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terça-feira, 24 de julho de 2012

Para as pessoas perceberem que é precioso cultivarem-se

Na senda de iluministas, racionalistas, humanistas, republicanos, democratas (a designação depende da época e do contexto intelectual), Helena Cidade Moura acreditou firmemente que a educação transformava a condição humana. Transformava-a no sentido da consciencialização e, em sequência, do exercício da liberdade.

Tal como João de Deus, entendeu que o ponto de partida era necessariamente a aprendizagem da leitura e da escrita. Porém, a batalha da alfabetização, que assumiu ao longo de décadas, entendeu-a "apenas" como um caminho que se abre e conduz à cultura erudita, a que todos, sem excepção, têm direito.

A sua morte recente poderia ter constituído um pretexto para nos determos nesta ideia tão simples, (aparentemente) óbvia, mas que é uma das grandes conquistas da Humanidade. Até porque, como todas as conquistas, não possui garantia de eternidade.

Saberão os leitores que não foi isso que aconteceu: cumpriram-se os votos de pesar e, de consciência tranquila, por aí nos ficámos. Merecia mais Helena Cidade Moura, que ainda há pouco tempo, entre a desilusão e a persistência disse, em entrevista, o que se segue:

- De que maneiras podem os autores clássicos entrar no quotidiano dos portugueses?
- A falta de cultura na generalidade da sociedade portuguesa é uma coisa gritante. Este trabalho que estamos a desenvolver no âmbito da alfabetização de adultos tem como tema "sem cultura não há desenvolvimento", para as pessoas perceberem que é precioso cultivarem-se para terem necessidade do desenvolvimento. Neste momento, nós estamos paralisados de intenções sociais. Cada um trata da sua vida o melhor que pode e acaba por aí a sua intervenção na sociedade e isto é uma maneira de ser muito difícil de remediar. Por isso, tenho a convicção que projetos como este desempenharão um papel importante no gosto pela leitura também dos clássicos.

sábado, 17 de dezembro de 2011

O Modernismo português representado por Pessoa

Soube-se ontem: Eduardo Lourenço foi o 25.º distinguido com o Prémio Pessoa. Do filósofo e ensaista, deixamos um extracto de uma conferência proferida na Fundação Calouste Gulbenkian, em 5 de Fevereiro de 1975, intitulada Da literatura como interpretação de Portugal (De Garrett a Fernando Pessoa).

"Entre outra coisas, o Modernismo português - e em particular o representado por Fernando Pessoa - desejou ser não apenas invenção e recriação de uma nova sensibilidade e visão da realidade (aquela que o chamado mundo moderno estava pedindo), mas igualmente uma metamorfose total da imagem, ser e destino de Portugal. Estas duas perspectivas nem se opõem, nem se adicionam uma à outra. Procedem ambas de uma única inspiração. O acesso e a consquista de uma nova visão do mundo, implica e procede de uma revisitação em profundidade do que Pessoa, na sequência de Pascoaes, chamará a alma nacional. O modernismo é para Fernando Pessoa uma questão que ele tem ao mesmo tempo com o mundo em que vive e com Portugal, mas por sua vez Portugal apresentou-se-lhe cedo como enigma objectivo com o qual há muito a consciência nacional se debate. Desde jovem que ele pretende, novo Édipo, encontrar a resposta que, mais tarde, sob transparente arquitectura, será para nós o Templo da nova imagem de que necessitava para ter uma pátria cujo centro estaria em toda a parte e a circunferência em parte alguma. Se a resposta de Pessoa é aqule que a enigmática realizada lusíada estava pedindo é assunto que ficará de fora do nosso horizonte. O nosso propósito é somente o de mostrar que a utópica preocupação de Pessoa pelo ser e destino histórico-mítico de Portugal se insere num contexto e num processo mais antigo e vasto, processo a que de algum modo põe termo, diluindo em gesta flutuante, em evasão celeste, a blocagem histórica de um povo sem destino terreste definido e convincente."

In: O labirinto da saudade (Publicações Dom Quixote), pp. 79-80.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O nosso homem em estúdio

"(...) Existiram muitos momentos em que nada se disse,
porque os astronautas foram dormir e tive que esperar
que eles acordassem. (...) tinha levado muita literatura,
nomeadamente um artigo fabuloso, do Norman Mailer,
que já falava das perspectivas da chegada do Homem à Lua."
José Mensurado.


De 20 para 21 de Julho de 1969, José Mensurado, o tranquilo jornalista da Rádio e Televisão Portuguesa, que havia acompanhado e noticiado andanças das várias Apollo pelo espaço, foi o nosso homem em estúdio para, via CBS, dar conta da chegada à Lua, da saída de Neil Armstrong da nave e do primeiro passo que deu em solo não terrestre.

Antes de todos os portugueses, foi ele quem, pelos auscultadores, o ouviu dizer, em voz pausada, mas muito segura: “Um pequeno passo para o homem, mas um salto gigantesto para a humanidade”.

Emocionou-se com tudo isso, disse mais tarde, na sua sobriedade. Emocionou-se, sobretudo, quando viu a Terra do espaço. E disse também que “foi uma honra” ter acompanhado tudo isso, e ter “a sensação de que estava a entrar, embora como jornalista, para protagonista da história”.

Dessa emissão em directo, que durou 18 horas, onde a ciência, a tecnologia foi acompanhada de literatura não existe registo em arquivo da Televisão. Resta a memória que José Mensurado nos legou (que se pode ver, por exemplo aqui) e a memória do próprio José Mensurado.

Sítios consultados:
http://www.rtp.pt/web/historiartp/1960/homem_lua.htm
http://www.casadaimprensa.pt/?p=1501#more-1501
http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=33400&op=all

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Júlio Resende (1917-2011)


"Eu já ficava muito contente se dissessem:
«O fulano foi um teimoso, pintou até ao fim»."

Disse Júlio Resende, chegado aos noventa anos. Teimosia que fez com que uma obra única fosse paulatinamente construída para o tempo presente e para o futuro.

(Citação extraída de entrevista dada pelo pintor à Revista Pública de 10 de Fevereiro de 2008. Fotografia de Rui Duarte Silva).

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Boas histórias para aprender a pensar

O De Rerum Natura tem acompanhado o projecto Classica Digitalia desde o seu nascimento, no Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, faz agora dois anos.

Chegado ao Brasil permitiu concretizar, até ao momento, a edição de dez livros em formato digital e em papel: é o Classica Digitalia Brasil, cuja apresentação formal tem lugar a 9 e a 13 de Maio, respectivamente, na Universidade de Coimbra e no XI Simpósio da Sociedade Brasileira de Platonistas, em Recife, Pernambuco.

A este propósito, falámos com Gabriele Cornelli, um dos primeiros autores brasileiros publicados nesta colecção, pelo facto de se encontrar em Portugal para tal apresentação.

Gabriele Cornelli é professor de Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília é também membro do Conselho Editorial da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e da International Association for Presocratic Studies, director de uma colecção – a Coleção Archai – presidente da Sociedade Brasileira de Platonistas e membro do Executive Committee da International Plato Society. A sua visão da cultura clássica é, pois, de ter em conta na contemporaneidade. Começámos a nossa conversa por aí, pondo a tónica no lugar que essa cultura ocupa na educação escolar…

DRN - Em Portugal, o grande entusiasmo e a vasta produção do projecto Classica Digitalia parece não se coadunar com as opções que são tomadas no nosso sistema educativo para o ensino básico e secundário, de onde a cultura e as línguas clássicas praticamente desapareceram. Passa-se o mesmo no Brasil?
GC - O projeto editoria Clássica Digitalia parece-me, de fato, na atual conjuntura do financiamento à pesquisa em estudos clássicos, não somente em Portugal, mas em todo o Velho Continente, uma obra de resistência, cultural e acadêmica, de grande força. As tradições greco-latinas que a CD quer apresentar constituem, de fato, um tesouro de sugestões, ensinamentos, maneiras de olhar para o mundo e si mesmos (por vezes trágicas, por vezes cômicas, por outras lúcidas ou apaixonadas) que nenhuma cultura ou nação deveria se dar ao luxo de perder.
Minha esperança é que este momento de grande dificuldade e agrura que os estudos clássicos estão sofrendo na Europa possa acabar em breve. Não é a primeira vez que a história deste nosso continente vê momentos de crise para com seu passado, de renegação de suas origens greco-romanas. E, todavia, ainda estamos a falar de Heródoto, Platão, Luciano, não é? Por vezes, a resistência é o que pode-se fazer e, ao que me parece, é o que o CECH e CD fazem muito bem em Coimbra.

DRN – E no Brasil, que lugar tem o ensino da cultura e das línguas clássicas nos diversos patamares do sistema educativo?
GC - No Brasil a história é outra, bem diferente. O ensino das línguas antigas não faz parte estavelmente do currículo do ensino médio (liceu). Portanto, somente na etapa universitária é que os jovens brasileiros podem ter a chance de aproximar-se com qualidade às linguas, literaturas e pensamento do mundo antigo. Se isso é de fato problemático, por outro lado nos últimos anos viu-se um crescente interesse nas áreas disciplinares que reunimos abaixo do guarda-chuva dos Estudos Clássicos. Veja-se, por exemplo, o aumento de cátedras de filosofia, história e letras antigas nas universidades brasileiras, assim como a multiplicação de seminários e publicações nesta área.

DRN - Entende que tem sentido ensinar a cultura e línguas clássicas no presente, quando as opções internacionais para a educação vão no sentido de reforçar as aprendizagens práticas, com carácter utilitário imediato, emergentes da vivência quotidiana dos alunos e dirigidas para essa mesma vivência?
GC - Creio pessoalmente que a opção que se pretenderia fazer entre disciplinas práticas e uteis e disciplinas de "cultura geral" como alguns podem considerar as nossas, é em realidade uma falsa opção: o que há de mais útil do que compreender os caminhos tortuosos da definição o consenso político na jovem democracia de Atenas? Ou de mais prático do que compreender as nuances das dolorosas tomadas de decisão (éticas) das grandes heroínas das tragédias gregas, ou de mais importante do que apreender a cultivar a frágil planta da amizade com os grandes pensadores gregos e romanos? Realmente, não consigo imaginar nada de mais útil do que espelhar nossa vida cotidiana na grande tradição clássica.

DRN - A partir de que patamar de escolaridade considera relevante ensinar cultura e línguas clássicas?
GC - Creio que cada patamar tenha suas necessidades e oportunidades para esse ensino. Lembro-me, por exemplo, de contar histórias homéricas para meus filhos quando crianças, para durmir. E de ministrar há alguns anos um inteiro curso (muito concorrido) sobre as Éticas aristotélicas num Master de Business School para empresários. Enfim, haverá um dia, por acaso, em que não precisaremos mais de boas histórias e de aprender a pensar?

DRN - Sendo especialista nos Pré-socráticos, diga-nos que ensinamentos nos poderiam dar esses filósofos para a educação no presente e no futuro?
GC - Os filósofos assim-chamados pré-socráticos, que inauguraram a filosofia, e Platão são minhas grandes paixões, em âmbito teórico. Em ambos encontra-se, antes de mais nada, aquilo que o grande filósofo idealista italiano, Giovanni Gentile, o "tormento do pensar", isto é aquela inquietação profunda para com os problemas (teórico e prático) da vida que faz uma pessoa perder tempo buscando no diálogo com sua tradição e com as outras ciências contemporâneas, respostas ao grandes (e pequenos) problemas da vida. É isso que sempre me conquistou nos primeiros filósofos: este gesto inaugural, este chute inicial, para utilizar um jargão esportivo, e seus primeiros movimentos, entusiásticos e inquietos ao mesmo tempo.

DRN - Vem a Coimbra apresentar um livro que coordenou e que se intitula Representações da Cidade Antiga: categorias históricas e discursos filosóficos. Poderá dar-nos uma ideia do seu conteúdo?
GC - O livro foi por mim organizado a partir de um Seminário Internacional da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental, da qual sou Diretor, em 2008. A idéia era aquela de pensar a cidade antiga estando, em Brasilia, na cidade mais nova possível, a cidade modernista, a tentativa de realizar uma utopia de cimento no meio do semi-árido brasileiro. As contribuições do livro, todas de colegas arqueólogos, historiadores, filólogos e filósofos brasileiros, creio que tenham todos o pano de fundo deste desafio de pensar o passado no presente. É isso que o Archai quer fazer, reescrever continuamente a história de nossas origens a partir de como nos compreendemos hoje. Para que o passado possa ser não um espelho, e sim, continuamente, um interlocutor do presente. Como um velho amigo ou um pai já falecido, mas com o qual ainda nos surpreendemos conversando em nosso coração, nos momentos mais difíceis ou mais alegres, a recebermos conselhos francos, por vezes algumas broncas. Mas sempre com uma mão firme posta em cima de nossos ombros, a nos abraçar.

DRN - Muito obrigada.

domingo, 24 de abril de 2011

Maria Skłodowska-Curie: Madame Curie

Informação recebida pelo De Rerum Natura.


O Reitor da Universidade de Coimbra e o Director do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra têm a honra de convidar V. Ex.ª para a inauguração da exposição temporária Maria Skłodowska-Curie: Madame Curie, que terá lugar pelas 17h00 do próximo dia 27 de Abril de 2011.

quarta-feira, 30 de março de 2011

O primeiro projecto de investigação pedagógica em Portugal

Como se sabe, nos Jardins-Escola João de Deus, que agora comemoram um século de história escolar, para se ensinar as crianças a ler usa-se um livrinho que se chama Cartilha Maternal ou a Arte de Ler. Este livrinho que João de Deus começou a redigir em 1870, que cinco anos mais tarde já era usado em versão provisória para alfabetizar mais novos e mais velhos, e que apareceu publicado em 1987 (apesar de a 1.ª edição ter no frontispício a data do ano anterior), cedo se percebeu ser “uma das obras mais notáveis da pedagogia portuguesa” (Rómulo de Carvalho 1996, 607). E logo desencadeou acesas críticas: “umas calmas, serenas e objectivas; outras talvez exageradamente laudatórias; e outras ainda apaixonadas e virulentas em demasia” (Joaquim Ferreira Gomes, 1976, 17). Assim, quando a Cartilha já estava a ser usada em cerca de 600 escolas, foi solicitada à Câmara dos Deputados a realização de um teste experimental, que permitisse afirmar, de uma vez por todas, a sua eficácia ou a sua ineficácia. Por portaria do Diário do Governo de 12 de Dezembro de logo 1879 foi determinado que esse teste seja realizado:
“Convindo verificar, por meio de uma rigorosa e imparcial confrontação, se o método de aprender a ler de João de Deus tem reconhecida vantagem e superioridade sobre os métodos anteriormente seguidos nas escolas primárias:
Atendendo a que a aludido método tem sido posto em prática por diferentes professores em diversas escolas e favoravelmente apreciado pelo público, subsidiado pelas municipalidades e recomendado por algumas juntas gerais de distrito em vista dos resultados da sua aplicação;
Atendendo a que muito importa promover e auxiliar todos os dês cobrimentos úteis, principalmente os que têm por fim o primeiro de todos os interesses sociais, que é o da instrução e educação da mocidade;
Atendendo a que, para ser sincera e demonstrativa, a confrontação entre os indicados métodos deve efectuar-se de modo que experimentalmente, e sob a inspecção do Estado, se possa reconhecer qual desses métodos merecem preferência:
Há por bem Sua Majestade El-Rei determinar o seguinte:
1. Serão escolhidas na capital 60 crianças que tenham a idade de seis a 14 anos completos, e que sejam analfabetas. Essas crianças serão divididas em três classes: a primeira de seis a nove anos, a segunda de dez anos até 12, e a terceira de 13 até 14 anos; e depois distribuídas por dois grupos de 30 cada um, tiradas à sorte e de modo que em cada grupo haja igual número de crianças de cada classe. A cada criança será abonada a retribuição de 40 réis por dia de frequência. Em cada dia de falta ser-lhe-á descontada a retribuição correspondente a dois dias;
2. Um dos grupos de 30 crianças será ensinado pelo método João de Deus, e o outro pelo método usual num edifício apropriado e próximo do centro da cidade;
3. Os cursos dos dois grupos começarão no mesmo dia, e a aulas serão no mesmo local, à mesma hora e com a mesma duração. As casas das aulas deverão ter quanto possível iguais condições de capacidade, de luz e de comodidade;
4. Os cursos serão regidos por professores designados pelo governo dentre os melhores mestres tanto públicos ou particulares que em Lisboa ensinarem pelos dois métodos Para este fim o comissário dos estudos de Lisboa e o autor do novo método enviarão ao governo uma lista tríplice dos professores que julgarem mais aptos para a regência dos referidos cursos. Os cursos serão diurnos e duração por tempo de três a seis meses.
5. Uma comissão especial, nomeada pelo governo, será encarregada de seguir paralelamente os dois cursos e de os inspeccionar com o maior rigor, mantendo perfeita igualdade nas condições das duas escolas;
6. Os professores nomeados para dirigir as duas escolas, sendo públicos, receberão uma gratificação além do respectivo ordenado, e sendo particulares, e sendo particulares uma remuneração igual e condigna;
7. Expiados os primeiros três meses dos cursos, proceder-se-á a um exame nas duas escolas consecutivamente. A este exame presidirá uma comissão especial inspectora, a qual poderá dirigir aos alunos todas as interrogações que julgar convenientes e ordenar todos os exercícios que lhe parecer;
8. Se em resultado do exame do 1.º trimestre não se puder ajuizar da preeminência de qualquer dos métodos renovar-se-ão os cursos experimentados por mais três meses. Findo o 2,º trimestre, proceder-se-á a 2.º exame, guardando-se nele as disposições do número antecedente;
9. Depois de realizado o 2.º exame, a comissão especial redigirá um relatório minucioso com o seu juízo comparativo sobre os dois métodos: Este relatório será enviado ao governo. Cada criança interveniente na experiência receberia.”
Joaquim Ferreira Gomes (1976) afirma estar delineado neste documento o primeiro projecto português de investigação experimental em pedagogia. Infelizmente falhou o passo seguinte, que era o da sua concretização, e não por falta de João de Deus, que prontamente indicou, como lhe tinha sido solicitado, o nome dos três professores. É ele mesmo que explica o que aconteceu (in A Cartilha Maternal e a Crítica, ps. 240-241 e Cartilha Maternal, 5.ª ed., Apêndice, p. 16):
“Tendo-se passado meio ano sem ainda se proceder ao confronto do meu método de leitura com o chamado método usual (…) e tendo-se nessa expectativa deixado de tomar, em câmaras e juntas de distrito (…) deliberações favoráveis à propagação do meu método, com prejuízo meu, da desgraçada infância e de todo este país, onde os analfabetos constituem os noventa e cinco por cento dos habitantes – graças ao método oficial (se assim se pode chamar ao das Escolas Normais) e outros semelhantes; não sendo justo que eu conserve por mais tempo obrigadas às suas promessas as pessoas se me prestaram a reger o curso pelo método da Cartilha Maternal, pondo-as assim em embaraços no governo da sua vida, como já sucedeu com a professora que rejeitou um excelente partido para fora do reino; tenho a honra de participar que retiro os três nomes que dei em meu ofício de vinte e três de Dezembro e me declaro estranho a todo o estudo particular ou confronto a que por acaso se haja de proceder oficialmente."
Referências: - Carvalho, R. (1996, 2.ª edição). História do ensino em Portugal: desde a fundação até ao regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. - Ferreira Gomes, J. (1976). Algumas reacções em torno da “Cartilha Maternal” de João de Deus. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano X, 3-57.

sábado, 26 de março de 2011

CARLOS ADRIÃO RODRIGUES OU DO BOM USO DAS MÁS COMPANHIAS

“Em todas as decadências o primeiro sintoma é a depravação do sentimento da amizade” (Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1865).

O meu conhecimento de Eugénio Lisboa (que se viria a transformar em forte amizade e grande admiração em Lourenço Marques onde nos viemos a reencontrar anos depois) data da nossa frequência no Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, em início da década de 50, numa altura em que o desconforto da caserna e do famigerado campo de obstáculos, para os cadetes menos inclinados para as práticas físicas, era agravado pelo militarismo desapiedado do então comandante de Batalhão, de seu apelido Carrasco.

Carrasco de nome e senhor de uma férrea disciplina militar que não se coadunava com a nossa vivência anterior de jovens civis, uns já licenciados, outros arrancados aos respectivos cursos superiores por completar (o Eugénio, então, no último ano do curso de engenharia electrotécnica do Instituto Superior Técnico). Acredito que muito terá sofrido este meu então camarada de armas subtraído, ademais, das suas leituras e tertúlias literárias estudantis.

Mas nem tudo foram espinhos para si, como nos dá conta no seu último post aqui publicado, Um Homem Bom (21/03/2011), em que nos relata a sua colocação em Portalegre como oficial miliciano e de uma vida de convivência com grandes vultos da Cultura e de não menor humanismo. Eis-nos, agora, perante a sua homenagem póstuma a Carlos Adrião Rodrigues em texto que ora se publica e em que sobressai o nobre sentimento da amizade cultivado em elevada medida:

“A notícia dada ontem (dia 10) pelo João Afonso dos Santos abalou-me profundamente: o Adrião, como nós, afectuosamente, lhe chamávamos, tinha sido encontrado sem vida, de manhã, na sua cama: ar sereno, olhos fechados, as mãos cruzadas no peito, morrera, provavelmente, durante o sono. Foi como se, de repente, me roubassem, num minuto negro, toda a minha juventude. Num texto que me dedicou, o Adrião começava por citar Rilke, segundo o qual, a nossa pátria é a nossa juventude. A minha juventude foi, sobretudo, a que tive em Lourenço Marques – uma juventude cheia, variada, estimulante, não raro perigosa, por causa dos combates que travávamos, com alegria e algum desprezo pelas consequências: combates culturais, políticos, cívicos, enfim, combates... O Adrião estava sempre presente, quando não era ele mesmo que os iniciava, disponível, cheio de ideias e astúcias, que lhe vinham com uma naturalidade bem humorada e pachorrenta. A sua bonomia inquebrantável amaciava qualquer frenesi ou terror que ocasionalmente visitasse os bem intencionados menos afoitos.

No Cine–Clube, de que foi presidente, mais de uma vez, desenvolveu, com um dinamismo discreto mas altamente produtivo, uma actividade impressionante. Graças a ele, num período de censura altamente repressiva, vimos ali, numa Lourenço Marques remota e mágica, todos os grandes clássicos do cinema americano, inglês, russo, polaco, checoeslovaco, húngaro, italiano, francês, japonês. Muitos deles, sobretudo os dos países de leste, só foram vistos em Lisboa depois do 25 de Abril, quando nós já os tínhamos gozado, traduzido e profusamente comentado, muito antes, em Moçambique. Graças, em grande parte, à complacência envergonhada de um censor monárquico...

No Cine–Clube, n’A Voz de Moçambique, na Tribuna, no Teatro de Amadores de Lourenço Marques (TALM), do Mário Barradas, a presença influente e activa do Adrião era obrigatória, fecunda e indispensável. Moçambique ficou a dever muito ao Carlos Adrião Rodrigues, como dinamizador cultural e como advogado sorridente, bem informado, plácido, lento no andar, mas rápido na acção e intrépido no ataque, surpreendendo o adversário com a sua modéstia sossegada. O Craveirinha, o Luís Bernardo Honwana, o Virgílio de Lemos foram apenas alguns dos que o Adrião defendeu, em julgamentos públicos que marcaram uma época.

Já na independência de Moçambique, o Banco de Moçambique e Moçambique ficaram a dever à integridade e competência de Adrião Rodrigues serviços inestimáveis. Serviços que prestava sem alarde, com inteligência e, se necessário, com alguma matreirice construtiva e não pouco daquela alegria gozada de estar a dar uma volta às coisas.

Com a inesquecível Quina, sua mulher, a casa deles era uma porta aberta para os amigos que dela usavam e abusavam, porque nunca dali vinha o mais pequeno tique de impaciência. Mas foi o seu comprometimento político – apetecer-me-ia dizer, antes, ético – mesmo feito sem foguetes e sem provocações vistosas, que fez dele, a certa altura, no Moçambique colonial, o inimigo público nº 1 da PIDE e do “establishment” em vigor. Andar com o Adrião, ser amigo do Adrião era ficar pestiferado para toda a eternidade. Um cônsul francês, em Lourenço Marques, galardoado com a Legião de Honra e ex-gente grande do Le Monde, que se fizera meu amigo devido à minha assumida francofilia, entregara-me a tarefa de ali constituir uma Alliance Française, mas acabaria por se virar contra mim, por eu andar em más companhias. De poucas “más companhias” me orgulho tanto como da companhia do Adrião. E poucas coisas me têm magoado tanto como certos comportamentos de “real politik” da pátria da liberdade, igualdade e fraternidade.

Tinha com o Adrião, com o João Afonso dos Santos e com o Fernando Magalhães uma tertúlia mensal, aqui em Cascais, na primeira terça feira de cada mês. A tertúlia vai continuar e o Adrião vai continuar a estar presente. Estar presente, nos momentos difíceis, foi sempre o lema dele”.

Eugénio Lisboa

Na imagem: fotografia da "remota e mágica" Lourenço Marques.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

"E depois inventa-se uma história para explicar tudo"

Paula Rego, "a nossa pintora em Londres", recebeu na passada semana, em Portugal, uma distinção académica importante: o Doutoramento Honoris Causa, pela Universidade de Lisboa. Disse nessa ocasião: «Tudo o que se faz é às escondidas, portanto pode-se fazer o que se quiser. Pode-se castigar quem não se gosta e quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo.»

Na infância, sempre na infância, pode encontrar-se a formação da capacidade de Paula para inventar e reiventar histórias que "explicam tudo" o que existe no mundo real e noutros que, não sendo reais, não deixam de o ser. Neste caso, a solidão ajudou a formar o pensamento e a dar jeito à mão que o exterioriza. Assim ela o conta frequentemente, e o dá a conhecer por escrito John McEwen, crítico de arte que há trinta anos se deixou envolver pela fantasia pictural que os quadros mágicos deixam perceber:

"O quarto de dormir da Paula era no andar de cima, autêntico refúgio para uma filha única. Ao contrário da animação em casa dos avós, onde lhe era permitido estar na cozinha, e onde a avó ajudava a preparar as refeições, a vida com os pais seguia um ritual estrito. Levavam uma vida retirada, e não queriam que a Paula convivesse com os criados. Acrescentar que nessa época ainda não havia televisão. As crianças, muito mais do que hoje em dia, tinham que arranjar maneiras de se entreter. O grande recurso para a Paula eram os brinquedos, sobretudo um teatro espanhol que tinha pertencido ao pai; e os desenho. Acima de tudo - desenhar. Conta a mãe:

Lá estava ela constantemente a fazer um som na sala - bum, bum, bum - sem parar. Era um sossego ouvir aquele som - porque enquanto ela entoava aquele bum, bum, eu sabia «Ah, a Paula está contente. Está a desenhar, está contente.» E, sabe, uma coisa, ela continua a fazer aquele barulho - bum, bum, bum, e continua a desenhar no chão - ainda hoje, depois de todos estes anos.

A pintura é uma actividade solitária, e Paula achou sempre que o isolamento da sua infância foi uma bênção. «Aqueles anos de infância passados assim, sozinha num quarto foi o melhor treino que podia haver para uma artista».

Mas a actividade criadora criadora não era a única coisa que a mantinha feliz agarrada ao quarto. «Foi no Estoril que eu primeiro tive consciência do mundo exterior, de uma realidade fora de casa - e isso aterrorizava-me ao máximo. Minha mãe diz que eu tinha medo das moscas, me eu tinha medo de tudo. Até as outras crianças me assustavam. Era horrível quando eu me encontrava lá fora. Um autêntico pavor». Felizmente que a praia não tinha o mesmo efeito. A praia era para ela um quarto de brinquedos ao ar livre.

Não há dúvida que o talento artístico de Paula algo ficou a dever à mãe. É aliás através da mãe que ela é uma prima afastada de Vieira da Silva, mulher também, e a figura artística portuguesa mais célebre internacionalmente. Maria Rego, que hoje se recusa a levar a sério os seus esforços como pintora, chegou a frequentar, muito jovem, uma escola de arte em Lisboa, actividade considerada mais convencional no meio português do que em Inglaterra. maria continuou com a pitura a óleo durante largo tempo, já casada. Luzia, a velha criada, que se ocupava de Paula, ainda hoje tem um pequeno quadro de Maria, sensível e de hábil factura."

Referência:
McEwen, J. (1998, 2.ª edição). Paula Rego. Lisboa: Quetzal Editores (tradução de Alberto Lacerda), página 18.

"Fui-me às palavras, roubei-as e, com elas, fiz cantigas"

Manuel Freire ficará sempre ligado a António Gedeão. Vai para meio século que a bela música de um (nos) tem dado a ouvir as belas palavras de outro. Mantendo-se as palavras do poeta, a música do trovador reinventa-se e surpreende. Talvez porque tais palavras apelam a múltiplas formas de as cantar.

Em 1996, no Jornal de Letras (Educação, página 20) Manuel Freire explicava como tinha "tropeçado" nas palavras de um tal senhor de nome António Gedeão...

"Um dia ao praticar um dos meus desportos favoritos, a leitura, tropecei num livro de poesia de um senhor chamado António Gedeão. descobri depois que este senhor, por mistério jeckillydiano, era também o autor de um compêndio liceal, pelo que era suposto eu estudar (pouco)...

Mas, mais do que tropeçar no livro, aconteceu-me esbarrar frontalmente com alguns conjuntos de palavras que lá vinham, choque esse acompanhado de comichão nos dedos, vibrações nas cordas vocais, tremores e palpitações (estes e estas internos).

Abreviando; fui-me às palavras, roubei-as e, com elas, fiz cantigas.

Depois houve discos, um programa de televisão muito importante chamado Zip-Zip e passaram trinta anos. Trinta anos durante os quais aquelas palavras e outras que o mesmo senhor escreveu foram correndo mundo, tocando ouvidos, aquecendo muitos corações, saindo de muitas bocas, entrando até talvez em alguns cérebros!...

Ao longo desses trinta anos, de terra em terra, fui companheiro de viagem dessas palavras, cantando-as, dizendo às pessoas que as havia escrito por mim e, até, imagine-se!, ganhado algum dinheiro com isso!...

A essas palavras devo amigos e tantas outras coisas, que, por nunca as poder pagar e por prudência ou pudor de caloteiro, não referirei. A essas palavras e a quem as juntou, a quem lhe deu música que eu não inventei, mas só descobri.

Num mundo cada vez mais feio, porco e mau, as pessoas especiais como António Gedeão são as que nos fazem acreditar que esse mundo pode ser, que o podemos fazer, que temos de o fazer, um pouco mais lindo, mais limpo, melhor são os imprescindíveis!

O António Gedeão não merecia este texto; mas que fazer? Eu sou bom é com as palavras dele e estas são as minhas."

Mais do que escrever palavras em forma de poema, mais do que dar-lhes som em forma de música, Gedeão e Freire envolvem, chamam alunos para as ler e as cantar, como aconteceu ainda recentemente na Escola EB 2/3 de Ansião (ver aqui).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Carlos Pinto Coelho

Fui colega dele na tropa, ou melhor, nos seus começos, ambos cadetes da Escola Prática de Administração Militar (EPAM), no Lumiar, em Lisboa. Fazíamos parte do curso de Acção Psicológica do Exército Português, e éramos muito poucos, uma dúzia se tanto, de jovens cadetes do 1.º Ciclo. Isto nos idos de 70, mais coisa menos coisa.

Depois separámo-nos, ele nunca mais me viu, nem com ele contactei, mas continuei a vê-lo muitos anos depois, nas televisões, em noticiários, programas de fim de semana, em reportagens e sobretudo no Acontece, que foi, pela simplicidade, a economia de tempo e meios, a originalidade, um acontecimento cultural, durante anos; um momento diário, vivo e rico, numa televisão pesada, balofa e com alguma fobia cultural.

Nesses verdes anos era jornalista do Diário de Notícias e estava no começo de uma carreira, que a tropa acabava de interromper, como a muitos de nós. À conta dele, e por diligência sua, fomos, enquanto cadetes, fazer uma visita de estudo a essa instituição do Regime que era o Diário de Notícias. Uma visita informal, à noite, em regime pós-laboral, se assim se pode dizer, mas com intuitos educativos e culturais, por que não? E até fomos recebidos pelo director do jornal, o impagável homem de salão que era Augusto de Castro, e pelo subdiretor, Fernando Fragoso, suponho. Andamos pelas salas de redação, de paginação, de impressão, era ainda no tempo das grandes rotativas e dos linotypes, da impressão a chumbo, que era uma maravilha de técnica e de invenção. Imagino que os antigos jornalistas terão muitas saudades desse tempo, apesar das enormes vantagens e possibilidades dos actuais computadores. Dessa visita veio notícia no próprio jornal, mas sem fotografia, que, contudo, nos foi tirada. Pinto Coelho andou por lá mexendo os cordelinhos para que não saísse “boneco” do acontecimento porque nós, como cadetes, não podíamos andar à paisana, e era, portanto, melhor não criar problemas.

Era um tipo vivo, inteligente, simpático, fraternal, amigo dos seus amigos, e que sabia ser, ao mesmo tempo, frontal e diplomático. Mas, tanto quanto me pude aperceber, um bom vivant, de que, pelos vistos, não se corrigiu, e ainda bem. Conhecia, já nessa altura, imensa gente, contava histórias do meio jornalístico, estava ainda muito marcado pela sua infância e juventude moçambicanas, e acabava por ser, por estes trunfos, uma mais-valia, do nosso curso, face aos comandos da Escola Prática.

Guardo dele uma pequenina memória pessoal, de que nunca me esqueci e que me foi, durante anos, grato recordar. Eu tinha acabado o meu curso e conseguira, nas vésperas da incorporação, terminar a tese de licenciatura. Este trabalho era, então, obrigatório para se ficar de facto licenciado, mas poucos faziam a tese; uns, porque começavam a trabalhar e deixavam de ter tempo, outros, porque casavam, outros, porque iam para a tropa e perdiam o jeito e o feitio, etc. A expansão do sistema educativo e a grande procura de professores, nessa altura, acabava por, na prática, dispensar esse complemento de formação, a que a Revolução veio dar fim pelo modelo habitual da extinção.

Mas eu, que tivera a felicidade de ter, anos antes, nos começos do curso, uma ideia entusiasmante para a minha tese, trabalhei afincadamente nela e consegui terminá-la justamente antes desse incorporação. Mas como ainda não a tinha defendido em acto, andava, nas minhas horas livres, pela parada da EPAM e pela sala dos cadetes, com o calhamaço debaixo do braço, lendo passagens, fazendo anotações nas margens, enfim, preparando a minha defesa.

Até que o Carlos Pinto Coelho deu por isso e me pediu para ver. Era um tema abstruso e inesperado (Da infinidade – ensaio sobre a essência da natureza infinita ou análise dos limites possíveis à consciência). Afastou-se, foi para outra mesa, e sozinho, durante um bom pedaço de tempo folheou da frente para trás e detrás para a frente as mais de seiscentas páginas, viu o índice, leu algumas partes, e depois, teve uma atitude inteligente e disse-me isto mais ou menos: o tema é-me algo estranho, como deves calcular, mas tenho feito muita recensão crítica a livros que enviam para o jornal, e por aquilo que vi e li, embora pouco, parece-me sólida e bem estruturada a tua tese, gosto da linguagem, palpita-me que tens aí algo de interessante e original; portanto, força! Nunca me esqueci desta sua atitude cuidadosa e estimulante, mostrando consideração por um trabalho que, ao tempo, era tudo para mim.

Esta memória e esta evocação é, pois, uma pequena homenagem a um Amigo que cheguei a ter há muitos anos.

João Boavida

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