Fui colega dele na tropa, ou melhor, nos seus começos, ambos cadetes da Escola Prática de Administração Militar (EPAM), no Lumiar, em Lisboa. Fazíamos parte do curso de Acção Psicológica do Exército Português, e éramos muito poucos, uma dúzia se tanto, de jovens cadetes do 1.º Ciclo. Isto nos idos de 70, mais coisa menos coisa.
Depois separámo-nos, ele nunca mais me viu, nem com ele contactei, mas continuei a vê-lo muitos anos depois, nas televisões, em noticiários, programas de fim de semana, em reportagens e sobretudo no Acontece, que foi, pela simplicidade, a economia de tempo e meios, a originalidade, um acontecimento cultural, durante anos; um momento diário, vivo e rico, numa televisão pesada, balofa e com alguma fobia cultural.
Nesses verdes anos era jornalista do Diário de Notícias e estava no começo de uma carreira, que a tropa acabava de interromper, como a muitos de nós. À conta dele, e por diligência sua, fomos, enquanto cadetes, fazer uma visita de estudo a essa instituição do Regime que era o Diário de Notícias. Uma visita informal, à noite, em regime pós-laboral, se assim se pode dizer, mas com intuitos educativos e culturais, por que não? E até fomos recebidos pelo director do jornal, o impagável homem de salão que era Augusto de Castro, e pelo subdiretor, Fernando Fragoso, suponho. Andamos pelas salas de redação, de paginação, de impressão, era ainda no tempo das grandes rotativas e dos linotypes, da impressão a chumbo, que era uma maravilha de técnica e de invenção. Imagino que os antigos jornalistas terão muitas saudades desse tempo, apesar das enormes vantagens e possibilidades dos actuais computadores. Dessa visita veio notícia no próprio jornal, mas sem fotografia, que, contudo, nos foi tirada. Pinto Coelho andou por lá mexendo os cordelinhos para que não saísse “boneco” do acontecimento porque nós, como cadetes, não podíamos andar à paisana, e era, portanto, melhor não criar problemas.
Era um tipo vivo, inteligente, simpático, fraternal, amigo dos seus amigos, e que sabia ser, ao mesmo tempo, frontal e diplomático. Mas, tanto quanto me pude aperceber, um bom vivant, de que, pelos vistos, não se corrigiu, e ainda bem. Conhecia, já nessa altura, imensa gente, contava histórias do meio jornalístico, estava ainda muito marcado pela sua infância e juventude moçambicanas, e acabava por ser, por estes trunfos, uma mais-valia, do nosso curso, face aos comandos da Escola Prática.
Guardo dele uma pequenina memória pessoal, de que nunca me esqueci e que me foi, durante anos, grato recordar. Eu tinha acabado o meu curso e conseguira, nas vésperas da incorporação, terminar a tese de licenciatura. Este trabalho era, então, obrigatório para se ficar de facto licenciado, mas poucos faziam a tese; uns, porque começavam a trabalhar e deixavam de ter tempo, outros, porque casavam, outros, porque iam para a tropa e perdiam o jeito e o feitio, etc. A expansão do sistema educativo e a grande procura de professores, nessa altura, acabava por, na prática, dispensar esse complemento de formação, a que a Revolução veio dar fim pelo modelo habitual da extinção.
Mas eu, que tivera a felicidade de ter, anos antes, nos começos do curso, uma ideia entusiasmante para a minha tese, trabalhei afincadamente nela e consegui terminá-la justamente antes desse incorporação. Mas como ainda não a tinha defendido em acto, andava, nas minhas horas livres, pela parada da EPAM e pela sala dos cadetes, com o calhamaço debaixo do braço, lendo passagens, fazendo anotações nas margens, enfim, preparando a minha defesa.
Até que o Carlos Pinto Coelho deu por isso e me pediu para ver. Era um tema abstruso e inesperado (Da infinidade – ensaio sobre a essência da natureza infinita ou análise dos limites possíveis à consciência). Afastou-se, foi para outra mesa, e sozinho, durante um bom pedaço de tempo folheou da frente para trás e detrás para a frente as mais de seiscentas páginas, viu o índice, leu algumas partes, e depois, teve uma atitude inteligente e disse-me isto mais ou menos: o tema é-me algo estranho, como deves calcular, mas tenho feito muita recensão crítica a livros que enviam para o jornal, e por aquilo que vi e li, embora pouco, parece-me sólida e bem estruturada a tua tese, gosto da linguagem, palpita-me que tens aí algo de interessante e original; portanto, força! Nunca me esqueci desta sua atitude cuidadosa e estimulante, mostrando consideração por um trabalho que, ao tempo, era tudo para mim.
Esta memória e esta evocação é, pois, uma pequena homenagem a um Amigo que cheguei a ter há muitos anos.
João Boavida
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
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1 comentário:
Caro,
Obrigado por um bom texto. Agora, por favor, corrija-me lá a "resenção" do último parágrafo para "recensão". Você e o CPC não merecem gralhas.
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