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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

COMO SURGIRAM AS NOSSAS CÉLULAS?

Texto primeiramente publicado na imprensa regional.



O estudo da origem e evolução das células no nosso planeta é uma das áreas mais estimulantes e fascinantes da ciência. Prende-se não só sobre compreender a origem da própria vida, mas também sobre como é que a complexidade celular evoluiu a partir das primeiras células simples para dar origem às células que compõem os animais, as plantas, os fungos e os protozoários.

Os animais e as plantas são edificados por células ditas eucarióticas. Estas são caracterizadas, entre outros aspectos, pelo facto de possuírem um núcleo rodeado por uma membrana onde se situam os cromossomas com a informação genética. Também se caracterizam por possuírem no seu interior organelos como as mitocôndrias e os cloroplastos, e um elaborado e dinâmico sistema de membranas que formam vesículas, que asseguram um transporte conveniente de diversas substâncias, não só no interior da célula, mas também entre o interior e o exterior celular. As células eucarióticas possuem também um complexo sistema de microfibrilhas proteicas, com várias funções, entre elas a de formar um citoesqueleto. Como é que surgiram estas complexidades todas ao longo da evolução celular?

As bactérias são outro domínio celular da vida. São consideravelmente mais simples do que as células eucarióticas, pois não possuem compartimentos intracelulares e o cromossoma circular que possuem não está encapsulado num núcleo. São consideradas muito mais antigas evolutivamente do que as células eucarióticas

No início da década de 80 do século passado, a bióloga norte-americana Lynn Margulis (1938 – 2011; foi casada com Carl Sagan) propôs a teoria endossimbiótica para a origem das células eucarióticas. Segundo esta, as mitocôndrias e cloroplastos das células eucarióticas teriam surgido da associação de bactérias que se tornaram hospedeiras de uma outra célula microbiana. Esta teoria é hoje consensual entre a comunidade científica. Propõe-se, actualmente, que as mitocôndrias terão sido originadas de um grupo bacteriano conhecido e relacionado com as alphaproteobactérias.

Mas qual a origem da célula hospedeira? Teria sido um outro tipo de bactéria? Não! O conhecimento hoje disponível indica que a célula hospedeira teria pertencido a um outro domínio celular também muito antigo evolutivamente e conhecido por arqueia (palavra de origem grega significando antigo). As arqueias e as bactérias ter-se-ão separado na árvore da vida a partir de um ancestral comum e divergido evolutivamente.
As diferentes espécies de arqueias que se têm descoberto nos últimos anos possuem algumas características, principalmente genéticas, que estão ausentes nas bactérias e que se assemelham mais às das células eucarióticas. Assim, o conjunto de informação entretanto reunido sobre as arqueias coloca-as como as principais candidatas a terem sido as células antepassadas das eucarióticas. E as mais recentes técnicas de sequenciação genética têm permitido sondar o passado evolutivo na procura dessas semelhanças.

Neste contexto, foi publicado, no passado dia 19 de Janeiro de 2017 na revista Nature, um artigo que apresenta uma nova espécie de arqueia com características genéticas muito interessantes. Neste artigo, que tem como primeiro autor o sueco Thijs Ettema, os cientistas sequenciaram material genético recolhido de vários locais e identificaram um novo grupo de arqueias referido no geral por arqueias de Asgard. Segundo o microbiólogo António Veríssimo, professor do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, o “novo grupo de arqueias têm duas características muito interessantes: são muito antigas (do ponto de vista evolutivo) e parecem partilhar um ancestral comum com as células eucariotas e, para além disso, foram reconhecidas sequências genéticas que codificarão proteínas consideradas especificas de eucariotas e relacionadas com a translocação (“transporte”) de proteínas nas células com compartimentos celulares. Isto sugere que a origem de sistemas complexos de translocação de proteínas terá evoluído antes das mitocôndrias ou de outra maneira antes do hospedeiro ter “recebido “ as bactérias que originaram as mitocôndrias. E é mais uma informação importante que reforça a ideia que o hospedeiro original terá sido uma célula de tipo arqueia.”

É preciso referir que os cientistas ainda não conseguiram isolar estas arqueias de forma a poderem observar directamente as características relacionadas com os genes identificados no seu genoma agora sequenciado. Seria muito interessante poder-se observar e comparar as eventuais estruturas celulares que terão estado na origem da complexidade eucariótica.

De qualquer forma, esta descoberta vem adicionar mais algumas peças ao puzzle que continua a ser a evolução da vida complexa no nosso planeta.


António Piedade

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

AS MINHAS BACTÉRIAS SÃO DIFERENTES DAS TUAS

Artigo primeiramente publicado na imprensa regional.



Durante milhares de anos desconhecemos que estamos rodeados de bactérias, que também colonizam o nosso corpo. Só depois da invenção do microscópio e nos finais do século XVII é que a existência de seres microscópicos foi descoberta. O holândes Antonie van Leeuwenhoek terá sido o primeiro ser humano a observar microrganismos. Mas ele estava longe de entender a relação importante que mantemos com eles.

Vivem dentro de nós, na nossa pele, na nossa casa. São milhões e milhões de bactérias que nos acompanham desde que nascemos, que influenciam os nossos estados de saúde, de doença, o nosso humor e relações afectivas.

Esta convivência com seres microscópicos foi alvo de um estudo agora foi publicado num artigo na revista Science. No geral, o estudo mostra que cada um de nós vive rodeado por um conjunto de bactérias que é característico de cada um de nós. É como se para além da nossa própria identidade tivéssemos um conjunto de bactérias que nos é característico e que se move connosco. 

O estudo mostra que os locais onde passamos mais tempo, casa, trabalho, estão povoados por um conjunto de bactérias específico a cada um de nós. Se mudarmos de casa, as bactérias também mudam! O nosso local de trabalho está repleto de bactérias que estão em íntima relação connosco. Se mudarmos de trabalho as nossas bactérias acompanham-nos.

O artigo também mostra que partilhamos com os nossos familiares um conjunto de bactérias semelhante. Quanto mais próxima a relação mais idênticas são as espécies de bactérias que partilhamos. Há assim, pode dizer-se, um conjunto de bactérias que fazem parte da nossa família!
A relação entre nós e as nossas bactérias é importante e decisiva no tratamento e transmissão de doenças. O estudo sugere que uma alteração no ambiente bacteriano com que vivemos pode influenciar o nosso estado de saúde. Assim, a caracterização das bactérias que nos acompanham é importante para uma melhor compreensão e gestão da nossa saúde no século XXI.

Depois deste estudo abrem-se as portas para que num futuro próximo passemos a possuir uma espécie de boletim microbiano que nos identifica, o nosso próprio microbioma. Um retrato das nossas bactérias.

António Piedade   

sábado, 27 de julho de 2013

Ciência aos Quadradinhos






Porque a rir se dizem coisas muito sérias...

É urgente a construção de uma sociedade responsável, com capacidade de decisão matura/ fundamentada e detentora de um verdadeiro espírito de cidadania. Nesse sentido, é também obrigação de todos nós que nos movemos neste meio, mais que não seja responsabilidade moral, a implementação de uma série de práticas, desde a clarificação dos conceitos emergentes relativos aos avanços científicos/ tecnológicos que vivemos, à estimulação do pensamento crítico desde tenra idade, e ainda, ao favorecimento da proximidade entre os cientistas e o público em geral. E se colocar tudo isto em prática não é fácil, o grande busílis da questão está mesmo na linguagem a utilizar. Ora parece-me que a aliança entre a Ciência e a Arte in senso lato, duas formas de produção intelectual grandemente dependentes da criatividade, pode ser uma estratégia muito promissora para envolver o público e disseminar a “mensagem”. Adicionalmente, se a mensagem for passada a par de um suporte visual forte, assertivo, coerente e bem disposto, então teremos andado mais de meio caminho em direcção ao nosso propósito.

 Foi com estas ideias em mente, foi também tendo em conta os resultados alcançados pelas experiências iterativas de muitos anos a partilhar Ciência às mais diversas faixas etárias e tipos de público, e ainda, revivendo boas memórias dos projectos em que congrego alguma forma de arte figurativa ao processo de comunicação de Ciência, que me decidi a dar este passo. A ideia consiste em utilizar a arte sequencial animada para transmitir, dentro de quatro linhas, conceitos associados a conteúdos de Ciência. Mais concretamente através de cartoons sob a forma de quadro único ou tira. Para titubear os primeiros passos decidi-me pela área da Microbiologia. E porquê? Por (de)formação e porque os microrganismos ou os processos microbianos estão por todo o lado, desde o ambiente às notícias que vemos/lemos diariamente. Bom, mas a razão principal, a razão que me levou mesmo, mesmo a escolher a "vida à escala micro", prende-se com o facto dos microrganismos estarem amarrados com nó cego, a muitos preconceitos e conceitos errados. Errados e perigosos. Consulte-se num qualquer dicionário a palavra microrganismo, micróbio ao termo afim e dá logo vontade de bater na madeira, ao mesmo tempo que se murmura um "vade retro Satanás".

Mas dizer coisas sérias a brincar não é fácil! E a imaginação, Senhores? Ai, a imaginação e a criatividade não aparecem assim à hora marcada com um estalar de dedos. Então lancei o desafio, sob a forma de uma ferramenta de avaliação, aos meus alunos das licenciaturas em Biologia–Geologia e Mestrado Integrado em Engenharia Biológica e ainda, como tema de projecto de licenciatura em Biologia Aplicada com o título de "Microrganismos ao Quadradinhos". Acontece que a motivação e adesão foram enorme e os resultados, grosso modo, muito gratificantes. O cartoon em cima é um dos elementos da colecção com o título supra-citado, da autoria do aluno finalista em Biologia Aplicada, Daniel Ribeiro. O objectivo agora é burilar e maturar esta ideia de modo a poder faze-la sair do quadrado onde está confinada, para um círculo de acção mais alargado onde muitos possam usufruir. Cá por mim, espero que o raio do círculo seja bem grande...

terça-feira, 31 de julho de 2012

"A ESPIRAL DA VIDA"



Recensão crítica publicada primeiramente na imprensa regional.

A Espiral da Vida - As Dez Mais Notáveis Invenções da Evolução”, da autoria do eminente Bioquímico e divulgador científico Nick Lane, é o novo título, nº 194, da incontornável colecção “Ciência Aberta” da editora Gradiva. É a 1ª edição portuguesa (Julho de 2012) de “Life Ascending—The Ten Great Inventions of Evolution” (publicado em 2009 – ano do bicentenário de Darwin), que venceu em 2010 o prémio para livros de ciência atribuído pela Royal Society.


Realce para a tradução para o português do original inglês efectuada por Alexandra Nobre, do Departamento de Biologia da Universidade do Minho, que conseguiu manter a linguagem acessível mesclada com a frontalidade, o humor e a ironia que caracterizam a escrita de Nick Lane. Mas talvez o aspecto mais positivo da tradução seja o ter mantido a beleza da escrita recorrentemente poética de Nick Lane, que nos oferece inúmeras sínteses poéticas de aspectos da evolução da vida. Frases para mais tarde recordar. De facto, muitas das frases originais que preenchem o livro sobre fenómenos essenciais à vida permanecerão na memória do leitor que revisitará este livro como fonte de informação e inspiração futura.

“Se Charles Darwin saísse do túmulo, eu dar-lhe-ia este livro fabuloso para o animar” disse sobre este livro Matt Riddley, autor de “Genoma” e “A Rainha de Copas” (também publicados pela Gradiva). De facto, se a vida é só por si uma realidade fascinante, enveredar pela aventura espantosa de apreender como é que ela evoluiu desde as primeiras moléculas até à complexidade da consciência, torna-a ainda mais deslumbrante. É este um dos aspectos mais cativantes deste terceiro livro de divulgação científica de Nick Lane, que nos oferece uma admirável compreensão da relação entre a história da vida e do planeta em que evoluiu. A componente animadora reside na perspectiva de que há válidas razões para esperarmos que através do método científico possamos revelar e compreender o longínquo desconhecido berço da vida.

Nick Lane surpreende-nos magistralmente numa síntese original, rigorosa mas acessível, do conhecimento acumulado nos últimos 150 anos sobre a evolução da vida que permitiu que hoje estejamos aqui a ler este texto.

Ao longo de 10 capítulos dedicados a outros tantos marcos evolutivos substanciais à vida, Nick Lane problematiza e actualiza-nos o conhecimento sobre a sua evolução. “Começamos com a origem da vida em si e terminamos com a nossa própria morte e procura de imortalidade, passando por pontos altos como o ADN, a fotossíntese, as células complexas, o sexo, o movimento, a visão, o sangue quente e a consciência”, resume o autor na Introdução.


Nick Lane, Bioquímico, escritor e divulgador científico


Nick Lane transmite, de forma original, questões complexas com uma facilidade cativante. Com coragem intelectual confronta teorias concorrentes, relata episódios de como a ciência se processa e produz conhecimento, pelo que acresce a este livro uma dimensão didáctica sobre como a ciência funciona. Ao longo da leitura do livro, sentimo-nos em cima do promontório do conhecimento actual, sentados na sua fronteira a contemplar o desconhecido no horizonte que se espraia em todas as direcções do tempo (passado, presente e futuro), e sentimos a vertigem do abismo que nos atrai para o erro, que evitamos e minimizamos, nesta humanidade conscientemente falível.

A Espiral da Vida que recebeu as melhores críticas internacionais, é por tudo o que se disse, de leitura aconselhável e agradável para todos, mas imprescindível para todos os que se interessam pela aventura da vida no Universo.

António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O GENOMA PESTILENTO (2) - DESENTERRAR OS GENES...


Crónica publicada no Diário de Coimbra, na sequência de uma outra (aqui)


Já não há peste negra?!

Claro que há!

Ao longo dos últimos 150 anos verificamos avanços significativos das ciências médicas, microbiológicas e imunológicas que permitiram identificar a natureza dos microrganismos que nos causam doenças, compreender o seu modo de propagação, os seus mecanismos patogénicos.

O conhecimento adquirido permitiu implementar atitudes preventivas de saúde pública contra a disseminação dos micróbios, outrora fatais, descobrir e fabricar vacinas e antibióticos. Estas “balas mágicas” permitem que aqueles que a elas têm acesso adquiram, para além da imunidade e protecção, uma ideia de que a guerra está vencida. Nada mais errado.

A Organização Mundial de Saúde tem lançado alertas frequentes, quer para o perigo de ressurgimento dessas tais doenças julgadas “extintas”, pelo mundo “medicamentado”, quer para a continuidade dessas doenças em locais no planeta onde são o presente endémico de seres humanos que não tem manhãs de futuro com saúde.

A peste negra continua a ser endémica em zonas da África, América e Ásia. Em 2003 registaram-se mais de 2000 mil casos mortais só em nove países. A comunidade científica que segue a Yersinia pestis tem emitido sinais de alarme (ver por exemplo, Welch, T.J., PLoS One, Março de 2007) sobre a possibilidade de uma estirpe multi-resistente aos antibióticos que conhecemos poder emergir e reavivar as ilustrações pestilentas de mortandade dos livros de história para as capas dos jornais.

Neste quadro, ainda não negro para o mundo mais preocupado com a dívida pública em crise (Europa, Estados Unidos…), importa utilizar os conhecimentos que as ferramentas de investigação da bioquímica moderna nos permitem obter pelo mapeamento e análise do genoma dos indivíduos.
Conhecendo os genes da livraria genómica de um dado patogénio, podemos entender melhor como ele actua, identificar as proteínas e outras biomoléculas da sua toxicidade, revelar o seu papel no equilíbrio microbiano necessário para a saúde (relembremo-nos que sem bactérias não existiríamos, como tão bem é ilustrado na Banda Desenhada que se segue!).


Os avanços técnicos permitem hoje a recolha, recuperação e sequenciação de ADN (ácido desoxirribonucleico, molécula estrutural e codificante dos genes) proveniente de amostras vestigiais, quantidades cerca de um milhão de vezes inferiores a um grama, incrustadas nos restos mortais inorgânicos (dentes e matriz óssea) de vítimas mortas há muitos séculos. No caso em notícia, possibilitaram aos investigadores desenterrar os genes e a reconstituição de 99,9% do genoma de Yersinia pestis num conjunto de quatro seres humanos que foram enterrados entre 1348 e 1350, em East Smithfield, na Inglaterra.



Os resultados publicados na revista Nature contribuem para a importância dos estudos paleogenéticos. Os investigadores verificaram que o micróbio que exterminou quase um terço da população europeia, na baixa idade média, é geneticamente muito idêntico com os seus parentes actuais. Isto sugere uma mesma patogenicidade entre as variantes medievais e actuais da Yersinia spp. Outros factores, como as condições de vida, higiene pública, entre outros, terão sido determinantes para a calamidade pestilenta medieval.

(continua)

António Piedade

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Contágio no Cais do Sodré

Um cartaz do filme "Contágio" que é um painel vivo feito com microrganismos. Foi feito por investigadores do ITQB (Universidade Novas de Lisboa) e IBET. Pode ser visto ao vivo na estação de Metro do Cais do Sodré, em Lisboa.

O filme promocional da WarnerBros com o cartaz vivo:


A reportagem do sapo, com entrevista à artista residente do ITQB, Patrícia Noronha:



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O GENOMA PESTILENTO (1)


Crónica publicada no "Diário de Coimbra":

A pesta negra, nome por que ficou designada a doença, várias vezes pandémica, que vitimou entre 1347 e 1530 (Baixa Idade Média) cerca de um terço da população europeia, da China e do Médio Oriente, é causada pela bactéria Yersinia pestis.

A Y. pestis é uma bactéria Gram-negativa, muito patogénica aos seus hospedeiros que muito raramente lhe sobrevivem. A extrema virulência deste micróbio deve- se, em parte, á presença variável de uma molécula na sua superfície (um lipopolissacarídeo), que causa a activação desproporcionada do sistema imunitário do hospedeiro. A resposta imunitária à bactéria traduz-se pela elevada produção de substâncias designadas por citocinas, que causam vasodilatação generalizada, colocam em estado de sítio todo o sistema imunitário potenciando o choque séptico. Possui uma elevada resistência à destruição pelas células do sistema imunitário, não só resistindo à fagocitose por macrófagos como induzindo a apoptose (destruição programada) destas células imunitárias.

A espécie Y. pestis está preparada, adaptada, para contornar todas as estratégias de ataque imunitário. Para além disso, provoca a destruição de filamentos de actina, uma proteína fundamental para a função e arquitectura muscular. Por isto, a progressão da doença diminui irreversivelmente a força muscular. A desagregação tecidular e a vasodilatação ocasionam inúmeras hemorragias o que, conjuntamente com a degeneração da hemoglobina, instala uma cor azul-esverdeada que evolui para o negro que imprime a peste na pele. O corpo veste-se de negro e a morte celular pestilenta o ar que já não se respira.

Apesar de o seu órgão alvo ser o pulmão (o que permite que a bactéria possa ser transmitida de pessoa para pessoa através das gotículas expelidas por um espirro ou tosse), provocando “pseudo-tuberculoses”, a doença manifesta-se como uma zoonose, aparecimento de manchas e inchaços nas axilas e virilhas, comummente apelidados por bubões e daí a sua designação de peste bubónica.

Este microorganismo é transmitido ao ser humano por pulgas (Xenopsylla cheopis) que estiveram em contacto com ratos-pretos (Rattus rattus) e alguns outros roedores infectados, animais que são hospedeiros preferenciais daquele agente patogénico, que lhes é endémico e normalmente fatal. As pulgas são vectores da transmissão inter-indivíduos da Y. pestis que, uma vez sugada com o sangue dos roedores, se multiplica no intestino do insecto. De picada em picada, a pulga dissemina a bactéria de roedor em roedor, e destes aos humanos, mas também a gatos e cães de companhia.

Foi Paul Louis Simon, na última década do século XIX, que identificou pela primeira vez a pulga como principal vector transmissor da doença. A bactéria foi pela primeira vez isolada em 1894, em Hong Kong, pelo bacteriologista Alexandre Yersin. Tendo determinado o modo de transmissão da bactéria, ficou a ela associado pela atribuição do seu nome ao género do micróbio pestilento: Yersínia pestis.

Pelo exposto, torna-se evidente que as condições de higiene e saúde pública, de exposição diminuída a animais infectados e pulgas, ou à eliminação destes, são factores determinantes para o controlo da disseminação do agente causador da peste.

Ricardo Jorge com os seus colaboradores.

Em Portugal devemos a prova epidemiológica, clínica e bacteriológica, da peste bubónica, a Ricardo Jorge. Em Junho de 1899, quando da terceira grande pandemia da peste atingiu a cidade do Porto, a acção do patrono da Saúde Pública portuguesa impediu que o flagelo tivesse sido mais devastador. Contudo, a implementação das acções profilácticas, como a evacuação e desinfecção de casas, galvanizou a fúria popular que, manipulada e incentivada por alguns grupos políticos oportunistas da ignorância pública, obrigaram a Ricardo Jorge, literalmente, a fugir da cidade para salvaguardar a sua própria vida.

(Continua)

António Piedade

domingo, 1 de maio de 2011

O GENE ANTI-ANTIBIÓTICO




Post na continuação de outros dois (aqui e aqui) sobre a nova resistência bacteriana associada à sigla NDM-1.

O que significa NDM-1?

NDM-1 é a sigla inglesa para “New Delhi metallo-beta-lactamase-1”, uma enzima (proteína com actividade catalítica) que inactiva a acção de uma classe ampla de antibióticos designados por beta-lactâmicos. A sua designação advém de ter sido identificada primeiramente em num doente, turista sueco acidental, em Nova Deli, Índia (há alguma polémica sobre se não teria sido identificada antes).

Os antibióticos beta-lactâmicos são bactericidas, ou seja, causam a morte de bactérias. Alguns exemplos são as penicilinas, a amoxicilina, as cefalasporinas, os carbapenémicos (e.g., Meropeném) e o ácido clavulânico. Na prática, eles impedem que um amplo grupo de bactérias classificadas por bacilos gram-negativos, que nos causam doenças, consiga sintetizar a sua parede externa. A integridade desta parede, qual muralha inexpugnável de uma fortaleza, é feita de uma substância designada por peptidoglicano, e é essencial para a bactéria. Sem ela, a bactéria não consegue sobreviver.





Qual o perigo?

A enzima NDM-1, ao inactivar por hidrólise os antibióticos beta-lactâmicos, confere às bactérias que a possuem resistência a estes. Por outras palavras, os antibióticos de última geração, e até de algum uso restrito hospitalar, tornam-se “subitamente” ineficazes no tratamento de doenças causadas por bactérias que adquiriram o gene que codifica a NDM-1.
Acrescente-se que o gene da NDM-1 não está sozinho. Isto é, esta adaptação bacteriana a uma adversidade ambiental resultou numa solução tipo pacote de genes. O da NDM-1 faz parte de um determinado elemento distinto do cromossoma circular bacteriano, e que contém outros genes que amplificam e facilitam o “trabalho” da NDM-1. Há nele genes que facilitam a rápida disseminação desta resistência para outras bactérias, genes que codificam proteínas que funcionam como autênticas bombas que expulsam os antibióticos para fora das bactérias a eles antes susceptíveis, genes que estimulam as defesas anti-oxidantes das bactérias.
Em resumo: o mecanismo, ainda desconhecido, que levou ao desenvolvimento deste complexo genético, dotou o mundo bacteriano de uma nova arma antibacteriana multifacetada.

Que proteína é a NDM-1?

A NDM-1 é uma metalo-proteína que possui na sua constituição 158 aminoácidos e um átomo de zinco (Zn). A sua estrutura tridimensional foi resolvida recentemente.
Aliás, para se perceber o mecanismo de acção desta enzima e como ela altera a estrutura dos antibióticos com grupos beta-lactâmicos, é essencial conhecer a sua estrutura tridimensional. Por isso esforço científico multidisciplinar foi efectuado no sentido de conseguir o mais rápido possível esse conhecimento. A caracterização da sua estrutura molecular pode ser consultada aqui.
No banco público de estruturas proteicas, vulgo PDB (protein data bank), a sua estrutura está codificada por 1ko3.


A novela da multi-resistência.

O uso excessivo e muitas vezes desnecessário de antibióticos, a resistência bacteriana a eles, é um assunto sempre em cima da mesa da Organização Mundial de Saúde. O problema não é de hoje. Aliás, o desenvolvimento de antibióticos semi-sintéticos beta-lactâmicos de última geração já resultou de um esforço para ultrapassar problemas de resistência bacteriana adquirida contra os primeiros antibióticos, muitos deles já totalmente inócuos.

O caso da descoberta e confirmação da dispersão da NDM-1 entre várias espécies de bactérias que nos causam doenças mortais (entéricas, pneumónicas, etc.) é, contudo, alarmante uma vez que representa um novo mecanismo muito eficaz de resistência bacteriana e que pode colocar-nos numa situação muito semelhante à que existia antes da descoberta e desenvolvimento dos antibióticos (Fleming, penicilina, 1928). A diferença, saliente-se, reside nas incomparáveis condições de higiene, alimentação e saúde pública que hoje caracteriza os países ditos desenvolvidos.

Mas, se nada mudarmos, a nossa capacidade em matar bactérias patogénicas pode reduzir-se alarmantemente.

E outros casos continuam a permanecer explosivos.

O caso da tuberculose extremamente resistente às drogas que possuímos contra ela é um exemplo muito preocupante, relativamente pouco mediatizado, que causou a morte de 150 mil pessoas no ano passado.

É preocupante o número crescente de bactérias que causam infecções hospitalares, como é o caso da Staphylococcus aureus, causadora de pneumonia, endocardite, síndrome do choque tóxico entre outras doenças, e que apresentam multi-resistência à panóplia de antibióticos e drogas de que dispomos.


Também está a evoluir rapidamente a ineficácia dos antibióticos para tratar a gonorreia, doença grave e sexualmente transmissível, causada por Neisseria gonorrhoeae, bactéria que tem adquirido multi-resistência aos antibióticos a ela dirigidos.




Os mecanismos através dos quais as bactérias adquirem resistência aos antibióticos são ainda muito pouco conhecidos e mal compreendidos. É ainda espantosa a rapidez com que novas resistências se espalham e se “instalam” em outras bactérias que não as que a adquiriram primeiramente. É que as bactérias são há muitos milhões de anos assinantes de meios de comunicação muito eficazes na eficiência com que comunicam informação.

E muitos sintomas indicam que o problema se vai agravar e espalhar... entre nós, noutras doenças.


O que fazer?

É necessário implementar todas as medidas de saúde pública que combatam o uso inadequado de antibióticos. A educação e o aumento de cultura científica na população são das melhores defesas que temos contra o desconhecido e contra as doenças.


Por outro lado, o arsenal de conhecimento científico e biotecnológico que hoje possuímos, as robustas metodologias de biologia molecular, bioinformáticas emergentes que permitem um rápido escrutínio de candidatos a novas drogas, a rapidez com que identificamos as biomoléculas alvo para o desenvolvimento de novos medicamentos e a resolução com que identificamos genes e determinamos a sua estrutura tridimensional das proteínas funcionais, cartilha da sua função bioquímica, catapultam a nossa confiança no esforço multidisciplinar científico da humanidade para encontrar novas soluções para novos problemas de saúde.

António Piedade

terça-feira, 19 de abril de 2011

NDM-1: UM PERIGO PARA A SAÚDE PÚBLICA?


Crónica semanal publicada no Diário de Coimbra.

Tem-se verificado nos últimos anos um reacender constante do debate sobre a eficácia dos antibióticos que usamos para combater as doenças causadas pelas bactérias patogénicas que nos colonizam.

Após algumas décadas de aparente controlo e eficácia garantida por um conjunto de antibióticos ditos de última geração, começam a surgir casos de preocupação para a saúde pública, caracterizados por um aumento da resistência bacteriana às “balas mágicas”.

Inúmeros relatórios oficiais e artigos em revistas científicas generalistas como a “Nature” ou a “Science”, ou de especialidade médica como a “The Lancet” ou a “New England Journal of Medicine", têm posto a nu algumas fragilidades na luta contra várias bactérias causadoras de doenças severas e mesmo mortais.




No meio de várias preocupações com diversos microrganismos que adquiriram resistência aos antibióticos a eles específicos, a bactéria do momento, ou melhor, o grupo de bactérias colunáveis e de primeira página são aquelas que possuem o gene que codifica uma enzima designada por NDM-1 (de New Delhi metallo-β-lactamase 1). Descoberta em 2008 em Nova Deli, num paciente sueco, em viagem pela Índia, contaminado com uma estirpe de klebsiella pneumoniae (causadora de pneumonia), aquela enzima confere a estas estirpes uma “super-resistência” aos antibióticos que actuam pela “destruição” da parede externa feita de peptidoglicano, protecção essencial das bactérias classificadas por gram-negativas. No geral as bactérias que possuem esta enzima resistem a todos os antibióticos excluindo as polimixinas. Estas são antibióticos polipeptídicos, abandonados da prática clínica entre 1970 e 1980 devido à sua elevada toxicidade sobre o organismo humano. O aparecimento de estirpes bacterianas multirresistentes “obrigou” à sua utilização de última linha em ambiente hospitalar.

Estudos subsequentes permitiram identificar a nova estratégia resistente presente em vários géneros de bactérias da família Enterobacteriaceae (que inclui muitas das que nos são patogénicas como a Salmonella ou a Escherichia), em vários países incluindo a Inglaterra, em ambiente hospitalar e muito recentemente em águas de abastecimento público em Deli (http://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(11)70059-7/abstract). A maior parte das investigações indica que o elemento genético que codifica a NDM-1 possui também informação genética para proteínas que funcionam com bombas que expulsam os antibióticos para fora das bactérias, assim como ainda outras informações que facilitam a sua disseminação no mundo microbiano. É um exemplo de adaptação bacteriana de última geração que faz uso da rede global de partilha de informação genética bacteriana útil em prática há milhões de anos.

Apesar da “contaminação” da rede de água pública na cidade indiana referida, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou na semana passada vários comunicados para os media retirando peso ao alarme do perigo para a saúde pública, quer local quer mundial, contrapondo a necessidade de mais investigação para determinar o grau de perigo efectivo. De facto, os poucos estudos já publicados sobre as bactérias que apresentam a NDM-1, mostram que as bactérias não se tornaram mais patogénicas, “apenas” adquiriram uma multiressistência alargada a todos os antibióticos em uso! Segundo a OMS, são necessários mais estudos para fundamentar a necessidade de alterar ou alargar os procedimentos de prevenção.

Enquanto isso, os meios de comunicação bacterianos partilham o elemento genético que contém o gene para a super-multi-ressistência e espalham a boa nova bioquímica no “In Bacteria News”: Com NDM-1 sobrevives a qualquer droga humana!

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho Paisagem granítica na Serra da Gardunha. Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo...