro, A Explicação do Regresso à Superfície, talvez este contenha um guia taxonómico pormenorizado a descrever como é (ou, principalmente, como não é) ser qualquer das espécies animais aqui na Terra.

O leitor e eu podemos ser assaltados por uma sensação de despeito em relação a isto. Não parece muito justo que uma cientista alienígena possa conseguir respostas a perguntas sobre o nosso mundo, que nos interessam tão profundamente, mas que, no futuro previsível, nós não vamos conseguir obter. Porém, pelo menos os filósofos da ciência ficarão tranquilizados ao saber que há alguém, algures, capaz de responder a estas questões empiricamente — o que significa, no mínimo, que elas podem ser consideradas verdadeiras questões científicas.

No entanto, tenho uma confissão a fazer. Não acredito que a cientista de Andrómeda faça alguma vez a visita que descrevi.

Quando a apresentei, escrevi: «Enquanto cientista, há muita coisa que ela aguarda com expectativa.» Escrevi isto porque parti do princípio de que ela era uma cientista como qualquer um de nós: um dos sábios de Poincaré «que estudam a natureza porque isso lhes dá prazer e porque ela é bela,» ou, como Dawkins, que se dá ao trabalho de se levantar de manhã porque «abriu os olhos num planeta sumptuoso, reluzente de cores, favorável à vida».

Mas a visitante de Andrómeda — como eu logo de início pus como condição para a introduzir nesta obra — não é ela própria fenomenicamente consciente. Referi que isso não era impedimento para que tivesse uma mente analítica excepcionalmente brilhante. Porém, subsiste o facto de ela própria ser um zombie psicológico. E —como aprendemos desde então — esses zombies não se preocupam com as coisas do mesmo modo que os seres conscientes. Em particular, não consideram ser sua missão estar «apaixonados pelo universo». Imaginei a nossa visitante cheia de entusiasmo ao ver o romper do dia na Terra e a testemunhar o despertar das mentes conscientes. Mas agora receio que ela tenha ficado na cama.

Isto significa que tudo vai levar um pouco mais de tempo. Terá de ser um de nós, humanos, a escrever o livro em vez dela."

NIcholas Humphrey

segunda-feira, 5 de março de 2012

Convite a ler "Poeira da Alma"


Com uma capa um pouco diferente do que é costume, acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva (n.º 183) , um livro com o título "Poeira da Alma" e o subtítulo "Amagia da consciência", da autoria de Nicholas Humphrey, professor inglês de Psicologia. Transcrevemos aqui o "Convite" escrito pelo autor no início da obra, que vem recomendada na capa por João Lobo Antunes:

"Há uns anos escrevi um pequeno livro — Seeing Red: A Study in Consciousness — que teve críticas inesperadamente boas, mesmo de colegas meus. Digo «inesperadamente», porque no campo que passou a ser conhecido como «estudos sobre a consciência» é habitual os académicos desdenharem das ideias uns dos outros. O psicólogo Walter Mischel observou ironicamente: «Os psicólogos tratam as teorias alheias como escovas de dentes —nenhum indivíduo dotado de amor-próprio quer usar uma que pertença a outra pessoa». E os filósofos têm tendência a ser ainda mais cautelosos.

A recensão que mais me agradou foi publicada no American Journal of Psychology: «O autor deste artigo fez pelo menos três leituras da obra, cada uma das quais produziu uma nova compreensão da mesma. A primeira deixou-me com a sensação de: ‘Oh, ele não pode querer dizer ISSO!’ Mas a segunda consolidou e confirmou essa sensação: ‘Oh, sim, ele quer mesmo dizer isso.’ E a terceira, que foi a mais gratificante: ‘Oh, meu Deus, acho que ele está certo!’». No entanto, praticamente todo o debate em torno de Seeing Red acabou por ter um travo amargo. Ninguém queria admitir que o problema da consciência estava resolvido. Assim, Steven Poole escreveu no Guardian: «Mas o ‘problema difícil’ continua a existir, embora desviado para um canto da tese do autor. Num estádio qualquer da evolução, os sinais de feedback sensorial são ‘privatizados’ no cérebro e tornam-se ‘sobre si mesmos’. E cá temos a reflexividade e, por conseguinte, a consciência. Mas entre matéria e pensamento ainda há uma fenda argumentativa. Se esta não existisse, a obra seria sensacional. Sendo assim, ela é apenas profundamente interessante».

Claro está que eles tinham razão: eu não tinha resolvido o problema. Porém, quem quereria ter um epitáfio a dizer que as suas ideia eram «apenas profundamente interessantes»? Senti-me desafiado a fazer mais uma tentativa de escrever um livro sensacional — ou, pelo menos, uma obra que mostrasse à mosca a maneira de sair da garrafa.

A presente obra, Poeira da Alma, retoma o tema das últimas páginas de Seeing Red. Uma vez que não é certo os leitores conhecerem a minha obra anterior, sempre que necessário retomei algumas das ideias nela expressas. No entanto, à parte isso, as teses que aqui desenvolvo são novas. Além disso, tenho de admitir que, em grande medida, não foram abordadas pelos meus pares. Neste novo livro, tentei deliberadamente modificar o jogo, seguindo um conjunto de regras diferente daquelas que tradicionalmente enquadram o debate sobre a consciência. Ao fazê-lo, e ao verificar aonde isso conduz, posso dizer que por vezes fiquei surpreendido com as minhas mudanças de posição: «Não posso mesmo estar a querer dizer isto. Mas sim, é exactamente isto que quero dizer. Bem, então nesse caso, vamos lá...» Com efeito, a história avançou por si própria. Se o livro parece — de uma forma quase artificial — uma viagem de descoberta, tal deve-se ao facto de ele ter sido exactamente isso no decurso da escrita.

Esta obra pretende ser séria do ponto de vista científico e filosófico, e espero que venha a ser considerada como tal. Mas foi também escrita para o leitor comum (embora esteja recheada de anotações eruditas). Acontece que dificilmente eu teria feito outra coisa do que não fosse tentar escrever um «livro popular». Desde já, porque uma parte central da minha argumentação assenta no pressuposto de que só através da ligação aos interesses e ansiedades dos seres humanos conscientes em geral podemos começar a ver a explicação evolutiva da existência da consciência. Assim, quando começo a abordar os «porquês» da consciência, passo a centrar-me, naturalmente, em questões que têm a ver com a vida, com a morte e com o significado da existência — questões que, como é óbvio, interessam aos seres humanos comuns (ainda que por vezes estes se preocupem mais com elas do que falem a seu respeito).

O resultado é que Poeira da Alma, que se inicia com as questões mais básicas acerca da natureza da percepção e da sensação conscientes, torna-se uma obra sobre a evolução da espiritualidade e sobre o modo como os humanos se instalaram naquilo a que chamo o «nicho da alma». Embora eu não tenha qualquer crença no sobrenatural, não apresento desculpas por repor a alma onde estou certo de que é o seu lugar: no centro dos estudos da consciência.

Mesmo assim, embora a obra termine debruçando-se sobre muitas preocupações humanas familiares, não se deve esperar que seja de leitura fácil. Houve trabalho que tive de desenvolver, e também será necessário que o leitor faça o mesmo. Inicio o livro definindo o que considero ser a consciência e em que consiste o problema difícil. Isto implica que comece com uma análise relativamente árida e depois, à medida que as respostas começam a surgir, seguem-se algumas incursões na neurociência especulativa, de modo nenhum áridas, mas não demasiado fáceis. Em diversos pontos da primeira parte, proporciono ao leitor uma hipótese de saltar para a etapa seguinte.

Mas na segunda parte, onde começo a perguntar para que serve a consciência, espero que o trabalho anterior de definir o que ela é comece a dar frutos. Isto porque, se, como afirmo, a consciência for nem mais nem menos do que uma peça de «teatro» mágico, as interrogações sobre aquilo para que serve começam a parecer muito diferentes daquelas que os filósofos e psicólogos estão acostumados a fazer. E com perguntas muito diferentes surgem respostas muito diferentes.

As respostas a que chego são por certo distintas das que a ciência tem apresentado. Tenho de admitir que, por si só, isto não é uma recomendação. Por certo que a ciência pretende ser mais cumulativa do que revolucionária. Porém, quando a investigação anterior sobre a consciência não produziu quase nada como resposta às grandes interrogações das pessoas sobre o mistério da sua experiência, talvez já não possamos continuar a confiar na ciência como estamos acostumados a fazer.

O mundo material dotou os seres humanos de almas mágicas. As almas humanas retribuíram o favor, lançando um sortilégio sobre o mundo. Para compreender estes factos assombrosos, convido-vos a dar início à leitura."

Nicholas Humphrey

domingo, 27 de novembro de 2011

UM MÉTODO PERIGOSO



Já está nos cinemas o novo filme de David Cronenberg sobre as relações entre Freud e Jung.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Aprender a Aprender


Meu prefácio ao livro da Fundação Francisco Manuel dos Santos "Em Causa: Aprender a Aprender", de vários autores, que é lançado amanhã em Aveiro na Conferência daquela Fundação com o mesmo título que tem lugar na Universidade de Aveiro e que se repete no dia seguinte na Torre do Tombo, em Lisboa:

A expressão “aprender a aprender” tem aparecido cada vez mais no discurso pedagógico. Por vezes fala-se também em “aptidão para o pensamento crítico” e “aptidões metacognitivas”, expressões que aparecem elencadas por E. D. Hirsch, Jr., professor na Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, no seu livro “The Schools we need and why we don’t have them” (Anchor Books/Doubleday, 1999). Pretende-se transmitir a ideia de que os conteúdos da aprendizagem não são tão relevantes como o próprio processo de aprendizagem, manifestando-se antipatia pela excessiva transmissão de conteúdos. Ainda conforme Hirsch, diz-se também que “os factos não contam tanto como a compreensão”, “os factos ficam desactualizados” e “menos é mais”. Estas expressões são decerto familiares a quem frequentou cursos de educação ou simplesmente certas disciplinas de educação noutros cursos.

Fazem sentido? Apesar de algumas poderem fazer algum sentido, costumam aparecer emaranhadas umas com as outras, num discurso confuso, que pode seduzir quem as lê ou quem as ouve. O dito “aprender a aprender” por vezes não passa de um jogo de palavras que inebria quem as profere e que pretende inebriar quem as ouve. Usa-se também neste contexto o provérbio, de origem chinesa, “mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe”. Percebe-se o que quer dizer, mas há um perigo óbvio: pensar-se que ao pescador interessaria mais o instrumento - a cana de pesca - do que propriamente o objecto – o peixe. Ora um pescador que nada pesque dificilmente pode merecer esse nome. E, além do mais, poderia morrer à fome. De facto, quem se inebria com a expressão “aprender a aprender” parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se podem transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam e sobre os quais elas actuam?

Os modernos avanços das ciências de educação, aliados com os avanços da psicologia experimental, têm lançado luz sobre estas questões das atitudes e dos conteúdos. Hoje, reconhece-se, em particular, que a memória se pode e deve treinar, mas isso não pode ser feito sem haver algo que se memorize. Era um claro exagero o ensino básico tradicional baseado na mera memorização de nomes de reis e de rios. Mas é exagero maior pensar que se pode obter essa capacidade de memorizar sem ter adquirido uma conjunto de informações que ficam residentes no cérebro prontas a ser usadas.

Neste livro, a Fundação Francisco Manuel dos Santos prossegue o seu programa de educação, procurando iluminar aspectos da psicologia, das ciências da educação e da prática educativa. John R. Anderson, Lynne M. Reder e Herbert Simon, da Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, dão-nos a sua visão sobre a aplicação da psicologia cognitiva na educação, Paula Carneiro, da Universidade de Lisboa, fala-nos sobre a promoção da apreendizagem através de testes e Pedro Albuquerque, da Universidade do Minho, esclarece-nos sobre o papel da memória na educação. A todos eles são devidos agradecimentos pela excelente colaboração, assim como a Nuno Crato, que, com a ajuda de Mónica Vieira, preparou, numa fase inicial, tanto o livro como o encontro que lhe está associado.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

UMA HISTÓRIA DE PSICÓLOGOS

No livro sobre o Ensino da matemática, que já aqui referi, há, num artigo de Pedro Rosário, Professor de Psicologia da Universidade do Minho, uma história deliciosa que permite retratar, embora anedoticamente, os psicólogos. Transcrevo:
"Há uma história que conta que dois psicólogos vão na rua e encontram um tipo completamente escalavrado no chão, sangrando imenso. Param, claro, e avançam para o sujeito que está a sangrar e, então, rapidamente, um diz para o outro: "Eh pá, temos de ir à procura do outro, do sujeito que fez isto, ele está a precisar de ajuda!". Isto é uma história de psicólogos. A nossa abordagem por vezes é enviesada (...)"

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GRANDES ERROS: PERCEPÇÃO EXTRA SENSORIAL DE IMAGENS ERÓTICAS





















Um amigo chamou-me a atenção para a notícia do "New York Times" de 5 de Janeiro, segundo a qual está prestes a ser publicado num prestigiado jornal de psicologia um artigo da autoria de um prestigiado psicólogo experimental (professor jubilado na Universidade de Cornell, nos EUA) que indicia a existência de um certo tipo de percepção extra-sensorial.

Numa das experiências relatadas os estudantes universitários, habituais cobaias deste tipo de testes (há quem diga que se sabe muito sobre a psicologia dos estudantes e pouco sobre a psicologia das outras pessoas!), conseguiriam adivinhar (53 por cento), mais do que seria dado pelo simples acaso (50 por cento), em qual dos lados, direito ou esquerdo, de um ecrã vai aparecer uma imagem erótica. A colocação da imagem é escolhida ao acaso por um computador depois da escolha humana ter sido efectuada. Quer dizer, antes de se saber onde está o nu já a maioria dos estudantes sabe onde vai estar. A mim o que mais me intriga é isso só funcionar para esse tipo de imagens...

O artigo, apesar de aprovado por refereeing anónimo, está sob severo escrutínio. A experiência será repetida por outros. De qualquer modo três por cento é uma margem pequena e especialistas dizem que a análise estatística está a ser mal feita. A estatística, como se sabe, consegue, bem torcida e retorcida, dar para tudo. Um dito bem conhecido assegura que "a estatística é como o biquini: o que mostra é sugestivo, mas o que esconde é essencial." Neste como noutros casos talvez seja um dito apropriado...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Schadenfreuden

Habitual destaque às sextas para a crónica de J.L.Pio de Abreu no "Destak":

Schadenfreuden é uma palavra alemã que designa o sentimento de prazer com a desgraça alheia. Não é fácil encontrar traduções, pelo que a mesma palavra se usa noutras línguas para nomear tal sentimento. Não a usamos em português, mas temos a querida inveja que é o maior dos nossos sentimentos destrutivos.

Ter inveja não é desejar o que os outros têm, o que se chama cobiça, nem é o malfadado ciúme que consiste em temer que os outros roubem o que pensamos ser nosso. A inveja costuma definir-se pelo facto de nos sentirmos mal com o bem dos outros. Mas se fosse só isso, o invejoso não seria mais do que uma desgraçada vítima.

O problema do invejoso é que, quando vê alguém com mais posses ou competências, não se admite inferior. O que ele faz então é tentar destruir aqueles que são melhores. Fá-lo porém de um modo enviesado e ineficaz, colocando no outro todos os defeitos que possa imaginar. Ao fazê-lo, porém, ele fica cego para a realidade. De facto, a inveja deriva da expressão latina invidia, que quer dizer mau olhar.

Destruído o outro, ainda que em imaginação, o invejoso pode finalmente deleitar-se com o suposto mal do invejado, ou seja, tem direito ao seu schadenfreuden. Mas como não temos palavra para este sentimento sádico, fazêmo-lo inconscientemente. Quer dizer que aquilo que os alemães fazem com consciência e eficácia, fazem os invejosos portugueses inconscientemente e sem resultado. No fundo, somos masoquistas porque ambas as coisas nos destroem.

J. L. Pio de Abreu

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Como se aprende a ler?

Informação recebida pelo De Rerum Natura

Conferência com Roger Beard, Linda Siegel e Isabel Leite.

Dia 6 de Dezembro, em Coimbra, às 17 horas, no Auditório da Reitoria da Universidade.
Dia 7 de Dezembro, em Lisboa, às 17 horas, no Auditório da Torre do Tombo.

ENTRADA LIVRE MEDIANTE INSCRIÇÃO PRÉVIA

É consensualmente aceite que a leitura é imprescindível para o desenvolvimento da criança, sendo-lhe reconhecida grande importância no contexto escolar e extra-escolar. Por tudo isto, é decisivo melhorar as capacidades de leitura dos alunos portugueses.

Nesta conferência pretende-se esclarecer, a partir de estudos da Psicologia Cognitiva, como aprendem as crianças a ler e que estratégias podem ser utilizadas para fomentar as capacidades de leitura.

Recorrendo a experiências nacionais e internacionais – nomeadamente a inglesa e a americana – analisar-se-ão as estratégias que se têm destacado como mais eficazes e discutir-se-ão os fundamentos psicopedagógicos que lhes estão subjacentes.

Por último, serão apresentados alguns resultados de um estudo sobre os exercícios e conteúdos dos livros escolares para o ensino da Língua Portuguesa em níveis iniciais, com o objectivo de identificar os conhecimentos e capacidades promovidos na aprendizagem da leitura e da escrita.

Mais informações aqui.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Crónica da desgraça anunciada

Destaque para a crónica semanal de J.L. Pio Abreu no "Destak":

O orçamento derrapou, sabem porquê? Porque se anunciaram restrições, e não houve director, presidente ou autarca que não desatasse a gastar dinheiro enquanto podia dispor dele. Aumentou o consumo de medicamentos, sabem porquê? Porque se anunciou que eles ficariam mais caros, e não houve doente que não os comprasse enquanto eram mais baratos.

Quando se anuncia a taxação dos dividendos, não há accionista que não os queira enquanto não forem taxados. Se, por uma crise social, se adivinhar que faltará o abastecimento de bens essenciais, começará sem dúvida o açambarcamento, fazendo apressar a falta. Se alguém souber que um país sairá do Euro, as notas vão sair do circuito económico e dirigir-se rapidamente para debaixo dos colchões.

São os nossos Chicos Espertos? É verdade que sim, mas quem os pode condenar quando seguem o exemplo dos mais respeitáveis gestores? O erro, no mundo em que vivemos, é anunciar a desgraça. Tal como na psicologia humana, só o optimismo, mesmo contra as probabilidades, se torna saudável. Os optimistas sabem que a desgraça é possível e que poderão vir a enfrentá-la, mas apostam antes na esperança e até podem ganhar.

Viver a pensar no mal que nos pode acontecer é doentio. Causa infelicidade e apressa o próprio mal. No mundo de hoje também é assim. Mas a sociedade, ou parte dela, ou a sua parte mais visível, está doente. Anuncia o mal, causa infelicidade e abre o caminho para a desgraça.

J.L. Pio Abreu

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O gabarola

Destaque para a crónica semanal do médico J.L.Pio de Abreu no "Destak":

O gabarola é uma figura típica da nossa cultura. Treina-se em miúdo, contando que more no primeiro andar ou mais acima.

Se tiver estas condições, o miúdo gabarola não perde a oportunidade de provocar uma rixa à frente da sua porta. Enquanto a guerra é só de garganta, não há problema. O gabarola tem a língua afiada e até pode impressionar. Mas se chegasse a vias de facto, ele não teria hipótese.

Então, quando as coisas aquecem, o nosso gabarola foge para casa e vai para a janela. Aí, defendido dos murros dos outros, alteia o desafio:

«É pá, vem cá acima que eu te digo, faço-te num oito, seu fdp, vê lá se consegues, parto-te os cornos.»

Esbraceja e dá murros no ar, enquanto os outros assistem ao espectáculo. Quem já o conhece ri-se, mas os novatos da refrega podem bater palmas.

E os alvos do seu verbo indignam-se, impotentes.

Quando for grande, o gabarola continuará a provocar rixas e a fugir para a janela. Há janelas de sobra neste mundo do espectáculo.

E como a cena é forte, ele vai ter plateia e comentadores que o promovam. Os ressentidos contra a vida e contra os chefes começam a adulá-lo. E o nosso gabarola treina-se cada vez mais na sua gabarolice.

O tempo está para os gabarolas. Sabem tudo, vencem batalhas virtuais, têm as soluções. Em tempos difíceis tornam-se os heróis da insatisfação. Mas não descem ao terreno, não chegam a vias de facto nem sujam as mãos. O seu mester é só de garganta, o que não quer dizer que não façam mal.

J. L. Pio de Abreu

segunda-feira, 19 de abril de 2010

DEZ MITOS DE PSICOLOGIA POPULAR


A revista "Skeptic" (que eu aguardo sempre e leio com prazer!) traz no seu último número (vol. 15, nº3, 2010) uma lista do top-ten dos mitos de psicologia popular, que são desmontadas pelos autores do artigo: S. Lilienfeld, S.J. Lynn, J. Ruscio e B. Beyerstein, do livro desses autores "5o Great Myths of Popular Psychology: Shattering Widespread Misconceptions About nHuman Behaviour", saído há pouco Wiley-Blackwell:

1- Só usamos 10% do nosso cérebro.

2- É melhor exprimir arrelia do que guardá-la para si.

3- A baixa auto-estima é uma fonte maior de problemas psicológicos.

4- A memória humana funciona como uma câmara vídeo.

5- A hipnose é um estado de "transe" único.

6- O teste do polígrafo é um meio adequado de detectar mentiras.

7- Os opostos atraem-se.

8- As pessoas com esquizofrenia têm múltiplas personalidades.

9- As luas cheias causam crimes e loucura.

10- Uma grande porção de criminosos usam com sucesso o argumento da insanidade para se defenderem.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A segunda pele

Do "Destak" de hoje destacamos a crónica do médico psiquiatra José Luís Pio de Abreu:

Todos temos uma segunda pele por cima da nossa. Está na roupa que usamos, nos símbolos que ostentamos, no nome que temos e nos títulos que o precedem, nos cheiros e cores que nos enfeitam, nas perfurações e plásticas com que moldamos a pele ou o corpo que a natureza nos deu. É idealizada e construída por nós e por quem nos é próximo. É aquilo que nos representa e nos apresenta aos outros. É a nossa identidade.

É pela identidade que vivemos. É ela que nos liga aos nossos próximos e aos vários colectivos a que pertencemos. É ela que liga cada pessoa ao seu passado e lhe dá coerência. É também ela que viaja para o futuro onde encontra a esperança ou o desespero. Por isso, condiciona tudo o que fazemos. É ela que faz de nós pessoas e que nos torna humanos.

A identidade é tão óbvia que só pensamos nela quando se avaria. Às vezes idealiza-se tanto que se desliga do passado e nada tem a ver connosco. Outras vezes desdobra-se em várias ou usa a pele de outra pessoa, viva ou morta. Às vezes, pura e simplesmente, desaparece. São patologias que enchem os consultórios psiquiátricos e o espectáculo das seitas religiosas.

Com ou sem patologia, a identidade está em crise no mundo ocidental. O choque de culturas, a dissolução dos colectivos, o peso do presente e o temor do futuro fazem com que a segunda pele fique descomposta. Ficamos bizarros uns para os outros, excepto quando temos de nos entender no trabalho. Resta-nos então a identidade profissional. Por isso, já não lutamos por ideais: lutamos pela nossa corporação.

José Luís Pio de Abreu

sábado, 6 de março de 2010

Lavagens


Com a devida vénia, publicamos a crónica do médico J.L. Pio Abreu no "Destak" de ontem:

As lavagens cerebrais foram estudadas pela CIA durante duas ou três décadas a partir dos anos 50. O nome do projecto era MK ULTRA. Os documentos que se conseguiram resgatar mostram que se tratava de experiências infantis baseadas na administração de drogas que produziram mais acidentes problemáticos do que conhecimento sobre o assunto.

Nos anos 60, Frantz Fanon, no seu livro Os Condenados da Terra, explicava como se lavavam as mentes dos anticolonialistas presos na Argélia. Pura e simplesmente, eles eram convidados a escrever ensaios sobre as vantagens do colonialismo francês. Estes ensaios eram classificados e, ao atingir uma certa pontuação, os presos eram libertos. Na verdade, os prisioneiros já eram inofensivos, pois as convicções antigas tinham-se evaporado enquanto escreviam as teses contrárias.

Na lavagem cerebral, as palavras são mais importantes do que qualquer droga, com a vantagem de se poderem administrar massiva e inadvertidamente. Entram-nos pela casa dentro, na hora do descanso, pela voz dos jornalistas e comentadores televisivos. Os sinais da lavagem consistem em usar, nas conversas e fóruns, as frases feitas por eles.

Resta saber se os jornalistas e comentadores também sofrem lavagens cerebrais, já que eles se repetem uns aos outros com frequência. Podem-se invocar várias razões para este fenómeno, entre as quais a de serem mal pagos, não terem tempo para se informar com autonomia e terem de pôr os olhos na concorrência. Mas é de ter em conta a possibilidade de eles se lavarem uns aos outros.

J. L. Pio de Abreu

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A inveja

Destacamos, como vem sendo hábito, a crónica do médico psiquiatra J.L. Pio de Abreu, no "Destak":

Neste pequeno mas mexido País, toda a gente já foi tudo, todos já se iludiram e desiludiram. E toda a gente se conhece o suficiente para perceber que nenhum outro é melhor que nós.

Mas acontece que, às vezes, os outros, aqueles que não são melhores que nós, têm, na verdade, mais sucesso. É aí que se instala a inveja, sobretudo essa inveja destrutiva que clama por justiça e vingança. Se os outros não são melhores do que nós e, apesar de tudo, conseguiram ir mais longe, é porque fizeram falcatrua.

É interessante descobrir que os futebolistas escapam a este destino: só neste caso, a inveja cede à admiração. Talvez seja porque, à partida, ninguém os conhece, vieram da periferia, não têm nomes de família. Mas também pode ser pela sobranceria com que ainda vemos os jogadores de futebol, coisa a que eles se prestam com uma humildade cultivada.

Também pode ser porque o futebol não estava nos planos de belezas desfeiteadas, homens mal-amados, princesas em declínio, actores sem plateia, personalidades apeadas, ressentidos em geral e todos aqueles que, sentados nas suas frustrações, vão descarregando o fel nas conversas casuais, nos comentários da internet ou em inesperadas janelas de protagonismo.

Todos incham de portugalidade com um golo bem metido. Mas quando olham para as pessoas a seu lado, para aqueles que podiam estar como eles, mas estão melhor ou mais activos, o mal da inveja aperta-lhes o estômago, dilata-lhes os olhos e transtorna-lhes o raciocínio.

J.L. Pio Abreu

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Os 'realistas'

Destacamos a opinião do médico J.L. Pio Abreu no "Destak" de hoje:

Desde há algum tempo que em Portugal apareceram uns espécimes de sucesso. Classificam-se a si próprios de realistas mas, na verdade, são uns pessimistas desbragados. Para eles, tudo vai mal e não há solução para este país. O seu sucesso pessoal vem da procura que têm na Comunicação Social, onde assinam colunas e programas. Literalmente, alimentam-se daquilo que escrevem ou dizem. Imagino que leiam ou oiçam as suas próprias opiniões e, tão deprimidos ficam, que a próxima sairá mais negra ainda.

Os realistas-pessimistas têm história. No passado estiveram perto do poder, com oportunidade de aplicar na prática as ideias que apregoavam. Resta saber se o conseguiram ou não, porque uma coisa é dizer, outra é fazer. Mas todos saíram de lá e nota-se que estão zangados. Chega-lhes agora o palco mediático e o convencimento de que alguém tome por boas as suas negras profecias.

Como a mudança é permanente e o futuro uma incógnita, os pessimistas até podem estar certos. Não pelas razões que aduzem nem com o fim que profetizam, pois cada um tem a sua opinião. Mas temos pela frente o aquecimento global, a superpopulação, a falta de água, os terramotos, o princípio da entropia e, evidentemente, o facto mais do que seguro de que todos nós haveremos de morrer.

Não faltam realidades para os argumentos pessimistas. De facto, as pessoas saudáveis são pouco realistas e preferem as suas ilusões. Mas são essas pequenas ou grandes ilusões que nos fazem viver e, com altos e baixos, alcançar o que antes parecia impossível.

J. L. Pio de Abreu

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Descascar a fruta


O habitual destaque para a crónica de J.L. Pio de Abreu no "Destak" de hoje (na figura quadro de Caravaggio):

O que nos faz mexer com agrado não é o próprio prazer, mas sim o esforço feito para o obter. A chave deste paradoxo é uma molécula que dá pelo nome de dopamina. Ela liberta-se, nos nossos neurónios, sempre que as coisas estão a correr no sentido da expectativa desejada. A expectativa realizada reforça este caminho mas, por si, não é tão intensa como os passos dados até lá. O facto é que, obtido o desejo, cessa a libertação de dopamina.

Este pormenor explica porque é que os alpinistas se torturam para chegar ao cume de um monte, porque é que os toxicodependentes insistem na difícil obtenção da droga que, a partir de certo ponto, apenas lhes traz mais dores, ou porque é que o amor difícil é o que se vive mais intensamente. Mas ajuda-nos também a perceber que a melhor forma de fortalecer a vontade é adiar a recompensa.

Na sociedade do "pronto-a-vestir" as recompensas estão na montra e serão obtidas logo que se arranje o dinheiro suficiente. A dopamina vira-se então para o "vil metal", o único caminho para todos os prazeres. Onde está o prazer de cozinhar, de construir um brinquedo, de bordar uma colcha, de preparar um encontro? Tudo sucumbiu perante o tempo dedicado à obtenção do dinheiro.

Para aqueles que foram bem treinados na vontade de ganhar dinheiro, fica o golfe. Chegar ao primeiro, segundo e outros buracos, é incentivo suficiente para a expectativa de alcançar o décimo oitavo. Para os outros, resta o prazer de descascar a fruta antes de a comer. Pelo menos, enquanto os supermercados não a venderem já sem casca.

J.L. Pio Abreu

domingo, 1 de novembro de 2009

A mestria e o prazer de ler

Em Agosto passado, o Jornal I entrevistou Isabel Festas, especialista em processos cognitivos da leitura. O De Rerum Natura agradece a autorização que nos concedeu para reproduzir o seu depoimento completo, no qual se destacam as interessantes questões da mestria que a actividade ler envolve e o prazer que dela pode decorrer.

- Porque é importante a leitura para as crianças? E para os jovens (até aos 13/14 anos)?

Talvez se deva distinguir dois aspectos, quando se fala na importância da leitura.

Um primeiro aspecto diz respeito ao facto de ela ser um dos pilares de todas as aprendizagens escolares e um dos suportes fundamentais de uma grande parte das actividades profissionais e quotidianas. É preciso ler para estudar todas as áreas académicas, é preciso ler para aprender os requisitos necessários ao exercício de uma profissão, é preciso ler para resolver muitas das tarefas do dia a dia. Ler inclui um outro aspecto, relativo àquilo que se designa o “prazer da leitura”. Citando José Morais, no seu excelente livro A arte de ler: Psicologia cognitiva da leitura, “os prazeres da leitura são múltiplos. Lemos para saber, para compreender, para reflectir. Lemos também pela beleza da linguagem, para nos comovermos, para nos inquietarmos. Lemos para partilhar. Lemos para sonhar e para aprender a sonhar (...)” (p. 12).
Remetendo a leitura para estes dois aspectos fundamentais, e sabendo que é na infância que se aprende e que se começa a construir o gosto e o prazer de ler, facilmente se compreende a razão da importância desta actividade, por parte das crianças. O mesmo se pode dizer dos adolescentes, já que a aprendizagem e o gosto se vão desenvolvendo ao longo desses anos. Penso que devíamos separar estes dois aspectos. Eles são igualmente importantes, mas ambos obedecem a lógicas diferentes. O primeiro, que podemos designar de competência de leitura, exige uma boa escolaridade, uma boa iniciação e aprendizagem da leitura e o trabalho da compreensão leitora. São tarefas que cabem à escola. Actualmente dispomos de um conjunto de saberes e de meios bastante eficazes na prossecução dessas tarefas.

O segundo, relativo ao prazer da leitura, é de outra ordem. Trata-se de algo que não obedece às regras do trabalho escolar, que só pode ser desenvolvido em plena liberdade. Aos pais caberá um papel decisivo na construção do gosto pelos livros.

- A partir de que idade se torna importante que as crianças leiam?

O mais cedo possível. Ler ajuda a consolidar a aprendizagem, a desenvolver a compreensão e a criar o prazer da leitura. Aliás, uma das chaves do sucesso em todas estas áreas é a leitura antes da aprendizagem. A leitura feita pelo adulto, à noite, antes de dormir ou a qualquer hora do dia. Ler uma história à criança que ainda não o sabe fazer vai introduzi-la no mundo dos livros e das possibilidades que eles oferecem, vai suscitar o seu interesse, a sua curiosidade o seu gosto.

- Por que tipo de livros devem começar? E depois: na infância e pré-adolescência?

Não há regras absolutas. Há, felizmente, muita oferta. Temos bons livros infantis e juvenis e, mesmo, outros livros que, não sendo especificamente vocacionados para estas idades, podem ser introduzidos cedo, sobretudo a partir da adolescência. Os textos narrativos, pelas histórias que contam, são uma excelente forma de começar a introduzir a criança no mundo da leitura. Os textos poéticos – lengalengas, trava-línguas, rimas infantis, quadras, sonetos – são também uma escolha muito interessante, para esta fase. A selecção de boas leituras, na infância, vai, certamente, orientar o gosto da criança. Assim, quando esta chega à adolescência terá já algum critério de escolha. Nesta fase, os pais devem estar atentos e encontrar um equilíbrio entre as preferências dos filhos, que devem ser respeitadas, e as obras de reconhecido mérito, ou seja, aquelas escritas pelos bons escritores.

- Os pais devem preocupar-se se os filhos não manifestarem interesse pela leitura? Nesse caso, o que devem os pais fazer? E o que não devem fazer? Existem estratégias para incentivar as crianças a ler? Por exemplo?

O melhor é começar muito cedo. Ler despreocupadamente, para os filhos ainda muito pequenos, é a melhor forma de cultivar o interesse pela leitura. Se falamos em prazer de ler, temos que ter presente que ele é incompatível com obrigatoriedade. Também não se deve confundir com tarefa escolar. É necessário separar estes dois aspectos e trabalhá-los de forma diferente. A mestria na leitura alcança-se com esforço, com um trabalho que é essencialmente escolar. O prazer da leitura conquista-se pela descoberta das suas imensas potencialidades e do impacto pessoal que ela pode ter.

Começar, desde muito cedo, a ler para as crianças é a melhor estratégia para criar nelas o gosto pela leitura. Depois, quando a criança já sabe ler, deve-se deixá-la, à vontade, com os seus livros. Os pais não devem ter a preocupação de avaliar o entendimento que a criança tem do que leu. Como disse, uma coisa é o trabalho escolar e a mestria que se vai alcançando na leitura de palavras e de textos, outra é a leitura das histórias e dos seus livros. Se o primeiro exige uma avaliação, a segunda requer uma liberdade total.

- Há livros que costume recomendar? Quais?

Talvez fosse oportuno recomendar um livro para os pais. Trata-se do clássico e bem conhecido livro de Daniel Pennac Como um romance. Ele pode ajudar muito os pais nesta tarefa de desenvolver, nos seus filhos, o prazer pela leitura.

Para as crianças e adolescentes, como já disse, há muitos e bons livros. Eu recomendo os livros dos bons escritores. São uma garantia do encontro da criança ou do adolescente com o “mistério” da literatura, chave daquilo que podemos considerar o prazer da leitura. A poesia é, também, uma boa recomendação. Existem, actualmente, bons livros de poesia, dedicados à infância. Trata-se de uma forma literária que, contrariamente ao que por vezes se pensa, encontra grande receptividade, por parte das crianças.

Sem mencionar nenhum título, posso referir que há uma lista recomendada pelo Plano Nacional de Leitura que inclui bons livros, para as idades aqui em causa.

- Que livros são desaconselhados?

De uma maneira geral, eu desaconselhava os livros que são resultado de uma manipulação dos originais. Trata-se de versões que pretendem facilitar a leitura, mas que, ao fazê-lo, destituem o livro das suas características literárias, precisamente aquelas que podem levar ao prazer da leitura.

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho Paisagem granítica na Serra da Gardunha. Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo...