Como já referi, no dia seguinte à constatação pelo Ludi de que é complicada «a refutação detalhada das patranhas que eles [criacionistas] despejam» tive uma experiência «mística» e hilariante noutro debate que me permitiu confirmar a origem pós-moderna das banhas da cobra e pseudo-ciências que insistem em explorar o desconhecimento alheio.
Na sequência da minha (mui) breve intervenção no programa do provedor do telespectador da RTP, fui contactada por uma jornalista do RCP para saber da minha disponibilidade em elaborar o que pensava sobre astrologia agora aos microfones desta rádio. Claro que estava disponível e só uns dias depois fui informada que estaria igualmente no estúdio um «astrólogo».
A gravação do programa foi uma revelação! Apesar de um certo
bias da jornalista, que se fartou de repetir qual mantra também «acreditar» em ciência, compensado pelo bom senso de Rui Mendes,
o actor que connosco partilhou as ondas hertzianas, diverti-me imenso durante a cerca de uma hora que lá estive. De facto, nunca vira alguém debitar ao vivo um discurso completamente vazio mas repleto de palavras «caras», sem qualquer sentido e tão irracional quanto o da homeopateta do vídeo anterior - embora o astrólogo que me saiu na rifa não atribuisse a partículas youees as formas de energia desconhecidas com que recheou a prosa decorada dos cartões sortidos que o acompanhavam!
O «astrólogo» parecia saber que o dogma central da astrologia fora definitivamente arrumado na prateleira das banhas da cobra
por um estudo que acompanhou ao longo de 50 anos mais de 2000 «gémeos temporais». O estudo verificou o que qualquer pessoa racional já sabia, sem necessidade de confirmação experimental: as nossas características, destino, etc., não sofrem a mínima influência da posição que calhaus ou globos de gás ocupam na treta que dá pelo nome de «carta astral ou astrológica».
Assim, depois de nos explicar que se virara para a astrologia devido a sentimentos de desadequação e inadaptação ao mundo, esforçou-se imenso por reiterar que, embora não fosse ciência, a astrologia não era charlatanismo embora existissem muitos charlatães a praticar a «profissão».
O que era então a astrologia que não é ciência para Nuno Michaels que não é «charlatão»? Bem, ouvi estupefacta um crescendo de dislates que começaram New Age e terminaram pós-modernos, com direito a leituras, dos tais cartões, de citações de Boaventura Sousa Santos, o grande argumento de autoridade que «legitimava» epistemicamente a astrologia.
Considerando que a maioria dos ouvintes da RCP não deve ter grande traquejo para pós-modernices misturadas com patetadas New Age só posso esperar que muitos tenham percebido que ler o horóscopo ou consultar um «astrólogo» é um disparate total. De facto, diria que ficaram completamente mistificados ao ouvir o «astrólogo», que não conseguia explicar o que cargas de água era a astrologia que não tem contraparte física, isto é, não tem nada a ver com a posição de calhaus num qualquer mapa «celeste». Bem, de contradição em contradição o astrólogo lá deixou escapar referência à «Lei Cósmica da Correspondência Sistémica» (???) que supostamente une todos os sistemas do Universo - por vibrações, claro, embora por muito que eu tentasse não conseguisse descobrir que cargas de água eram
as vibrações atribuídas, por exemplo, a Plutão e se estas seriam diferentes se Venetia Burney se tivesse lembrado de outro nome menos... simbólico para o ex-planeta. Também não consegui perguntar-lhe porque razão são irrelevantes as «vibrações» de Ceres, muito maior que Plutão ou mesmo Mercúrio.
A tirada
semiótica que se seguiu deixou-me morta de riso: achei divertida a confirmação de que a astrologia usa simbolicamente os planetas (como poderia usar búzios, tarot ou outra coisa qualquer) para esclarecer, de forma igualmente simbólica, isto é, completamente arbitrária, as angústias que a sociedade fria e científica provoca nos consultantes.
Embora não me recorde exactamente dos termos desta tirada - é humanamente impossível alguém recordar na íntegra aqueles longos minutos de prosa vazia, pomposa e sem sentido - os meus apontamentos, que utilizei para o interpelar das poucas vezes em que tive direito de palavra, permitiram-me localizar algumas das pérolas redondissimas utilizadas na sebenta de Semiótica - «A linguagem, a verdade e o poder - Ensaio de Semiótica geral», de Moisés Martins. O
Pedro Romano transcreveu alguns excertos da dita sebenta no seu blog, nomeadamente a parte que se segue, debitada no geral se não mesmo nos pormenores pelo «astrólogo» e em que semiótica foi substítuida por astrologia:
«A semiótica visa uma antropologia estrutural do imaginário (no seu sentido metapsicólogico) humano. Ora esse imaginário é assemântico ou não subjectivado. A matéria prima da Semiótica é uma substância que não é uma substância de conteúdo, mas um puro
medium imaginário entre a regulação biológica e a idealidade, indizível, do absoluto. Se o conceito de estrutura é o conceito formal de base da semiótica, o do imaginário como carne é o seu conceito substancial de base».
Os ouvintes nesta parte já se deviam interrogar sobre que raios estaria o senhor a falar que muitos pensariam certamente ser sobre algo completamente desconhecido. As citações ao roubo do fogo sagrado por Prometeu (esqueceu-se
do funcho) e o elogio a Platão e seus arquétipos poderiam ter enganado os mais incautos como sendo referências filosóficas mas na realidade foram uma elegia literal aos
arqué de Empédocles.
De facto, parece que a astrologia «é uma dinâmica de Ascenção [
sic, descobri que astrologia e ortografia não rimam], activada pela inter-relação dos Elementos: o Fogo, a Terra, a Água e o Ar», ou seja, esta gente quer
ainda recuperar a alquimia. Ou antes,
vende a sua banha da cobra como «o Projecto Alquímico que cada um de nós traz ao nascer, contido nas tensões do seu Tema Astrológico». Não sei se estas tensões rimam com vibrações mas não faltaram para compor o ramalhete termos como «holística» , dicotomias «visível» -«invísivel», «heranças energéticas», «energias específicas» e demais tretas. Assim como não faltou um esperado ataque à ciência e um elogio aos pós-modernistas em geral (Boaventura Sousa Santos em particular foi louvado como um profeta da boa-nova) que tanto contribuem para o sucesso de toda a espécie de charlatães e vendedores de banhas da cobra.
De facto, os grandes aliados do criacionismo e de todos os charlatanismos pseudo-científicos/alternativos são o eduquês e o pós-modernismo. O eduquês porque se devota a formar analfabetos científicos e também porque , sem qualquer surpresa, o discurso oco de ambos se confunde e muitas vezes se acumula num mesmo «especialista».
Steve Fuller, o «esquerdista pós-moderno» arregimentado pelos apóstolos do Discovery Institute para depor a favor do Desenho Inteligente no julgamento de Dover é um exemplo dessa coligação. Para Fuller, tal como para os eduqueses, a ciência não é neutra, é um
instrumento de opressão e, com um discurso familiar aos que leram o post «
Química no ensino básico: quem nos liberta desta cruz», rejeita «a epistemologia clássica» que considera «uma forma encoberta de distribuir poder».
O
Carlos, a
Helena,
eu própria e o
Desidério já abordámos o relativismo pós-moderno que basicamente assenta na presunção de que a ciência tem tanto valor epistémico quanto os delírios de qualquer feiticeiro tribal. Pessoalmente concordo em pleno com o filósofo alemão Jürgen Habermas que relaciona o conceito de pós-modernidade a tendências políticas e culturais neoconservadoras, determinadas em combater os ideais iluministas.
De facto, graças aos ideais iluministas houve espectaculares avanços civilizacionais e científicos nos últimos 250 anos. Na ética, na política, no direito, no conhecimento e nas metodologias. Estes avanços deveriam impor ao nosso intelecto a disciplina do pensamento crítico e da comprovação prática da validade de uma qualquer afirmação. Foi assim que a ciência e com ela a nossa civilização avançaram. Todavia, os estragos operados pela transposição para as nossas escolas e media da verbosidade mística dos apóstolos do pós-modernismo e do eduquês permitiram que qualquer charlatão possa afirmar o que quer que seja sem recear que lhe peçam qualquer comprovação (especialmente se disfarçar a vacuidade do discurso num palavreado impenetrável, aparentemente muito «intelectual», com
muitas mensagens de paz, amor, tranquilidade e preocupação com a natureza e esgrimindo que há formas alternativas de conhecimento se tudo o resto falhar).
No livro «Pós-modernismo, razão e religião», de 1992, Ernest Gellner refere-se ao pós-modernismo da seguinte forma:
«O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente...».
Gellner rejeita, como qualquer pessoa de bom senso - e mesmo o mais empedernido pós-moderno não usa telepatia em vez de telefone ou rezas em vez de medicamentos-, que uma afirmação factual, quer científica quer mitológica ou mágica tenha o mesmo valor epistémico e só possa ser considerada verdadeira ou falsa em relação a uma determinada cultura. Um portátil funciona da mesma maneira em Ouro Preto e em Osaka; afirmar que o oxigénio, O2, no seu estado fundamental, é uma espécie paramagnética é a constatação de um facto que tem o mesmo valor epistémico aqui, no Afeganistão ou na China. Como continua Gellner:
«O mundo em que vivemos é definido, acima de tudo, pela existência de um sistema de conhecimento único da natureza, instável e poderoso, e pela relação corrosiva e conflituosa que mantém com outros conjuntos de ideias ("culturas") que orientam a vida dos homens.(...)
Existe um conhecimento externo, objectivo e que transcende a cultura: existe, de facto, um "conhecimento para além da cultura." (...) A faculdade, inerente à cognição, que lhe permite ultrapassar as fronteiras de um qualquer casulo cultural e atingir formas de conhecimento válidas para todos - e, consequentemente, um entendimento da natureza que resulta numa tecnologia extraordinariamente poderosa - constitui o facto crucial das nossas condições sociais comuns».
Esta faculdade inerente à cognição que nos permite transcender limites étnico-culturais é estrangulada quer pelo pós-modernismo quer pelo eduquês, que, sob a capa do
multiculturalismo e respeito pelas diferenças, na prática aprisionam os membros de uma dada «
comunidade cultural» ou social. A experiência do Ludi e a minha são apenas gotas de água que reforçam ser urgente que, para além de acendermos
muitas velas de Sagan, não esqueçamos sobretudo o aviso de Joe Kaplinsky: «quando o criacionismo [a que acrescento patetadas como a astrologia] pode vestir-se de 'pensamento crítico' deveria ser evidente de que não é apenas com os fundamentalistas cristãos que precisamos preocupar-nos - é com todo um sistema educacional imbecilizante!»