O avô Jaime faz
anos. Sessenta anos de vida cumpridos no dia 25 de Abril, dia de festa e de
grandes revoluções. Francisco e Rosália, os seus netos gêmeos, estavam
radiantes como qualquer petiz o está quando alguém que lhes é querido faz anos.
Também eles tinham feito 10 anos no passado dia 14 do mesmo mês de Abril. A
coincidência de todos fazerem anos no mesmo mês aumentava a sensação de uma
cumplicidade entusiasta entre avô e netos.
Rosália observa
as duas velas de aniversário espetadas no topo do bolo. Tinham uma forma
helicoidal e o número 60 construído pelo 6 e o 0 impressos em cada uma delas.
As duas faziam lembrar uma dupla hélice o que fez recordar a Rosália algo que
tinha lido num jornal na biblioteca da escola: a forma da molécula dos genes
também tinha sido descoberta havia 60 anos.
- Avô! –
pergunta Rosália – é interessante teres nascido no mesmo ano em que uns
cientistas descobriram a dupla hélice…
- De ADN –
completou o Avô perante a hesitação de Rosália. – Sim é uma coincidência que me
agrada, mas não passa disso. De uma coincidência. De facto nasci no dia em que
uma revista científica muito importante, que se chama Nature, publicou o artigo
de James Watson e Francis Crick sobre a estrutura em dupla hélice do ácido
desoxirribonucleico, que diminuímos para a sigla ADN. Foi uma publicação que
fez nascer uma nova era na biologia e outras disciplinas afins…
- Como a
química e a física? – questiona Francisco até ai pouco interessado.
- Essas foram
necessárias para a descoberta da dupla hélice do ADN. Outras nunca mais foram
as mesmas. Estou a falar da compreensão da vida através das moléculas e átomos
que a constituem. Biologia molecular, bioquímica, genética entre outras
disciplinas. Vocês já falaram de moléculas e átomos na escola, não falaram? –
questiona o avô Jaime com as sobrancelhas pacientes.
- Já! –
respondem os gêmeos em uníssono. – E também na internet.
- Pois a
internet… - suspira o avô pensativo. – Querem que vos conte a história do ADN?
- Queremos –
respondem Rosalia e Francisco com as vozes entrelaçadas.
- Apesar de eu
ter nascido a 25 de Abril, fui na realidade concebido uns 9 meses antes.
Poderíamos celebrar em vez do nascimento, o dia da concepção, quando um
espermatozoide do meu pai fecundou um oócito da minha mãe. Mas a tradição da
nossa cultura secular só podia celebrar o que via acontecer como coisa concreta
e definida. Mas ao longo daqueles 9 meses, os genes que eu recebi dos meus pais
celebraram um plano para fazer desenvolver, célula a célula, tecido a tecido,
órgão a órgão, primeiro o embrião, depois o feto, e por fim o meu organismo
completo nascido bebé.
- Não consigo
imaginar o avô bebé – riu a Rosalia.
- Bom. O que eu
vos quero dizer é que as coisas da ciência, assim como as da vida, não surgem
do nada. Têm uma história de desenvolvimento, passo a passo e com muito
trabalho e esforço. Cada descoberta acrescentando mais um pouco de conhecimento
ao nosso entendimento científico do mundo, neste caso.
- Queres dizer
que a dupla hélice também esteve grávida? – pergunta Rosália com ar de malandra.
- Fazes-me rir.
Não esteve grávida, não teve mãe. Apesar de ter sido uma senhora que se chamava
Rosalind Franklin que fez as experiências fundamentais com cristais de sais de
ADN e cujos resultados permitiram a Watson e Crick desvendar a estrutura. Sabem
como é que ela fez as experiências?
- Não!! – disse
a curiosidade dos dois netos.
- Como se
tirasse radiografias com raios x a pequenos cristais de sais de ADN. O modo
como os raios x são desviados pelo ADN foram registados numa imagem que depois
foi analisada com o conhecimento físico e matemático desenvolvido pelo físico
Bragg e outros colegas. A técnica chama-se em rigor cristalografia por difracção
de raios x e foi, e é, muito usada para estudar a estrutura regular e a
disposição espacial tridimensional como os átomos e algumas moléculas se
organizam quando são cristalizadas, quando estão na forma de cristais.
- Como os
cristais de neve? – pergunta Rosália sorridente.
- Sim. Só que
em vez de água, imprescindível para a vida, estamos a falar de ADN – diz o avô
Jaime contextualizando.
- O ADN foi
descoberto pelo químico alemão Friedrich Miescher, em 1869. Ou seja 84 anos
antes da desboberta da sua estrutura. Miescher descobriu que todas as células
tinham uma substância ácida no núcleo. Mas não foi logo que os cientistas
associaram o ADN com a hereditariedade, com os genes que os pais passam aos
filhos.
-
Hereditariedade?! O que é? – pergunta Francisco com os braços abertos.
- É a forma como as características que nos
tornam seres vivos individuais são transmitidas de geração em geração – explica
o avô. - Foi trazida à luz pelas famosas experiências com ervilhas de Gregor
Johann Mendel, um monge e botânico austríaco, em meados do Séc. XIX.
- As minhas
experiências com ervilhas são sempre más – resmunga Francisco.
- Mas tens de
as comer, assim como a outros vegetais se queres crescer e perceber estas
coisas da hereditariedade – aconselha Rosália fraternal. - Não é verdade avô?
- Bem o dizes
minha neta. Mas voltemos à história. Mendel não sabia nada acerca de ADN nem
precisou desse conhecimento para estabelecer as suas leis da hereditariedade
que ainda hoje são estudadas e válidas para explicar a transmissão de
determinadas características de pais para filhos, como sejam a cor dos olhos,
pro exemplo.
- Mas o que é
que o ADN tem a ver com a hereditariedade? – pergunta Francisco ainda meio
horrorizado com a ideia de ter de comer ervilhas.
- Os genes são
feitos de ADN – afirma categórico Jaime.
- Então os
genes estão no núcleo das células! – exclama Rosália vitoriosa.
- Sim. No
núcleo das células como as que nos constituem – confirma o avô. - Mas a
identificação do ADN como a molécula responsável pela hereditariedade genética
demorou muito tempo, não foi imediata.
- Porquê? –
soltou Francisco com os sobrolhos carregados.
- É que a
composição química do ADN parecia aos químicos, biólogos e geneticistas muito
pobre e repetitiva para poder conter em si a informação necessária para gerar a
imensa complexidade de um ser vivo, para além da enorme biodiversidade que vive
no planeta Terra. Cada unidade do ADN, chamado nucleótido, é composto por um açúcar
(a desoxirribose) um parte inorgânica constituída por um grupo ortofosfato, e por
uma de quatro substâncias azotadas a que chamamos bases: a guanina, a adenina,
a citosina e a timina. Para simplificar referimo-nos a elas pelas letras G, A,
C e T respectivamente.
O avô Jaime faz
uma pausa para dar tempo a que Francisco e Rosália desfaçam qualquer dúvida com
o olhar. E continua.
- Até aos anos
quarenta do século XX muitos cientistas estavam mais inclinados para atribuir
esse papel às proteínas. Estas eram constituídas por muitas mais unidades
diferentes e apresentavam-se em incontáveis combinações e estruturas distintas.
Os diferentes genes necessários para construir um organismo tinham de ser
compostos por proteínas e nunca pelo monótono ADN. Assim, durante cerca de 60
anos o material dos genes era considerado de natureza proteica.
- E como é que
se descobriu que não eram? – pergunta Francisco armado em detective.
- Através de
uma experiência muito elegante planeada e executada por Avery e seus
colaboradores. Usando um vírus chamado bacteriófago e umas bactérias, estes
investigadores mostraram sistematicamente e sem deixar qualquer dúvida que o
que era passado de geração em geração era o ADN e não as proteínas. Ou seja,
que o material dos genes era o ADN. Este conhecimento só foi divulgado em 1944,
e foi uma peça decisiva do puzzle que iria ser progressivamente resolvido até
aos nossos dias.
- Ainda não tinhas nascido avô –
recorda Rosália abraçando-o.
- Pois não. Mas no ano em que nasci, 1953, começou a entender-se como é
que a molécula de ADN cumpria o seu papel de molécula dos genes e da
hereditariedade – Jaime faz uma pausa de suspense. - Depois dos trabalhos
experimentais e resultados obtidos por Rosalind Franklin, como disse há bocado,
Watson e Crick criam, em fevereiro de 1953, um modelo estrutural para o ADN que
respondia àquelas e outras perguntas. O seu modelo apresentava uma estrutura em
duas fitas de ADN entrelaçadas uma na outra formando uma dupla hélice. No
artigo da Nature que publicaram no dia do meu nascimento, 25 de Abril,
escreveram que esta estrutura tinha grande significado biológico. De facto,
permitiu explicar como a informação genética é armazenada e transmitida entre
gerações.
- A famosa dupla hélice de ADN cujo aniversário também hoje comemoramos
nas velas helicoidais no teu bolo e que vais soprar daqui a nada – comenta
Rosalia enrolando com os seus dedos meninos os seus cabelos ondulados.
- Mas conhecer a estrutura abriu uma enorme janela para novos horizontes de
conhecimentos. Watson, Crick e o Wilkins ganharam o prémio Nobel em 1962 por
esta descoberta.
- Rosalind não?! – diz Rosália surpreendida.
- Ela tinha entretanto falecido, provavelmente devido a doença causada
pela sua exposição prolongada aos raios x com que trabalhara para nos desvendar
o conhecimento do mundo biomolecular – responde Jaime com um olhar perturbado com
injustiça. – Mas continuemos. Nesse ano de 1962 descobriu-se mais uma peça do
puzzle genético: Marshall W. Nirenberg e colaboradores decifraram o código
genético.
- Código genético?! Os genes estão codificados?! – questiona Francisco
cada vez mais curioso.
- Sim. Niremberg e seus colegas mostraram que cada um dos aminoácidos que
constroem as proteínas são codificados por sequências de três bases no ADN.
Tinham aprendido a ler a linguagem genética e entendido como é que ela é
traduzida para que as proteínas que nos compõem sejam construídas. No fundo,
tinham descodificado o manual da vida e verificado que ele era universal!
- Isso foi em 1962 – assenta Rosália. – Mas então o que é que aconteceu
com o genoma humano que foi conhecido totalmente no ano em que eu e o meu irmão
nascemos, em 2003?
- Estás a referir-te à sequenciação completa do genoma humano. Ou seja,
sabermos em que sequência é que estão, em cada uma das duplas hélices, as 3 mil
milhões de bases que as constituem em cada núcleo de cada uma das nossas
células o nosso genoma.
- Saber a ordem em que estão 3 mil milhões daquelas letras G, A, C e T? –
questiona Francisco perdido entre as letras.
- É verdade. Esse feito, anunciado ao mundo no dia 14 de Abril de 2003, é
um dos mais impressionantes da história da ciência. O Projeto de Sequenciação
para descodificação do Genoma Humano teve início em 1990 e no dia 23 de Outubro
de 1998 foram publicados na revista científica Science, os objetivos para
o Projeto do Genoma Humano, por Francis Collins e colaboradores. Neste artigo
os cientistas apontavam uma meta para a descodificação total do genoma humano
para 2013, no 60º aniversário do conhecimento da estrutura em dupla hélice do
ADN.
- Então conseguiram acabar essa tarefa 10 anos mais cedo do que o
planeado – observa Rosália.
- Sim querida neta. Fruto do trabalho de um enorme grupo interdisciplinar
internacional, e também pelo avanço da informática, do desenvolvimento de
computadores e de equipamentos de sequenciação cada vez mais rápidos e
eficientes. Digo-vos que o trabalho foi feito por várias aproximações. E de
facto os primeiros dados provisórios foram publicados em 15 de Fevereiro de
2001, na revista científica Nature, pelo Consórcio Internacional para a
Sequenciação do Genoma Humano, e no dia seguinte na Science, por J.
Craig Venter e colaboradores.
O avô Jaime refresca-se com uma limonada antes de retomar algo que
parecia ter-se esquecido antes.
- Mas deixem-me voltar umas
décadas atrás. É que esta sequenciação não teria sido possível sem que duas
técnicas bioquímicas decisivas tivessem sido inventadas antes.
- Um microscópio e uma máquina de fotografar ultra rápida… para
fotografar todas as bases no ADN – sugere Francisco.
- Não querido neto. As bases do ADN são muito mais pequenas do que aquilo
que o mais potente microscópio alguma vez construído consegue ampliar. O que
estou a recordar foi a incontornável contribuição de Sanger e Coulson, que
descreveram, em 1975, um método que permitia conhecer em detalhe todas as
letras de uma sequência de ADN.
- E a outra descoberta? – pergunta Rosália.
- A outra descoberta, também decisiva, foi a invenção da PCR, que quer
dizer “reação da polimerase em cadeia”, por Kary Mullis, na primavera de 1983.
Ou seja há 30 anos. Outra efeméride deste ano. A invenção desta ferramenta bioquímica
foi uma autêntica revolução na área da Genética, uma vez que possibilita a
síntese muito rápida das cadeias de ADN, a partir de uma pequena amostra, o que
permitiu avanços notáveis na análise dos genomas dos seres vivos. Recorrendo à
PCR, é possível sintetizar um bilião de cópias de uma única cadeia de ADN em
poucas horas. Atualmente existem no mercado máquinas que realizam o processo de
forma automática e muito rapidamente. A tal ponto que é possível sequenciar o
nosso genoma a partir do ADN existente numa pequena gota de sangue ou mesmo a
partir da nossa saliva.
- Acho que já tinha ouvido falar dessa PCR na fantástica série CSI… -
recorda Rosália entusiasmada.
- Sim. A sequenciação do genoma de cada um de nós já é uma realidade e
abre novas perspectivas para o desenvolvimento de tratamentos para doenças
antes julgadas incuráveis.
- Assim como descobrir o autor de um dado crime, descobrir os
extraterrestres que vivem escondidos entre nós e também fazer renascer animais
extintos como os dinossauros… - diz Francisco entusiasmado. – Como no Jurassic
Park.
- Em parte, Francisco. Identificar uma pessoa através do seu perfil
genético, sim. O resto que dizes ainda é um pouco do domínio da ficção
científica. Mas lá chegaremos – diz o avô sorrindo e afagando a cabeça de
Francisco. - Já agora uma curiosidade para acabar.
- Qual é?!
- Se fosse possível colocar o genoma Humano que existe em cada uma das
nossas células, em forma de uma “fita” estendida, o seu comprimento seria de aproximadamente
8.636 Km. Ou seja três quartos do diâmetro do equador terrestre.
- Tão comprido?! – pergunta com espanto Rosália. – Como é que cabe dentro
das nossas células?
- Boa pergunta. A dupla hélice de ADN está por sua vez enrolada
compactamente em supra estruturas que são os cromossomas. Possuímos 23 pares de
cromossomas. Cada par proveniente de cada um dos nossos pais. A forma como os
genes estão dispostos nos cromossomas dava para outra grande conversa. Mas
agora vamos ao bolo e celebrar os meus 60 anos e, já agora, da dupla hélice de
ADN sexagenária.
António Piedade