A Editora Gradiva publicou em Junho de 2013 o livro “Ser
Espiritual – da evidência à ciência” do médico Luís Portela.
Como sugere e pede Luís Portela ao leitor na sua
introdução
ao livro, a minha leitura foi iniciada sem preconceitos e com a maior e
possível imparcialidade, com a maior abertura de espírito para descobrir
conhecimento novo, mantendo, contudo e como faço habitualmente, um espírito
crítico contextualizado na minha cultura e formação científica.
Partilho com o eventual leitor que a leitura progrediu
sobressaltada por contradições entre capítulos, pelo espanto de encontrar uma
mistura de temas que poderiam pertencer a livros de áreas distintas: história
da ciência; espiritismo; guia espiritual e moral, entre outros.
Na minha humilde opinião, esta mistura de assuntos
sem real relação causal entre si tornam a leitura deste livro confusa, e potencialmente causadora de mal-entendidos, para além de abrir as
portas às pseudociências.
Felizmente existe em Portugal e na mesma editora Gradiva uma
excelente e prestigiada colecção de boa divulgação científica dirigida ao
público em geral, a “Ciência Aberta”, que nos seus mais de 200 títulos inclui
dezenas de livros que desmascaram de forma convincente as falsas ciências ou
pseudociências que são virais ao longo da história da humanidade e que Luís
Portela acredita e divulga neste seu livro.
Coisa interessante é que Luís Portela consegue escrever um
livro que aparenta ser a favor do conhecimento científico e da importância que
a ciência tem no desenvolvimento de uma humanidade mais livre. O problema é que
o leitor menos atento pode iludir-se com a tentativa de Luís Portela
em afirmar que algumas teorias, utopias e imaginações são passíveis de serem
verificadas e validadas através do método científico. Mas ao mesmo tempo Luís
Portela afirma que “embora não demonstradas científicamente, estas conjecturas
[vidas passadas e futuras, por exemplo] fazem sentido”. O problema é que o
“sentido” e as realidades mentais em que Luís Portela é livre de acreditar não
são passíveis de serem verificadas, ou sequer experimentadas, pela ciência
moderna. A ciência moderna tem como objecto de estudo o que é e não o que nós
queremos, acreditamos ou desejamos que deva ser!
Apesar da abertura de espírito que o autor requere para uma
mais proveitosa leitura deste livro, é no mínimo espantoso o facto de o médico
e psicofisiologista de formação se esquecer de mencionar factos científicos que
a biologia e as neurociências modernas têm disponibilizado a todos para explicar
um sem número de ilusões neuronais e fisiológicas. Fenómenos que durante
séculos foram domínio do desconhecido recheado de medos, das crenças baseadas
em explicações erradas do funcionamento do corpo humano e das leis da natureza.
Este é o oitavo livro de Luís Portela. Conhecido pela
empresa familiar que dirigiu, presidiu e de que hoje é chairman, Bial, a
principal indústria farmacêutica portuguesa, Luís Portela publicou o seu
primeiro livro “O Prazer de Ser”, pela Edições ASA, em Março de 2008. Este reúne diversos textos em que o autor expressa a sua experiência humana.
Enquanto presidente da companhia farmacêutica Bial,
saliente-se o desenvolvimento e produção do que foi considerado o primeiro
medicamento português: o Zebinix. Sendo um fármaco dirigido ao tratamento de
doentes com distintas epilepsias, foi aprovado pela FDA norte-americana para
ser comercializado neste país. Hoje em dia está comercializado em muitos outros
países, constituindo um sucesso incontornável na história da indústria
farmacêutica e das ciências da saúde portuguesas. Refira-se que o
desenvolvimento deste fármaco envolveu dezenas de investigadores de várias
universidades e de várias especialidades científicas durante mais de uma década.
Luís Portela teve assim oportunidade de dirigir e viver a produção de
conhecimento científico de excelência, publicado em revistas científicas da
especialidade com revisão pelos pares, com resultados científicos
reprodutíveis, validados e aceites pela comunidade científica internacional
relacionada com a interdisciplinaridade que envolve as doenças epilépticas (o
plural indica a variabilidade da perturbação neuronal).
Esta referência ao conhecimento e proximidade de excelência
de Luís Portela com o método experimental científico moderno e com aquilo que
ele implica de liberdade, probidade e honestidade intelectual, à universalidade
da verificação da realidade factual, permite compreender a tentação do autor do
livro “Ser Espiritual” em querer validar cientificamente uma realidade em que ele
acredita. Luís Portela conhece bem o que é e como se faz ciência de excelência.
Mas para as crenças, legítimas de autor, ainda não há qualquer consenso
de que possam sequer ser alvo de experimentação pelo método científico, como já se
disse. Estou a referir-me concretamente aos casos da reincarnação, da telepatia,
da psicocinese, da vida para além da morte entre outros aspectos de uma
realidade muito espírita que Luís Portela defende, legítima e livremente,
existir. Acredita que existe e quer que essa existência seja demonstrada e
verificada cientificamente. O problema, e tal como o próprio autor refere,
contradizendo-se, é que todas as tentativas para as provar experimentalmente
não produziram resultados reprodutíveis e credíveis.
De facto deve ser difícil provar cientificamente que uma
galinha dobre objectos com a força do seu pensamento, como refere Luís Portela
na página 89! O que é isto senão a mais ingénua pseudociência. Ou então a
possibilidade de gravar vozes e imagens de pessoas que já morreram! Gravações
que, por aquilo que afirma Luís Portela, são muito famosas e credíveis, feitas
através de uma “transcomunicação instrumental” entre realidades distintas! Isto
está mais próximo do melhor ilusionismo espírita do que da má ciência.
Neste livro Luís Portela indica e cita vários estudos
efectuados em diversas universidades internacionais sobre estes assuntos e
refere o envolvimento de investigadores que tentaram estudá-los
cientificamente. Contudo os resultados divulgados não são reprodutíveis, como o
próprio Luís Portela afirma e conclui em alguns capítulos.
O autor parte mais de uma vez do conhecimento e da história
da ciência para dela tentar contextualizar e fundamentar as realidades em que
acredita. É o caso da teoria física das “supercordas” (página 23 e seguintes) à
qual o autor recorre para tentar sincronizar as vibrações das cordas,
partículas lineares fundamentais e constituintes de todo o Universo, com as “vibrações
do pensamento humano” emanado e em sintonia com uma Harmonia Universal. O que
Luís Portela não diz é que a Teoria das Cordas ainda não encontrou demonstração
experimental científica. É uma teoria física ainda “à espera” de ser confirmada
cientificamente.
Outro exemplo de pseudociência no livro “Ser Espiritual” é o
da extrapolação descontextualizada de conhecimento científico para explicar vários
aspectos espíritas como são os casos da existência da alma e o da “força do
pensamento humano”. O autor considera que esta é uma força que tem a mesma
validade de qualquer uma das outras quatro forças físicas, como seja a da
gravidade. Considerando o pensamento humano como uma força, Luis Portela
aplica-lhe a 3ª lei da mecânica Newtoniana, geralmente conhecida por lei
da acção – reacção (que diz que para toda e qualquer acção há sempre
uma reacção oposta e de igual intensidade), e uma certa “lei da
causa e do efeito” (página 31), para assim fundamentar a existência da
telepatia e da influência que podemos ter uns sobre os outros através da
transmissão de pensamentos positivos e negativos. E isto ocorre à velocidade do
pensamento, velocidade essa que Luís Portela não diz qual é!
Confrontado com o cepticismo e desinteresse da comunidade
científica internacional sobre estes assuntos, o autor repete várias vezes um
apelo para que esta considere efectuar mais investigação científica nos
domínios da parapsicologia. Isto porque a que foi e tem sido feita não tem
obtido resultados reprodutíveis, não são credíveis, e são de difícil validação
científica. Uma vez que a ciência moderna e o seu método científico não se
adequam aos objectos de estudo da parapsicologia, Luís Portela desafia a
comunidade científica a mudar de paradigma, a mudar de metodologia (páginas 46,
49 e 114, por exemplo).
Um facto real é o de que este novo livro de Luís Portela é
centralmente sobre espiritismo, dedicando-lhe vários capítulos com seja o
intitulado “Corpo anímico”. Isto, apesar de noutros capítulos, diga-se em abono
da verdade, serem dele libertos e dedicados a uma exposição, sugestões,
indicações do autor, fruto da sua intensa e rica experiência pessoal, sobre a
melhor conduta humana, sobre a defesa do ser sobre o ter, sobre a necessidade
da aproximação do Homem a uma sensibilidade espiritual que estará actualmente
muito deficitária, principalmente no mundo ocidental e desenvolvido,
exactamente naquele em que a ciência moderna se desenvolveu.
Este livro não é um livro anticiência. Aliás, reconhecendo a
importância da ciência moderna para o desenvolvimento livre e democrático das
sociedades humanas, faz, como disse, um apelo a um maior envolvimento da
comunidade científica aos assuntos ditos paranormais e mediúnicos, espíritas. Contudo,
Luís Portela, com um discurso científico presente em momentos chave do livro, põe
ao mesmo nível do conhecimento científico as inverdades divulgadas pelas pseudociências.
E é também por isso que este livro pode iludir o leitor menos informado,
confundindo-o com relações que nada têm de científicas.
O leitor, assim como o autor, são livres de acreditar nas suas crenças, mas é importante denunciar mais um livro que vem
alimentar o rio secular das pseudociências.
António Piedade