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terça-feira, 31 de maio de 2016

VIAJAR COM OS OSSOS: DA NOSSA HISTÓRIA NATURAL À RESOLUÇÃO DE CASOS CRIMINAIS.



CONVITE


Na próxima 5ª feira, 2 de Junho de 2016, pelas 18h realiza-se no RÓMULO Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, a palestra intitulada "Viajar com os ossos: da nossa história natural à resolução de casos criminais", com a professora Eugénia Cunha do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

Palestra inserida no ciclo Fronteiras da Ciência, coordenado por António Piedade, a decorrer até Julho de 2016.




RESUMO DA PALESTRA:
Os ossos, como tecidos duros do corpo humano, quando fossilizam, contam estórias sobre a nossa história natural. Por outro lado, quando passou pouco tempo desde a altura da morte e os tecidos moles já não são informativos, os ossos testemunham violações de direitos humanos e permitem devolver a identidade a quem a perdeu. São estórias dos ossos, que são intemporais, que se vão contar, uma viagem desde há 7 milhões de anos até ao presente.


ENTRADA LIVRE
Público-alvo: Público em geral

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

SEXO ENTRE NEANDERTAIS E HUMANOS MODERNOS

Texto primeiramente publicado na imprensa regional.



A história da evolução humana tem sido várias vezes alterada nas últimas décadas. Para isso têm contribuído pelo menos duas áreas da investigação antropológica: várias descobertas de novos fósseis em África, Ásia, Europa, Médio Oriente, Indonésia, entre outros locais; o desenvolvimento de novas e muito sensíveis técnicas de microextracção de ADN e sequenciação de genomas antigos. Qualquer uma destas áreas tem trazido novas e empolgantes informações sobre a evolução da nossa espécie. Contudo, os estudos genéticos têm permitido extrair muito mais informação para além dos achados fósseis e inclusive na ausência destes!

Prova disto, são dois artigos publicados nas duas últimas semanas nas revistas Science e Nature, ambos relacionados com estudos genéticos, que vêm agitar as águas em que navega a história da evolução humana.

Na Science, foi publicado um estudo que analisa a herança genética no nosso genoma proveniente do homem de Neandertal e que associa essa herança, de pouco mais de 2% do genoma humano moderno, com doenças como a depressão, o vício do tabaco, o enfarte do miocárdio e algumas lesões cutâneas.

Na Nature, foram publicados os resultados de uma análise do genoma de um neandertal cujos restos foram encontrados numa gruta situada nos Montes Altai da Sibéria, perto da fronteira entre a Rússia e a Mongólia. Estes resultados são surpreendentes. Eles mostram a existência de vestígios muito antigos de genes de homem moderno nos antepassados do neandertal analisado.

Este trabalho indica que poderão ter havido relações sexuais entre neandertais e humanos anatomicamente modernos há cerca de 100 mil anos. Ora isto implica que a data em que os primeiros Homo sapiens migraram de África para a Eurásia terá de ser reavaliada e muito antecipada. Recorde-se que os primeiros fósseis de Homo sapiens encontrados na Europa têm cerca de 45 mil anos, altura em que o continente europeu era povoado pelos neandertais. Pelo menos é isso o que os fósseis até agora encontrados nos dizem.

Antes deste estudo, pensava-se que a primeira vez que as duas espécies fizeram sexo teria sido há cerca de 47 a 65 mil anos (o que deixou no nosso genoma a herança de cerca de 2% de genes neandertais) e que o homem moderno teria saído pela primeira vez de África há 65 mil anos.

Estas novas análises mostram que o homem moderno que deixou a sua marca genética naquele neandertal encontrado na Sibéria, só pode ter pertencido a um grupo que migrou de África dezenas de milhares de anos antes do que os antepassados directos dos europeus e dos asiáticos actuais.

Contudo, a equipa internacional de cientistas que realizou o estudo admite saber muito pouco sobre esses primeiros migrantes. Sergi Castellano, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na Alemanha e coautor do estudo, sublinhou à AFP que as análises efectuadas “só” mostram que estes primeiros viajantes “se separaram bastante cedo dos outros homens modernos de África e que procriaram com neandertais há uns 100 mil anos”. Mas sublinha que “esta é a primeira prova genética da presença do homem moderno fora de África, apesar de ser indirecta, uma vez que não temos ossadas daqueles primeiros migrantes, mas apenas as marcas genéticas que deixaram nos neandertais”.

De qualquer forma, este estudo vem confirmar que houve cruzamentos com descendência fértil entre neandertais e Homo sapiens, e galvanizar a procura de vestígios fósseis dos primeiros homens modernos a chegar à Eurásia.


António Piedade

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

FRONTEIRAS DA CIÊNCIA EM COIMBRA


Comunicado de imprensa do Rómulo:

“Fronteiras da Ciência” é o novo ciclo de palestras destinadas ao público em geral que decorrerão no Rómulo Centro Ciência Viva da Universidade, entre 25 de Fevereiro e 15 de Julho do corrente ano. Esta iniciativa do Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade está ser coordenada por António Piedade, Bioquímico e Comunicador de Ciência.

Com este ciclo, constituído por 11 palestras, pretende-se dar a conhecer aos cidadãos interessados o estado actual do conhecimento científico em diversas áreas da ciência como sejam a Física, a Química, a Biologia, a Matemática, a Astronomia, a Antropologia, a Genética e a Saúde Humana. É um convite a uma viagem pelas fronteiras do conhecimento científico. Os palestrantes, convidados pelo Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade, são cientistas reconhecidos nacional e internacionalmente pela excelência da sua investigação científica e são também excelentes comunicadores da sua ciência ao grande público. Ao longo do ciclo, serão apresentados, numa linguagem acessível a todos, os desafios com que se deparam os cientistas das diversas áreas atrás indicadas e destacados os contributos para o nosso dia-a-dia resultantes do avanço do conhecimento científico.

É indicado a seguir a data de cada uma das palestras, o título e nome do respectivo palestrante:

 25 de Fevereiro – “Biogeografia da Cor”, por Jorge Paiva, Biólogo, Investigador no Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, galardoado com o Grande Prémio Ciência Viva 2014.

11 de Março – "Desafios da Química no século XXI”, por Paulo Ribeiro-Claro, Químico, Professor no Departamento de Química da Universidade de Aveiro.

 07 de Abril - “Determinismo e susceptibilidade: duas caras na fronteira da nova genética”, por Claudio E. Sunkel, Geneticista, Diretor do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e Vice-diretor do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S).

 21 de Abril – “Neuroestimulação: o bom, o mau e o desconhecido”, por Alexandre Castro Caldas, Neurocientista, Director do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, foi até 2004 Professor Catedrático de Neurologia na Faculdade de Medicina de Lisboa e Director do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria em Lisboa.

 28 de Abril – "Onde estão hoje as fronteiras da Física? Da matéria e energia escura aos sistemas complexos", por Carlos Fiolhais, Físico, Professor Catedrático do Departamento de Física da Universidade de Coimbra e Director do Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra

05 de Maio - "Um ESPRESSO para outros planetas", por Nuno Cardoso Santos, Astrónomo, investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e Professor da Universidade do Porto.

19 de Maio – "Apesar de tudo, a vida é feita de moléculas", por Miguel Castanho, Bioquímico, é Professor Catedrático de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, desde 2007, e sub-diretor desde 2011. Coordena o Instituto de Medicina Molecular. É Vice-Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

02 de Junho – “Viajar com os ossos: da nossa história natural à resolução de casos criminais”, por Eugénia Cunha, Antropóloga, Professora Catedrática do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra.

16 de Junho – "Matemática para o século XXI", por Jorge Buescu, Matemático, Professor Associado com Agregação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática.

 01 de Julho – “Melhoramento Humano”, por Alexandre Quintanilha, Físico e Biólogo, Professor Catedrático Jubilado da Universidade do Porto, investigador do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S). Deputado na Assembleia da República onde preside à Comissão de Educação e Ciência.

15 de Julho – “Envelhecimento”, por Miguel Godinho Ferreira, Biólogo Celular e investigador principal e director do grupo de investigação Telómeros e Estabilidade Genómica no Instituto Gulbenkian de Ciência.

Todas as palestras terão início pelas 18h00, com acesso livre ao público.
Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade está situado no piso 0 do Departamento de Física da Universidade de Coimbra.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Atapuerca escreve uma nova página no livro da evolução humana

Transcrevo, com a devida vénia, o texto que a reconhecida antropóloga Eugénia Cunha escreveu a meu pedido para o projecto Ciência na Imprensa Regional - Ciência Viva sobre os achados hominídeos em Sima de los Huesos e que hoje são tema de artigo extenso publicado na Science.

Crânio 17 de Sima de los Huesos em Atapuerca


Mais uma vez Atapuerca está na ribalta, desta vez não por causa duma nova descoberta mas sim pela análise de toda uma série de crânios que têm vindo a ser descobertos na Sima de los Huesos um autêntico tesouro, aparentemente inesgotável, de fósseis humanos. A página que desta vez é escrita sobre a evolução humana tem a ver com a origem dos neandertais, os nossos primos hominíneos mais próximos, com quem coexistimos até há 30 mil anos. O homem de Neandertal nasceu na Europa e, até aqui, acreditava-se que os Homo heidelbergensis (de Heidelberg onde foi descoberto o 1º fóssil desta espécie, em 1907) estariam na sua origem.

Ora, a possibilidade de analisar um conjunto de 17 crânios com cerca de 430 mil anos (pleno Pleistocénio Médio) provenientes dum único local é ímpar.

 A análise feita pela célebre equipa espanhola liderada por J.L. Arsuaga (Universidade Complutense, Madrid e Centro de Evolução Humana), agora publicada na revista Science, é exaustiva e foca-se sobretudo em caracteres não métricos do crânio apesar de também incluir algumas características métricas. Os resultados permitiram algumas conclusões importantes das quais destaco o facto destes fósseis da Sima, Atapuerca, não serem mais considerados como membros da espécie Homo heidelbergensis. Esta categoria taxonómica fica com fosseis como Arago (França) e Ceprano (Itália), e Mauer (Heidelberg) também do Pleistoceno Médio.

Coexistiram, assim, várias linhagens evolutivas no Pleistoceno Médio entre as quais a dos hominíneos da Sima de los Huesos que seriam os mais próximos filogeneticamente dos neandertais. Outra conclusão é que estes hominíneos também não são considerados neandertais, não obstante as apomorfias.

Cautelosamente, a categoria taxonómica dos fósseis da Sima fica em aberto. Cada vez mais, há evidências a favor de várias linhas evolutivas das quais só algumas terão conseguido seguir em frente. Curiosamente, este estudo vem ao encontro dos resultados preliminares da análise do ADN mitocondrial dos fósseis da Sima (Dezembro de 2013) que sugeriu que estes hominíneos estivessem mais próximos dos denisovianos (espécie contemporânea dos neandertais conhecida através de dados genéticos) do que dos neandertais. Merece destaque igualmente o facto da nova datação, resultante da aplicação de várias técnicas, tornar estes fosseis como os mais antigos (credivelmente datados) de hominíneos com características derivadas não partilhadas pelos ancestral comum (apomorfias).

Finalmente enfatizo o facto deste estudo permitir afirmar que foram as características faciais que primeiro evoluíram, ou seja, nem todas as particularidades cranianas mudaram ao mesmo tempo, o que é designado por evolução em mosaico. Este é um dado novo também sobre a evolução dos neandertais.


Eugénia Cunha (Departamento Ciências da Vida/Universidade de Coimbra)

terça-feira, 1 de maio de 2012

Um século depois de Piltdown: lições da maior fraude paleoantropológica.



Com a devida vénia, transcrevo aqui a primeira crónica que a Antropóloga Forense 
Eugénia Cunha elaborou para o projecto "Ciência na Imprensa Regional - Ciência Viva", 
e que já foi publicada em vários jornais regionais.

Há cem anos, a história da evolução humana ficou marcada pelo anúncio do que terá sido a maior fraude cometida nesta ciência. Era apresentado o primeiro homem, que não só era europeu como inglês. Foi a cereja em cima do bolo para os eurocentristas que conseguiram a incrível proeza de fazer prevalecer o homem de Piltdown como o primeiro homem durante 41 anos. Efectivamente, só em 1953 a fraude foi desmascarada: tratava-se de uma mandíbula de orangotango cuidadosamente adaptada para articular num crânio humano moderno.

Os criadores da fraude conseguiram mitigar a sua responsabilidade a ponto de ainda hoje se afirmar que não se sabe exactamente quem estava por detrás daquela montagem bem orquestrada. De qualquer modo há nomes, como o de C. Dawson e A. Woodward, que ficaram irreversivelmente manchados. Piltdown é um marco indubitável da história da paleoantropologia e, talvez, uma das fraudes científicas mais duradouras.




Das várias lições que dela podemos derivar destacaria a enorme e perigosa influência das tendências nacionalistas e em como é falacioso ver nas alegadas descobertas provas de teorias concebidas sem quaisquer evidências subjacentes. Cria-se e queria-se que o primeiro homem tivesse já um grande cérebro e assim foi. Era essa a ideia dos perpetuadores da fraude: o desenvolvimento cerebral teria antecedido o bipedismo. A aceitação deste falso dogma constituiu uma barreira para a aceitação de fósseis africanos indiscutivelmente cruciais. A criança de Taung, África do Sul, anunciada à comunidade científica por R. Dart em 1925 teve que esperar décadas para ser aceite como o, à época, fóssil mais antigo da humanidade (com mais de dois milhões de anos).

Dart e o seu Australopithecus africanus, que foi efectivamente o primeiro membro dessa espécie a ser descoberto, tiveram, por causa do homem de Piltdown, que esperar décadas para ser reconhecidos. Foi também a primeira vez que se utilizou a designação de Australopithecus que hoje é um género que inclui várias espécies. Hoje o menino de Taung, que já era bípede mas com uma pequena capacidade craniana, continua a ter um papel essencial na evolução humana, provando o enorme visionarismo do seu descobridor. Inversamente, Piltdown e os seus alegados autores são mencionados como um péssimo exemplo do que pode acontecer em ciência. Não se pretende pois comemorar uma efeméride já que Piltdown é absolutamente desmerecedor (não obstante ter tido direito a um memorial, em 1938,em Inglaterra, um acto lamentável!).

O objectivo desta crónica é avivar a memória relativamente à facilidade com que acontecem fraudes. Cem anos depois, a febre de encontrar “ o primeiro”, seja o 1.º homem, seja o 1.º homem anatomicamente moderno a chegar à Europa, seja o 1.º estúdio de arte, o 1.º colchão, mencionando aqui apenas algumas das descobertas que foram consideradas o Top 10 dos achados paleoantropológicos de 2011 pela Smithsonian Institution.

A fraude!

É inegável que haverá maior notoriedade, maior divulgação se a descoberta for a primeira de qualquer coisa. Valerá por isso a pena, para alguns, correr o risco e anunciar descobertas surpreendentes mesmo numa época em que a aceitação das mesmas passa necessariamente por um crivo científico alegadamente apertado. A Nature a Science tendem a funcionar como esses crivos, mas nem sempre estarão completamente isentas de outras influências. Por isso uma boa dose de cepticismo, q.b., continua a ser fundamental quando são divulgadas as grandes notícias científicas sobre a nossa história natural.

Eugénia Cunha

(Professora Catedrática de Antropologia no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

HÁ CEM ANOS: CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM 1912 (I)

Crónica publicada no Diário de Coimbra e noutros periódicos regionais.


Ao longo deste ano de 2012 celebram-se vários centenários de ideias, teorias, descobertas e outros acontecimentos que marcaram a ciência a tecnologia e que contribuíram para o actual conhecimento da natureza do Universo em que vivemos.

Conhecer o passado permite-nos contextualizar e compreender melhor o presente, percepcionar o caminho percorrido, por exemplo, entre os primeiros estudos em 1912 com estrelas na pequena Nuvem de Magalhães que permitiram a H. S. Leavitt (1868-1921) calcular a distância entre galáxias, e a noção que hoje temos de que as galáxias continuam a afastar-se umas das outras e de que as estrelas que as compõem são, por regra, orbitadas por planetas.

Relembrar o passado também nos permite retomar uma atitude humilde, reflectindo sobre a infalibilidade da ciência e técnica humanas, ou, por outras palavras, que “errar é humano”. Em 1912, exactamente a 15 de Abril, o maior e tecnicamente mais sofisticado navio transatlântico alguma vez construído na aventura marítima humana, supostamente inaufragável, afundou-se na sua viagem inaugural. Salvaguardando o meu respeito pela memória das vítimas inocentes, ouso escrever que foi um autêntico banho de água fria na arrogância da infalibilidade da certeza humana.


O paleontologista Pierre M. Boule (1861 – 1942) apresentou em 1912 a sua reconstrução do esqueleto de um “Homo neanderthalensis, então denominado “Homem Velho”, encontrado em 1908 em La Chapelle-aux-Saints. A sua interpretação de um conjunto de características presentes no esqueleto que hoje sabemos terem sido causadas por doença ou adaptação ao clima frio (sinais de artrite deformante), resultou numa apresentação imagética simiesca primitiva, grotesca, bruta e rude do Neandertal que se manterá estereotipada até 1950, aquando da sua reanálise e detecção do erro de Boule.




Na procura de uma origem europeia (inglesa…) para o primeiro homem ancestral, 1912 é palco de uma das maiores fraudes na história da paleontologia humana com a apresentação do homem de Piltdown, a partir da descoberta de uma mandíbula de um símio em Sussex pelo arqueologista Charles Dawson. Boule participou também na divulgação e perpetuação do engodo: o pseudo fóssil foi mantido resguardado de olhares alheios, impedida que foi a sua verificação e análise por outros investigadores até ao ano de 1953.
Há cem anos V. M. Slipher (1875 - 1969) publicava no “Lowell Observatory Bulletin o primeiro espectro de uma nebulosa em espiral, o da galáxia Andrómeda. Estas e outras observações permitiram-lhe, e aos seus colaboradores, observar um desvio para o vermelho nos espectros registados, indicação de que as galáxias se afastavam do nosso ponto de observação, a Terra. Curiosamente, a primeira constatação deste fenómeno (desvio para o vermelho nos espectros das estrelas e galáxias) é normalmente atribuído (erroneamente) ao mais conhecido astrónomo Edwin Hubble.

Victor Hess (1883-1964) descobriu há cem anos que a ionização das moléculas que compõem a atmosfera aumentava com a altitude. A sua interpretação deste facto levou-o a propor como causa a existência de perturbações radiantes provenientes do exterior da Terra, mais precisamente prever a existência do que hoje designamos por raios cósmicos. Esta sua descoberta conferiu-lhe a atribuição do Prémio Nobel da Física em 1936.

O ano de 1912 assistiu, ainda no campo da astronomia, à descoberta do primeiro “jacto cósmico” detectado como tal pelo famoso astrónomo norte-americano H.D. Curtis (1872-1942) na galáxia elíptica e gigante M87. Famoso, não por essa primeira observação, mas por ter sido responsável com H. Shapley (1885-1972) pelo “Grande Debate” sobre a natureza das nebulosas e das galáxias e sobre o tamanho do Universo, iniciado na década de 20 do século XX, e que bem lá no fundo remexia mais sobre a importância e dimensão da existência humana no Universo.

(Continua)

António Piedade
Ciência na Imprensa Regional

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

DE PÉ SOBRE AS CINZAS

Minha crónica semanal no "Diário de Coimbra":

Há cerca de quatro milhões de anos, numa região da Etiópia conhecida por Afar, uma espécie no tronco da nossa árvore filogenética conhecida por Australopithecus afarensis, ou “macaco meridional de Afar”, explorava as potenciais vantagens de conseguir caminhar sobre os membros posteriores, antepassados das nossas pernas, e, do alto dos seus cerca de 1,22 metros de altura, antecipar o horizonte.

Há evidências de que as flutuações climáticas características do período designado por plio-plistoceno, com sucessivos períodos de glaciação, tiveram um impacto na vegetação e fauna da África austral, alterando o habitat do A. afarensis. Plantas herbáceas altas terão substituído a floresta densa e uma forte pressão selectiva terá ocorrido sobre os nossos antepassados, "beneficiando" aqueles que emergindo erectos da vegetação conseguissem antecipar o perigo de um predador, ou avistar, primeiro do que a concorrência, uma árvore com frutos nutritivos para si e sua descendência.

Nesta mudança dramática no ecossistema, as alterações anatómicas e fisiológicas que permitissem uma locomoção bípede, para além de libertar os membros anteriores, que ficam livres para a descoberta de outras vantagens, garantiam reduzir para cerca de metade a energia do trabalho muscular associado ao andar. A energia sobejante fica disponível para outras funções, ou, noutro registo, é necessário menos alimento para sobreviver.

Antecipar o perigo, detectar melhor a localização de alimento, reduzir a energia necessária à locomoção, aumenta a probabilidade de deixar uma maior descendência fertilizada com a variação bípede, garantia de uma melhor adaptação à mudança.

Há cerca de 3,7 milhões de anos, uma caminhada de 50 metros de uma família constituída por dois adultos e uma criança ficou registada num piso de cinza vulcânica, posteriormente endurecida talvez pela chuva, perto do desfiladeiro de Olduvai, no norte da Tanzânia. É o facto mais antigo a confirmar os primeiros passos bípedes dos nossos longínquos antepassados. Mas é um trilho solitário, talvez de uma família a fugir de uma erupção vulcânica, atravessando as cinzas á procura de um paraíso verdejante. Mas havia, até há pouco tempo, dúvidas sobre os caminhantes por falta de evidências fósseis factuais: seriam A. afarensis?


O esqueleto do exemplar mais famoso do género Australopithecus, Lucy, descoberto em 1974, com uma idade de 3,2 milhões de anos, dava já indicações de uma arquitectura esquelética capaz de permitir o bipedismo.

A escassez de outras evidências fósseis, para uma postura bípede, foi agora dissipada pela publicação na revista Science da análise efectuada, nos últimos 15 anos, de 35 indivíduos da espécie A. afarensis, econtrados no sítio da “primeira família”, designação por que é conhecida o local arqueológico 333 na região de Hadar, na Etiópia.


A análise de ossos fósseis dos membros equivalentes aos pés, permitiu identificar no quarto metatarso (osso da palma do pé que está ligado através do cubóide, outro osso, ao calcanhar), o arco ou curvatura suficiente para permitir, quer uma função de alavanca rígida necessária à articulação e propulsão do andar, quer a absorção dos impactos resultantes do contacto com o chão.

Esta investigação suporta a teoria de que o A. afarensis era capaz de “pisar bem o chão” e, em simultâneo com a análise do restante esqueleto, manter uma postura vertical.

Fica agora também grandemente dissipado o nevoeiro que envolvia os caminhantes sobre as cinzas vulcânicas, os quais, de cabeça erguida, avançaram bípedes em direcção ao nosso horizonte.

António Piedade

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

HOMO, PAN & PONGO

Crónica publicada no "Diário de Coimbra".

Cerca de seis anos de trabalho de uma equipa internacional envolvendo 34 instituições de vários países, (incluindo os biólogos portugueses Rui Faria e Olga Fernando na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona), liderada pelo geneticista Devin Locke, da Escola de Medicina da Universidade de Washington (São Luís, Missouri, EUA), determinou a sequência de três mil milhões de moléculas que compõem as longas cadeias de DNA (ácido desoxirribonucleico) nos 48 cromossomas que compõem o genoma do Orangotango (género Pongo). A sua sequenciação genómica foi agora publicada na revista Nature.

Depois do genoma da nossa espécie (Homo sapiens) em 2003, do chimpanzé (Pan troglodytes) em 2005, este é o terceiro primata a ter o genoma mapeado.

Actualmente já só existem duas espécies de orangotango. A espécie Pongo abelii vive nas florestas de Samatra (Indonésia), enquanto que a Pongo pygmaeus tem como habitat as florestas de Bornéu (Malásia). Ambas estão ameaçadas de extinção devido à acção da mesma espécie que agora a sequenciou: a humana.

O genoma de um exemplar fêmea da espécie Pongo abelii, de nome Susie, vivendo em cativeiro no Jardim Zoológico de Glayds Porter, Texas (EUA), serviu a base à sequenciação. Sobre ele foram anotados as divergências da sequência genómica de outros cinco orangotangos de Sumatra e cinco orangotangos de Bornéu, que também foram sequenciados, embora em menor detalhe, assim como as diferenças com os genomas humano e do chimpanzé.

Os cientistas encontraram uma semelhança de 97% entre o genoma humano e o do orangotango, uma diferença na posição de 120 milhões de moléculas. Recorde-se que a diferença entre o nosso genoma e o do chimpanzé é de apenas 1% (cerca de 40 milhões de bases).


Mas o genoma agora sequenciado apresenta várias surpresas para os geneticistas. O genoma do Orangotango sofreu muito menos variações do que o dos humanos e dos chimpanzés desde que os nossos antepassados comuns divergiram. O género do orangotango originou-se há cerca de 12 a 16 milhões de anos, enquanto que as linhagens que nos deram origem e aos chimpanzés se separaram entre 5 a 6 milhões de anos atrás. Os estudos comparados mostram agora que quer o nosso genoma quer o do chimpanzé ganha ou perde genes a uma taxa dupla daquela que afecta o genoma do orangotango.

O estudo agora publicado redefine também o momento de separação entre as duas espécies de orangotangos ainda existentes. Estudos anteriores apontavam para que as duas espécies se tinham originado há cerca de um milhão de anos. Esta distância foi agora encurtada para 400 mil anos pelo presente estudo.

Curiosamente, num outro artigo publicado no dia seguinte, mas on-line, na revista Genome Research, Mikkel Schierup e Thomas Mailund da Universidade Dinamarquesa de Aarhus (também co-autores do artigo na Nature), comparam a estrutura dos genomas dos três primatas e mostram que apesar de mais distanciados, 0,5% do nosso genoma e do orangotango são muito mais semelhantes entre si do que com o do chimpanzé, nosso primata evolutivamente mais próximo de nós. Isto significa que mantivemos genes comuns ao orangotango que foram suprimidos na evolução do chimpanzé. Muito estudo funcional e proteómico terão ainda de ser feito para descodificar estas semelhanças e diferenças.

As expectativas aumentam sobre o que é que nos trará a sequenciação em curso de mais dois primatas: o gorila (género Gorilla) e o bonobo (Pan paniscus).

De volta ao orangotango, é curiosa a singularidade do genoma desta espécie em vias de extinção ter sido acabado de sequenciar em 2010 (o manuscrito foi submetido a 11 de Março de 2010 e aceite em 19 de Novembro para publicação), ano internacionalmente dedicado à Biodiversidade, e publicado agora no início do Ano Internacional da Floresta. É que o nome orangotango resulta da junção de duas palavras da língua malaia que significam “pessoa da floresta”.

Felizmente o estudo agora publicado mostra uma grande variabilidade genética entre as populações de orangotangos, o que significa uma maior capacidade adaptação a mudanças ambientais o que por si só é um bom indicador para a sobrevivência destas espécies ameaçadas.

António Piedade

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O piolho do corpo nu



Crónica publicada no "Diário de Coimbra":

Para além do incómodo que o piolho causa ao seu hospedeiro humano, existe nele um potencial único de informação sobre a evolução da nossa própria espécie.

Estes insectos parasitas sugadores de sangue e sem asas (da ordem Phthiraptera, sub-ordem Anoplura) são muito específicos ao seu hospedeiro e co-evoluem com ele. Assim, estudos sobre a evolução dos piolhos têm fornecido informação valiosa sobre a evolução da nossa espécie. De facto, há mais de uma década que antropólogos e geneticistas têm recorrido ao estudo do DNA (nuclear e mitocondrial) do piolho para nele recolherem informações não fossilizáveis.

Uma primeira abordagem geral sobre como os parasitas podem ser bons indicadores para o estudo da evolução humana pode ser consultada aqui.

O estabelecimento de árvores genealógicas (filogenéticas, para ser mais preciso) da evolução das diversas espécies de piolhos que parasitaram especificamente diferentes espécies humanas, antepassados hominídeos e actuais símios, tem fornecido informação complementar e independente da do hospedeiro, corroborando teorias migratórias em vagas sucessivas para fora de África do género homo, e questionando a eventual convivência directa entre espécies diferentes.

Há alguns anos (2004), num artigo publicado na PLOS Biology, David Reed mostrava a possibilidade de Homo sapiens modernos terem convivido com espécies mais “arcaicas” como o H. erectus e H. neanderthalensis pela co-divergência de espécies de piolhos que parasitaram aquelas espécies na mesma época.

Num artigo publicado no último número da revista Molecular Biology and Evolution (28(1):29–32. 2011), uma equipa de investigadores, do Museu de História Natural da Universidade da Florida, liderado por Reed, vem mostrar que humanos anatomicamente modernos começaram a usar vestuário ainda em África. O estudo indica que os nossos antepassados começaram a usar roupa para cobrir o corpo sem pelos há cerca de 170 mil anos, altura em que os piolhos do corpo (Pediculus humanus humanus) terão divergido dos piolhos da cabeça (Pediculus humanus capitis) e da pele coberta com pelos.



Refira-se, a propósito, que o genoma do Pediculus humanus humanus foi sequenciado em 2010 e publicado na revista PNAS.

O uso de vestuário terá facilitado aos nossos antepassados a migração para latitudes mais elevadas com climas mais rigorosos. Uma vez que as peças de vestuário raramente fossilizam, o estudo indirecto recorrendo ao nosso mais velho insecto parasita, vem reforçar a perspectiva do desenvolvimento cultural e tecnológico ocorrido em humanos modernos em África em períodos mais recentes da nossa evolução e antes de novas e últimas migrações por todo o planeta.

António Piedade

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

TYCHO BRAHE DESENTERRADO


No passado dia 15 de Novembro foi desenterrado da Igreja de Nossa Senhora em Týn, no coração da cidade de Praga (muito perto do famoso relógio astronómico, visitado diariamente por hordas de turistas), o grande astrónomo dinamarquês Tycho Brahe. Uma equipa dinamarquesa pretende saber, em colaboração com colegas checos, de que causa exacta ele morreu, vai fazer no próximo ano 400 anos.

A morte de Brahe ocorreu poucos dias depois de um banquete e tem sido atribuída a uma infecção urinária (diz-se que, para não quebrar as regras de cortesia, o astrónomo não ousou levantar-se durante o longo banquete para fazer uma necessidade). Em delírio, perto da morte, terá pedido ao seu discípulo Kepler que fizesse com que "a sua vida não tivesse sido em vão" e completasse as suas tábuas astronómicas. Não foi!

Mas há também quem atribua a sua morte a um envenenamento por mercúrio. Provavelmente a verdade vai agora ser apurada e divulgada. Quem quiser ver imagens dos restos mortais tiradas pela equipa de antropologia física da Universidade de Aarhus pode clicar aqui.

E cá? Quando é que será finalmente permitido à antropóloga Eugénia Cunha e à sua equipa examinar os restos mortais de D. Afonso Henriques?

Na imagem: o túmulo de Brahe, que é de 1901 (ano em que Brahe foi exumado).

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Colombo e Bolívar. Para quando Henriques?


Novo texto de António Piedade, saído no "Diário de Coimbra":

Os restos mortais do General que libertou praticamente toda a América do Sul, no século XIX, do colonialismo Castelhano, foram televisionados no passado fim-de-semana (madrugada de sábado, dia 18 de Julho), numa cerimónia pomposa em que a guarda de honra envergou fatos alvos, protectores e não contaminantes (aqui). A razão para esta exumação é, em parte, cientifica e envolve descobrir a razão para a morte do Libertador, de ascendência castelhana, mas natural da Venezuela e ídolo de milhões de pessoas. Em Abril deste ano, o médico forense Paul Auwaerter (Universidade de Johns Hopkins, EUA) sustentou a teoria segundo a qual Bolivar teria morrido envenenado por sais de arsénio (aqui). Isto está em desacordo com até há pouco conhecido e que indica que El Libertador teria sucumbido derrotado por uma bactéria, a Mycobacterium tuberculosis perfinges, principal causadora da tuberculose. Gabriel García Marquez, deixa-o morrer no seu livro “O General no seu Labirinto”, a olhar Vénus no firmamento e a ouvir “os escravos a cantarem a salve-rainha das seis, nos moinhos”.

Venezuela, que significa pequena Veneza em italiano, foi assim baptizada por Américo Vespúcio na terceira viagem de Cristóvão Colombo à procura das Índias (ao navegarem pelo delta do rio Orinoco, Vespúcio terá comparado a beleza paradisíaca da natureza que contemplava com a dos canais de Veneza!). Os restos mortais de Colombo, durante séculos pensados a repousar na lindíssima Catedral de Sevilha, também têm sido alvo de estudos forenses. O objectivo tem sido o de comparar geneticamente as ossadas com a de seus descendentes e resolver, com base científica, a hipótese de que Colombo sempre esteve sepultado no monumento, edificado em sua memória o Farol de Colombo, na cidade de Santo Domingo, capital da República Dominicana (aqui).

D. Afonso Henriques, 1º Rei de Portugal, foi o único militar a conseguir a independência de Castela de um território da península Ibérica. Feito por ventura menor em tamanho mas seguramente comparável ao de Bolívar na bravia, na liderança e na estratégia militar. Sabemos da qualidade da metodologia científica com que a Doutora Eugénia Cunha (Departamento das Ciências da Vida – Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra) tentou estudar os restos mortais do fundador (aqui), na Capela-Mor da Igreja de Santa Cruz em Coimbra, e como isso foi impedido superiormente na secretaria estatal. Sabemos do desenvolvimento espantoso registado na última década na micro-extracção de amostras diminutas de ADN e também nas técnicas analíticas químicas, capazes de elucidar sobre aspectos não só da morte mas sobretudo da vida, gerando documentos incontornáveis e impossíveis por outra fonte.

Para quando Henriques?

António Piedade

sexta-feira, 14 de maio de 2010

HUMOR: Ok, humanos e Neandertais procriaram. Mas foi bom?

Durante 80.000 anos permaneceu a questão: humanos e Neandertais tiveram sexo? Com a publicação do genoma do Neandertal a resposta é um rotundo "oh, yes". Mas mais na Europa. Agora a grande questão em aberto acerca da evolução dos hominídeos é se tiveram prazer. A análise das características morfológicas dos humanos actuais e de fósseis antigos de homens anatomicamente modernos parece indicar que os Neandertais eram amantes sensíveis que escutavam as suas companheiras desde o momento em que lhe agarravam no cachaço e durante todo o espancamento preliminar. Já análise de sequências de ADN dá ideia de uma intimidade rotineira e mecânica, isto porque olhar para sequências de ADN é sempre aborrecido: são só quatro letras (A, T, G, C) repetidas quatro mil milhões de vezes. ATGGCCTTAA (...), até quatro mil milhões. Não há chama que aguente.

David Marçal, no Inimigo Público

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O sangue Neanderthal que nos corre nas veias



(Expo. Darwin 150, 200. Museu da Ciência Universidade de Coimbra)





Na semana passada a revista Science publicou um artigo importantíssimo que abre uma janela verdadeiramente fascinante sobre a evolução recente da nossa espécie. Dada a sua importância, o artigo publicado pela equipa de Svante Paabo, do Max-Plank Institute de Leipzig, está disponível sem restrições e pode ser obtido aqui. Há também um conjunto de informações se recursos disponíveis numa página criada para o efeito. O artigo já foi aqui comentado pelo António Piedade.

Segundo as notícias que se seguiram na imprensa de todo o mundo, o artigo conclui que afinal corre sangue Neanderthal nas nossas veias. Quanto? Como sabemos isso? O que nos diz?

O laboratório de Svante Paabo é talvez o único actualmente com capacidade para realizar uma tarefa tão difícil como a de extrair e analisar DNA fóssil de Neanderthais. Foram eles os responsáveis pela descoberta recente de outra espécie de hominínio, o Homem de Denisova que aqui comentei. Esta é uma tarefa dificílima. O DNA fóssil que é possível extrair de ossos parcialmente fossilizados apresenta-se sempre muito fragmentado, com sequências demasiado pequenas e, o que é mais complicado, extremamente contaminado com o DNA de outros organismos, particularmente de micro-organismos. Para se poder interpretar a informação é preciso ‘limpar’ o DNA identificando e removendo as partes que não pertencem ao DNA do organismo que se pretende analisar. O que só é possível por comparação de sequências.

Esta investigação só se tornou possível graças aos mapas genéticos de muitos organismos que entretanto foram sendo sequenciados e colocados disponíveis em bibliotecas de sequências de DNA. Programas de identificação de sequências podem então ser corridos para determinar se o material que está sequenciado pertence a uma bactéria ou a um hominínio. Além disso, são necessárias condições de assepsia únicas para evitar contaminação pelo nosso DNA que é quase indistinguível do de um Neanderthal.

O que nos diz o estudo?





Comparando sequências extraídas de três ossos provenientes da localidade de Vindija, na Croácia (que se determinou pertencerem a três mulheres diferentes) com o de chimpanzé, e de cinco humanos (um francês, um chinês Han, um papuano da Nova Guiné, um africano San (bosquímano) e Yoruba (África ocidental), os investigadores chegaram à conclusão que há maior semelhança, relativamente a variantes novas de genes, dos Neanderthais com os europeus e asiáticos que com os africanos. A explicação mais plausível é que, quando os antepassados humanos saíram de África, há 80 mil anos, ter-se-ão cruzado com os Neanderthais no médio oriente. Estes cruzamentos tiveram que acontecer nessas populações ainda pequenas e antes de ocorrer a grande dispersão pela Ásia e a Europa dos homens modernos. De outro modo não é possível ter esta distribuição.

Prova-se inequivocamente que houve cruzamentos e que nós temos entre 1 e 4% de genes provenientes de Neanderthais. É uma pequena fracção, mas importante, tanto mais que está presente numa parte muito substancial da população humana.


Prova-se ainda que esses cruzamentos não ocorreram mais tarde na Europa ao longo dos 60 mil anos em que as duas sub-espécies conviveram. Se ocorreram foram muito limitados e pontuais, não havendo evidências neste estudo. Este resultado não vem corroborar as teses de João Zilhão e Eric Trinkaus sobre o menino de Lapedo, que tem sido mantido longe da investigação por outros cientistas. Não prova que ele seja um híbrido nem o seu contrário. Prova apenas que a hibridação era possível e aconteceu. Sabemos que aconteceu no Médio Oriente há 80 mil anos. Mas não há dados de que tenha acontecido na Europa mais tarde. Se tivesse sido muito extensa, então as semelhanças com os Europeus seriam maiores que com os Asiáticos, o que não se verifica. Serão necessários mais dados e de fósseis de outras regiões da Europa para poder ir mais longe.


Mas há um outro aspecto fascinante deste estudo: pela primeira vez temos um primeiro mapa genético, ainda que muito fragmentado, do nosso parente mais próximo, provavelmente pertencente à nossa espécie – é agora claro que a hibridização foi importante e teve consequências – extinto apenas há 28 mil anos. O artigo estima uma separação entre humanos actuais e Neanderthais tendo ocorrido há entre 270 000 e 440 000 anos. Este mapeamento de genes, que irá crescer nos próximos anos, formando uma biblioteca extensa do DNA Neanderthal, vai permitir-nos não só saber mais sobre a biologia dos Neanderthais como saber o que mudou, que genes se modificaram e conduziram à nossa evolução que foi tão bem sucedida nas últimas centenas de milhar de anos.

O artigo apresenta uma lista de 78 genes que estão modificados nos humanos actuais e têm uma configuração ancestral nos Neanderthais. E isto é fascinante. Há diferenças em genes ligados aos tecidos da pele e a sua pigmentação, receptores de estrogénio, afectando o movimento flagelar dos espermatozóides, evolvidos em processos de cicatrização, diabetes tipo II, ou metabolismo. Sabe-se que alguns dos genes com diferenças apresentam-se relacionados com capacidades cognitivas: certas mutações podem causar sindroma de Down, esquizofrenia, ou autismo. Esta biblioteca de dados irá seguramente crescer e permitir perceber melhor a evolução recente da nossa espécie.

A quantidade e qualidade de informação contida neste artigo é absolutamente impressionante e abre uma porta gigantesca sobre a investigação do nosso passado evolutivo de uma forma inimaginável há alguns anos.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O genoma Neandertal em números

A proposito da excelente crónica de António Piedade acerca da sequenciação do genoma do Neandertal, deixo aqui alguns números acerca de mais este incrível feito da ciência e da técnica, que me impressionam:

- Foram sequenciadas 4 000 000 000 (quatro mil milhões) de bases, a partir de amostras provenientes de três indivíduos.

- O ADN extraído dos fósseis está extremamente degradado, partido aos bocados: 200 bases é o tamanho médio dos fragmentos de ADN encontrados.

- Os extractos de ADN usados contém apenas entre 1,5% a 5% de ADN de hominídeos.

- 95% a 99% do ADN obtido a partir dos fósseis é de organismos não primatas (microrganismos que colonizaram os ossos).

- Acresce ainda o risco de contaminação com ADN de humanos modernos, o que exige grandes cuidados.

- O genoma do Neandertal foi comparado com o de 5 humanos actuais, de diferentes partes do mundo.

- Tal como qualquer projecto de sequenciação de um genoma de um primata foi realizado por uma grande equipa. O artigo é assinado por 56 autores ligados a 21 instituições.

É uma agulha num palheiro com muita gente à procura!

De Neandertal, todos temos um pouco


Nova crónica de António Piedade saída antes no "Diário de Coimbra":

Em Agosto de 1856, no pequeno vale de Neander, na Alemanha, são encontrados, por mineiros numa gruta, ossos de um esqueleto de um “homem antigo” baptizado como Neandertal 1. Três anos depois é publicada a obra “As Origens das Espécies”, de Charles Darwin.

Quase meio século após, ao fim da tarde de 8 de Novembro de 1895, o físico alemão W. C. Röntgen conseguiu fazer, pela primeira vez, uma emissão controlada de uma radiação electromagnética que ele temporariamente baptizou por radiação X, uma vez que não sabia de que tipo de radiação se tratava. A designação raios-X propagou-se século XX adentro e todos hoje entendemos a importância e a utilidade dessa descoberta. É quase óbvio no que à Medicina diz respeito para o diagnóstico auxiliar, mas também nas Ciências dos Materiais é muito útil na análise estrutural fina da microestrutura de ligas metálicas, por exemplo.

Contudo, o uso dos raios X, principalmente o registo e interpretação dos padrões resultantes da sua difracção ao atravessar estruturas cristalinas (devemos muito deste trabalho teórico ao físico-químico britânico W. Bragg), permitiu desvendar a estrutura tridimensional de moléculas biológicas, das quais talvez a mais famosa seja o ADN (Watson, Crick, Franklin, Wilkinson, 1953). A resolução da estrutura permitiu perceber que a forma desta biomolécula está intrinsecamente associada à sua função biológica. A estrutura em em duas fitas helicoidais homólogas, conectadas por pares de bases complementares (A:T , G:C), permite não só a sua cópia fiel durante a divisão celular, como também a detecção de erros, mutações pontuais, por maquinaria proteica específica. De não menos importância é o facto de este arranjo tridimensional garantir a conservação da informação genética herdada de ancestrais longínquos, talvez desde as primeiras células há cerca de 3600 milhões de anos. Daí que a descodificação dos genes inscritos no ADN, para além de nos permitir perceber melhor como é que os organismos se desenvolvem e interagem com o meio envolvente, constituí uma poderosa ferramenta de detecção, quer de graus de parentesco contemporâneos, mas também para abrir uma janela no registo cronológico das relações genealógicas (filogenéticas, para ser mais preciso) entre espécies que existiram num passado distante.

O livro da vida (o genoma) não é só um manual de instruções que permite à célula, ou ao organismo, construir-se e manter-se vivo, com mais ou menos saúde. Estão também nele inscritas a história dos nossos antepassados, a aventura dos nossos genes.

As biotecnologias potenciadas pela descoberta da estrutura tridimensional de biomoléculas, e o entendimento de que a sua forma determina a sua função, espoletou um sólido conjunto de técnicas de biologia molecular no último quartel do século XX, como seja a da Reacção em Cadeia da Polimerase (PCR, em inglês), que permite amplificar amostras vestigiais de ADNs até à quantidade necessária para as analisar com confiança e em laboratórios independentes.

A descodificação do genoma humano, em 2002, foi sem dúvida um grande marco. A compreensão de como os cerca de 30 mil genes funcionam ainda está em curso, mas trará muitas aplicações concretas para a saúde, para uma medicina ajustada a cada um. A cartografia genómica de outros primatas que se seguiu, veio permitir confirmar relações de parentesco mais ou menos afastadas com outros hominídeos, presentes e passados, e também colocar novas questões, como é próprio do método científico. Por exemplo, esta antropologia crono-molecular, tem permitido confirmar trilhos de migrações milenares dos nossos antepassados hominídeos. Paralelamente, o apuramento das técnicas de genética molecular, as melhorias substanciais nas boas práticas laboratoriais que asseguram, com muita confiança e reprodutibilidade, a eliminação de possíveis contaminações, com microrganismos ou mesmo com o ADN dos investigadores actuais, das amostras de ossos fossilizados a analisar, começa a dar os seus frutos. Recentemente, soubemos de que terá co-existido um terceiro hominídeo juntamente ao H. sapiens sapiens e ao H. sapiens neandethalensis: o Homem de Denisova.

Agora, a equipa liderada por Svante Pääbo, do Max Planck Institut de Leipzig, Alemanha, que conduziu o estudo do ADN mitocondrial da falangeta fossilizada de Denisova (aqui), publicou na edição da semana passada da revista Science (aqui) a sequenciação anunciada e ansiada do genoma do H. sapiens neandethalensis. A partir de 21 ossos de Neandertais, encontrados na caverna croata de Vindija, o estudo agora publicado mostra que os humanos modernos partilham genes comuns aos Neandertais. Ou seja, significa que o cruzamento entre as duas subespécies foi possível e deixou descendência fértil.

Afinal, a criança do Lapedo pode mesmo ter sido o resultado do cruzamento entre um(a) Neandertal e um(a) Sapiens contemporâneos e pré-lusitanos. E de Neandertal todos temos um pouco (entre 1 a 4% dos genes). O que é que eles fazem? A ver vamos.

António Piedade

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...