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sábado, 16 de março de 2013

A química do cérebro de Dostoievski a Ian McEwan


Texto a propósito da semana internacional do cérebro.

Numa das partes de os Irmãos Karamazov de Dostoievski, Dmitri Fioderovich está preso e refere ao irmão Aleksei, que o visita, os estudos de Claude Bernard sobre o sistema nervoso e associa esses estudos à química. O seu discurso é pouco coerente, dizendo qualquer coisa como: É a química irmão! Na cabeça há nervos e os nervos têm rabinhos. É por causa desses rabinhos e não porque tenho alma que contemplo e depois penso. É magnífica esta ciência! Tenho pena de Deus!


Claude Bernard foi um pioneiro dos estudos modernos da fisiologia humana, em particular da fisiologia do cérebro e do sistema nervoso. Mas foi também um entusiasta da literatura. Na verdade tornou-se um grande fisiologista porque descobriu não ter talento literário suficiente, embora tivesse escrito livros que influenciaram de forma profunda a medicina como a Introdução ao estudo da medicina experimental, publicada em 1865. Dostoievski possuia uma cultura e educação científicas bastante alargadas e foi, como Zola, um admirador de Bernard. No entanto, embora Dmitri pareça completamente convencido (ainda que angustiado com essa perspectiva) de que a ciência pode substituir Deus e que a química pode substituir a alma, nem Dostoievski nem Aleksei estão assim tão convencidos. A fisiologia não é, com certeza, suficiente para dar sentido à vida humana nem essa é uma questão que a ciência possa responder.

Sábado de Ian McEwan passa-se num só dia. Henry Perowne tem um incidente de trânsito com um jovem, Baxter, que revela ter uma doença genética incurável que provoca alterações neurológicas e de comportamento, a doença de Huntington. Perowne, ao longo do livro vai reflectindo sobre a ciência, as neurociências e a genética, em particular sobre a química do cérebro e das emoções e comportamento. No início do século XXI sabemos coisas que Dostoievski e, provavelmente, Bernard nunca suspeitaram, mas a química continua a ser importante. Embora não se saiba ainda exactamente como funciona o cérebro, conhece-se infinitamente mais sobre a sua fisiologia e mecanismos bioquímicos e químicos que no tempo de Bernard.

Contrariamente aos Irmão Karamazov, Deus não aparece em nenhum momento de Sábado. Mais de um século depois de Dostoievski ter publicado o seu livro, as pessoas, pelo menos no mundo ociedental, sentem-se seguras, não sofrem tanto fisicamente, a mortalidade infantil é baixa e não parecem precisar de Deus. Mas no Sábado aparece a literatura. A filha de Perowne, Daisy, quer convencê-lo de que a literatura é importante para as pessoas, mas este tem dificuldade em aceitar isso. Não acha que as pessoas precisem de histórias e narrativas. Acha que Madame Bovary e Anna Karenina estão bem escritos, dando muitos detalhes sobre as vidas, dilemas e sofrimento das pessoas numa determinada época, mas não revelam com precisão o comportamento humano.

Mais tarde, Baxter vai a casa de Perowne acompanhado de um cúmplice e aterroriza a sua família com uma faca. E é neste momento que a literatura se tornou importante para Perowne. O jovem fica impressionado com um poema de Matthew Arnold que Daisy cita e o seu cúmplice abandona a casa. Em seguida, quando Perowne propõe mostrar-lhe um estudo sobre uma possibilidade de alívio da doença, conseguem dominar Baxter.

Jonah Leher, em Proust era um neurocientista, apresenta Sábado como um livro que testa uma quarta cultura, propondo uma relação harmoniosa entre a literatura e a ciência, indo para além da famosa discussão de Snow e do conflito entre as duas culturas, a terceira cultura. Não precisamos de definir tantas culturas, todas confluem na mesma. Arnold, cujo poema fascínou Baxter, escreveu em 1882 um ensaio, em resposta a Huxley, numa altura em que a separação entre culturas começava a ser irremediável e favorável à ciência, no qual defendia a harmonia entre literatura e ciência. Para Bernard, Dostoievski e quase todos os homens de ciência e literatura que viveram no século XIX esta discussão pareceria, com certeza, absurda.

No famoso poema de Emily Dickinson, o cérebro é mais vasto do que o céu, mais profundo do que o mar e tem o peso de Deus. Muitas vezes a terceira parte deste poema não é referida. Talvez Deus não seja necessária na equação para entendermos o cérebro. As angústias de Dmitri Fioderovich parecem-nos ridículas. Mas de qualquer forma, para entendermos verdadeiramente o cérebro e o comportamento humano não basta com certeza conhecer apenas os reagentes da sua química, é também necessário seguir os produtos da sua imaginação.

Bibliografia adicional

Fiorenzo Conti, Claude Bernard’s Des Fonctions du Cerveau: An ante litteram manifesto of the neurosciences? Nature Reviews Neuroscience 3 (2002) 979-985.

Michael R. Katz, Dostoevsky and Natural Science, Dostoevsky Studies 9 (1998) 63.


terça-feira, 20 de março de 2012

Livros com química: a memória, o sono e o sonho

A propósito da Semana Internacional do Cérebro, e ainda com base na palestra Livros com Química, recordo alguns livros que nos podem conduzir à química da memória, sono e sonho.

O livro Cem anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques, escrito em 1967, começa da seguinte forma:

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo.

Não é dito se o gelo que trazem os ciganos foi ou não obtido de forma artificial, embora muito provavelmente não tenha sido. A produção artificial de gelo só pôde começar a ser realizada em larga escala com os estudos termodinâmicos sobre a expansão dos gases. E, embora lá pelo meio do livro, alguns dos filhos do coronel acabem por ter uma fábrica de gelo, não temos pormenores sobre esta no livro. Também no início do livro, o cigano Melquíades traz utensílios para a construção de um laboratório rudimentar de alquimia e, ao longo da narrativa, este laboratório, assim como alguns resultados alquímicos, vão reaparecendo. Porque se lembrou daquele momento da sua infância o Coronel? A química da criação das memórias e do seu apagamento vai começando agora a ser desvendada. Se a impressão e a atenção que devotamos a um assunto ou situação são importantes, uma proteína conhecida como CREB e um neurotransmissor, a anandamina, parecem ter um papel importante no mecanismo bioquímico de fixação e apagamento das memórias.

É muito curioso, numa dada altura da história, o surgimento da peste da insónia, uma doença de realidade fantástica, que leva à perda da memória. Para evitar o esquecimento, colocam-se etiquetas com os nomes nas coisas, depois completadas com instruções de funcionamento. Por exemplo, isto é uma vaca, tem de se ordenhar. No meio de Macondo coloca-se a placa Deus existe. É feita uma máquina que permite recapitular todos os dias todos os conhecimentos, mas o poder do esquecimento é enorme. Os que queriam dormir, não por cansaço, mas por saudades dos sonhos, recorriam a todo o tipo de métodos de esgotamento. Esta parte do livro, leva-nos através do realismo mágico do autor, às questões do sono, da memória e do sonho. Por que dormimos e sonhamos? Qual é a relação entre o sono e a memória?

A química do sono e dos sonhos é fascinante e tem, na verdade, alguma relação com a memória. A adenosina tem um papel importante em lembrar que está na hora de dormir, embora pareçam existir vários mecanismos cerebrais responsáveis pelo sono. Durante o sono são produzidas menores quantidades dos neurotransmissores serotonina e norepinefrina e os processos nervosos são controlados essencialmente pela acetilcolina, a qual está na origem dos sonhos. Finalmente, o sono parece ser muito importante na formação das memórias e tanto o excesso como a baixa de acetilcolina parecem ter reflexos negativos nesta.

Ao longo do livro encontramos também vários venenos e remédios: noz-vómica, acónito, arsénico, etc. E as compressas de arnica revelam ser um remédio universal para as inflamações. Vamos encontrar este remédio também n'Os Maias de Eça de Queiroz (uma obra de que falaremos noutra altura) no episódio tragicómico que imagina Ega sobre a violência doméstica, seguida de reconciliação dos Cohen. Não nos surpreende que Ega possa imaginar e visualizar cenas que não está a ver ou nunca viu, porque fazemos coisas idênticas a todo o momento mas, se pararmos um pouco para pensar, trata-se de uma coisa verdadeiramente notável, cuja química não deve ser muito diferente da que está envolvida nos sonhos e memória.

Mas voltando aos sonhos. Um dos livros mais influentes de Freud é a Interpretação dos Sonhos. Freud, que começou a sua carreira na química, passou para a zoologia e finalmente chegou à medicina, em muitos aspectos estava errado como têm demonstrado a neurofisiologia e a neuroquímica, e, nas suas experiências, estava muitas vezes mais próximo do Dr. Jekyll de Stevenson que de um cientista moderno. De qualquer forma, dado o seu primeiro interesse científico, não é de estranhar que haja bastantes referências à química e a produtos químicos nesse livro. Curiosamente, um dos sonhos do livro é o do jovem químico que quer livrar-se do que considera ser um vício desagradável, tentando alterar o seu comportamento social. Este sonha com um determinado tipo de reacções químicas, depois de um aluno ter tido um acidente no laboratório. Freud associa e interpreta todos estes dados de uma forma bastante criativa, vingando-se assim, quem sabe, de uma forma verdadeiramente freudiana do seu amor juvenil não correspondido pela química, algo que Freud não parece ter esquecido tão facilmente como as cartas para pessoas de quem não gostava.

Se esquecer algo pode ser mau, nunca esquecer pode ser muito pior. Em Funes o memorioso, um conto de Jorge Luis Borges, a questão do apagamento da memória revela-se de uma forma trágica, mostrando a importância fundamental do esquecimento. Funes memoriza todos os pormenores de tudo e não consegue esquecer nada. A sua memória acaba por ser, diz, uma lixeira. Para não sermos como Funes, temos a CREB e a anandamina para memorizar e esquecer, adormecemos com a adenosina e sonhamos com a dose certa de acetilcolina. E, como é óbvio, os mecanismos do sono, sonho e memória são muito mais complexos do que parecem aqui e há, com certeza, muitas coisas que ainda não sabemos sobre a química do cérebro.

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...