quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
A BIOLOGIA COMO PASSADO E FUTURO DA FÍSICA
Texto, ligeiramente editado, do meu livro "A Coisa Mais Preciosa que Temos" (Gradiva), que se encontra esgotado:
Fala-se hoje muito das extraodinárias proezas da biologia moderna: por exemplo, a clonagem de seres vivos, que já foi feita em mamíferos e que poderá ser feita em seres humanos; e, outro exemplo, a decifração do genoma de seres vivos, que já foi feita de forma completa para alguns animais, incluindo os humanos. Decerto que o que hoje se faz e discute é apenas uma pálida imagem do “admirável mundo novo” que está para vir. Muito do que ainda não se fez será provavelmente feito. Curar doenças hoje incuráveis, reparar órgãos deficientes, prolongar a vida humana para além dos actuais limites são possibilidades hoje em aberto que, mais cedo ou mais tarde, serão concretizadas. Ao mesmo tempo, algumas consequências de uma intervenção artificial nos processos, até agora apenas naturais, da evolução biológica levantam sérias dúvidas, decerto fundadas e legítimas, sobre as fronteiras não do possível, mas do permissível. Será o anunciado mundo novo um sonho ou um pesadelo? Não sabemos, talvez uma mistura dos dois, restando apenas saber em que proporções. Como disse o físico Niels Bohr “As previsões são sempre difíceis, mas são-no principalmente quando se referem ao futuro.”
O nosso actual conhecimento do mundo da biologia, assim como a panóplia de possibilidades técnicas que com base nele se entreabrem, baseia-se no conhecimento do mundo físico-químico. Hoje sabemos que os átomos de que os seres vivos são feitos obedecem às mesmas leis físicas que quaisquer outros átomos: trata-se das leis da mecânica quântica, o capítulo da física que ficou concluído em finais dos anos vinte do século passado por um grupo de jovens (Heisenberg, Schroedinger, Dirac, etc.) depois do impulso inicial dado pelo “patriarca” Niels Bohr. Os seres vivos são feitos de células, que, por sua vez, são feitas de moléculas que, por sua vez, são feitos de átomos. Uma mão cheia de átomos diferentes chega para formar toda a matéria viva; no entanto, eles combinam-se em moléculas de uma maneira muito complexa, por vezes quase inextrincável. A vida assenta na simplicidade das leis físicas, mas a sua extraordinária riqueza reside na diversidade das formas e funções que essas leis permitem. A mais famosa das moléculas da vida é precisamente o ácido desoxiribonucleico (na sigla portuguesa, ADN), a molécula em dupla hélice que contém o código genético – isto é, o “arquivo” do funcionamento da vida – que, para muitas espécies, foi já decomposto nos seus numerosíssimos elementos. O ADN foi descoberto em 1953 pelo físico Francis Crick e pelo biólogo James Watson, um feito que lhes valeu em 1962 o Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia e que se encontra relatado em primeira mão no livro “A Dupla Hélice” de James Watson, um verdadeiro clássico da divulgação científica que entre nós foi publicado pela Gradiva.
Francis Crick era um físico, adestrado nas técnicas da física, como a difracção por raios X, que serviram para descobrir a estrutura do ADN. Por seu lado, James Watson não era físico, mas conta no seu livro “A Passion for DNA: Genes, Genome and Society” (Cold Spring Press, 2000) como um livro de um físico – designadamente o austríaco Erwin Schroedinger, co-fundador da mecânica quântica - lhe mudou a vida. Aluno de licenciatura na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, o jovem Watson interessava-se por pássaros, quando, no livro de Schroedinger “O que é a Vida?” (existe uma edição portuguesa da Fragmentos, 1989) leu que o segredo da vida era o gene. Pois se o segredo da vida era o gene, Watson não hesitou em trocar os pássaros pelos genes. De excelente mas ignorado ornitologista passou a ser um dos mais célebres, talvez mesmo o mais célebre geneticista. No livro de Schroedinger, que influenciou não só Watson mas toda uma geração de biólogos, não se forneciam ainda soluções completas para a questão enunciada do título, mas apontavam-se pistas certeiras. Eram referidos, por exemplo, os trabalhos sobre os genes do físico Max Delbrueck, discípulo de Bohr que trocou uma promissora carreira de físico por uma ainda mais promissora carreira de biólogo molecular. Não é um facto muito conhecido, mas a biologia molecular é, de facto, obra dos físicos. Bohr encorajou alguns dos seus mais brilhantes discípulos a trocarem a física pela biologia, uma vez que a primeira estaria “completa” com o estabelecimento da teoria quântica e a segunda estaria “por completar” precisamente por via dessa mesma teoria. Os grandes mestres distinguem-se, além do mais, por sugerirem caminhos de futuro para os seus alunos, a partir de em previsões sagazes! Que os grandes mestres também se enganam é confirmado pela defesa que Bohr fez, a certa altura da sua vida, de que seriam necessárias novas leis para a biologia, complementares das leis da física: não são, a biologia está de certo modo toda contida nas equações fundamentais da física.
E o futuro, se é que sobre ele são permitidas previsões? Se a biologia molecular foi obra de físicos esclarecidos, poderá a biologia do futuro ser também obra de físicos? Hoje os biólogos são bastante mais que os físicos (basta ver o espaço que os seus artigos ocupam nas revistas científicas mais importantes, como a Nature e a Science). Os alunos de Biologia também são bastante mais (e, em média, melhores) do que os alunos de Física. Os dinheiros investidos na investigação biológica são bem mais do que os dinheiros investidos na pesquisa física. Finalmente, os perigos potenciais de utilizações desumanas dos conhecimentos da Biologia são bem maiores, se é que se podem quantificar, do que os perigos do mesmo tipo baseados directamente na Física. Assim como a Física foi a ciência de ponta do século XX, a Biologia poderá bem ser a ciência de fronteira do século XXI. Mas continuarão os físicos a ser precisos?
Sim: não só serão precisos como serão indispensáveis. Trabalharão cada vez mais em cooperação com os biólogos, sendo na actividade conjunta de certo modo espúria a distinção entre as disciplinas. A biofísica é tanto biologia como física, sendo hoje um domínio de ponta de uma e de outra. A biologia moderna não é a continuação da física com outros meios, mas é a continuação da física com os mesmos meios, os mesmos instrumentos, o mesmo estilo de pensar. O ADN foi identificado, nos anos 50, usando técnicas físicas de raios X. Os segredos genéticos contidos no ADN estão a ser decifrados usando métodos que são mais da física e da informática do que propriamente da biologia clássica. Os princípios, subjacentes à busca do código genético, de simplicidade e elegância (em doses que bastem) foram apreendidos na física.
Watson, que foi director do Projecto do Genoma Humano (o projecto público para a decifração dos genes humanos, que esteve em competição com o projecto privado, dirigido por Craig Venter) conhece bem a importância dos princípios da física e do seu braço armado que é formado pela electrónica, pelo hardware e pelo software. O jovem Watson leu no livrinho de Schroedinger este passo:
“Até que ponto a física e a química poderão explicar, no espaço e no tempo, os fenómenos que ocorrem dentro dos limites espaciais de um organismo vivo? (...) A manifesta incapacidade da Física e da Química actuais [em 1943, quando o austríaco Schroedinger, fugido ao nazismo, proferia as suas conferências públicas no Trinity College, na cidade irlandesa de Dublin] para explicar estes fenómenos não implica, de modo nenhum, que se possa pôr em dúvida que esses fenómenos sejam demonstráveis por ambas as ciências.”
Leu, acreditou e porfiou para o conseguir. Mas há ainda muito a fazer...
Schroedinger previu correctamente o futuro da física e da biologia. E o jovem Watson, depois de ter lido o livro de divulgação de Schroedinger, dedicou-se a concretizar essa previsão. Hoje, há jovens estudantes, não interessa se de física ou de biologia, a ler com entusiasmo A Dupla Hélice ou os livros mais recentes de Watson sobre o genoma humano...
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9 comentários:
Os alunos de Biologia também são bastante mais (e, em média, melhores) do que os alunos de Física.
Pena que com alguns investigadores na Biologia isso não aconteça...
O que me preocupa, na evolução do conhecimento da vida, é que os biólogos, bioquímicos e outros aprendizes da vida, estejam hoje a ser preparados com insuficientes domínios de matemática e física (até química). Essas ferramentas são cada vez mais indispensáveis para escrutinar os processos biomoleculares...
AP
AP, discordo completamente.
"ADMIRÁVEIS MUNDOS NOVOS"
Estranho mundo novo nos aguarda
em todos os sentidos e aspectos,
um mundo sem prostíbulos nem guetos,
um novíssimo mundo... que não tarda!
Os físicos, os químicos, a par
dos sábios magos da biologia
que avança a passos largos dia a dia,
vão permitir a vida prolongar.
Sem doenças incuráveis, debeladas
pelos cuidados médicos prestados
em condições nunca antes alcançadas,
os povos vão sentir-se afortunados,
só lhes faltando navegar nos céus
e face a face conversar com Deus!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Altero o título para:
"ADMIRÁVEL MUNDO NOVO"
JCN
Se quisermos ficar fechados neste planeta os biólogos são suficientes, mas para procurar vida extraterrestre são necessários os físicos. O ADN é muito importante na Terra, mas na vida em geral, em todo o universo, outras moléculas podem ser mais importantes. A vida parece ser ordem no caos e nada mais que isso. Será que a vida é importante no universo ou é apenas um efeito secundário das aglomerações provocadas por a gravidade? É uma questão importante. Na minha opinião a vida é secundária; pode haver universo sem vida, mas não pode haver vida sem universo.
Que piada teria a vida... sem universo?! JCN
Nenhuma piada. Por isso mesmo.
Repare que quis demonstrar o que é mais importante, dado que a Ciência e a Filosofia tendem a partir do seguinte ponto: homem é o centro do universo e a razão de este existir.
É apenas um trocadilho para bom entendedor.
Um abraço!
Se trocadilho é piada,
já me dou por convencido,
faltando só dar sentido
a esta espécie de charada!
JCN
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