
Em qualquer outro país existiria, facilmente acessível, uma biografia do seu maior sábio. Haveria até, provavelmente, romances históricos, quiçá mesmo guiões de cinema, baseados na sua vida. Em Portugal, sobre o matemático Pedro Nunes (Alcácer do Sal 1502 - Coimbra ? 1578), não há nenhum livro desse género que possa ser considerada verdadeiramente popular.
Há, porém, alguma
bibliografia de investigação histórica e científica. Duas obras foram há pouco acrescentadas a esse corpo: uma biografia de Pedro Nunes, “
Pedro Nunes. Em busca das suas origens”, que coloca a ênfase na pesquisa das suas origens familiares na vila de Alcácer do Sal, escrita pela historiadora Maria Teresa Lopes Pereira, e uma reedição moderna, com tradução e comentários, da que é talvez a mais importante obra do nosso maior cientista, o “
De Arte Atque Ratione Navigandi” (“Sobre a Arte e a ciência de Navegar”),
vol. IV da monumental edição das obras completas de Pedro Nunes, que está em curso pela Fundação
Calouste Gulbenkian e pela Academia das Ciências de Lisboa, com uma decisiva contribuição de um dos nossos mais laboriosos historiadores de ciência, Henrique Leitão, investigador do Centro de História das Ciências da Universidade de Lisboa.
Falemos da primeira. O subtítu

lo do livro de Lopes Pereira remete para um dos maiores mistérios associados a Pedro Nunes. Sendo hoje aceite que se tratava de um “
português de nação” ou cristão-novo, isto é, de alguém com origem judaica embora convertido, por moto próprio ou alheio, ao
cristianismo, qual era afinal a sua família na vila alentejana onde nasceu há mais de quinhentos anos? Conforme escreve a historiadora logo no início do seu tão interessante livro, prefaciado por Henrique Leitão: “
Desconhece-se, no entanto, o mês, o dia e a dia em que terá nascido. É uma incógnita o nome da mulher que o deu à luz e quem foi o seu pai. O mesmo sucede com os seus avós ou tios. Até hoje, as suas raízes familiares são um mistério por desvendar”.Este é, pois, o mistério de Pedro Nunes. O nosso maior cientista apareceu “vindo do nada”, tendo depois a sua família terminado ao fim de três gerações, pois os seus sete netos não deixaram, que se saiba, descendentes, quer legítimos quer ilegítimos (uns por terem falecido solteiros, outras por terem ingressado em conventos). Ninguém melhor do que a autora estava preparada para resolver o mistério de Pedro Nunes, uma vez que ela tinha escrito um livro, saído também na Colibri, sobre Alcácer do Sal no tempo da Idade Média (“
Alcácer do Sal na Idade Média”, 2000). Mas o mistério era tão grande que lhe resistiu até à data, continuando a desafiá-la a ela assim como a outros historiadores de ciência. Com o novo livro ficou-se a saber mais tanto sobre a terra que o viu nascer, sobre o ambiente da época, as judiarias e as famílias de judeus e cristão-novos, mas uma resposta conclusiva não foi ainda dada: “
A custo foram surgindo hipóteses plausíveis de parentesco. Por vezes tivemos a ilusão de ver o “puzzle” completo, com as peças todas certas e articuladas, para depois verificarmos que a construção final era débil e insegura”. Mas haja esperança: “Há segredos que ficam bem guardados. Um dia, como às vezes acontece, por um feliz acaso, descobre-se uma verdade que esteve sempre ali à espera de ser compreendida e decifrada”.Apesar da falta provisória de um final feliz, o livro de Lopes Pereira lê-se muito bem. Aliás, só o último capítulo trata da pesquisa das origens, de Nunes pois os outros três constituem uma das melhores sínteses biográficas sobre o sábio
salaciense, uma síntese que merece decerto mais leitores do que porventura o simples subtítulo da obra poderá suscitar.
O próprio Pedro Nunes é responsável pelo mistério das suas origens por ter criado um espesso muro de silêncio em torno do assunto. É, de certo modo, natural que o tenha feito, pois quando nasceu tinham passado escassos seis anos sobre o édito de D. Manuel de expulsão dos judeus e, quando ele tinha quatro anos, deu-se o “
pogrom” de Lisboa, que causou mais de duas mil mortes. Certo é que viveu
cristãmente, tendo até recebido o hábito de cavaleiro da Ordem Militar de Cristo em 1548, um ano depois de ter sido nomeado cosmógrafo-mor do reino. De outro modo não lhe teria sido possível ter chegado a professor da Universidade de Coimbra, onde foi o primeiro lente de Matemática, e, mais ainda, ter sido conselheiro real e
perceptor de príncipes: ensinou o príncipe D. Luís, irmão de D. João III e pai do prior do Crato, o infante D. Henrique, futuro Cardeal D. Henrique e rei, e terá também ensinado D. Sebastião. Curiosamente, Nunes falece dias depois do desastre de Alcácer Quibir, mas ainda antes da respectiva notícia ter chegado a Portugal; o seu
contemporâneo Luís de Camões teria dito no leito de morte, em 1580,
“morro com a Pátria”, mas o mesmo poderia ter dito dois anos antes Pedro Nunes...
Somando-se ao mistério das origens de Pedro Nunes, há ainda um mistério do fim: não se sabe ao certo se faleceu em Coimbra, na sua casa onde é hoje a Rua Ferreira Borges, ou na quinta que possuía nos arredores de Coimbra, numa terra com o nome árabe de
Aldazubre, perto de
Tentúgal, onde hoje se pára, a caminho da Figueira, por causa dos famosos pastéis. A arca com o seu espólio, decerto valioso dado o intercâmbio científico
internacional que mantinha, levou sumiço...
Conforme a biógrafa de Nunes nos conta no Capítulo 3 e em documentos anexos sabemos algumas coisas sobre a vida do sábio através dos testemunhos, incluídos hoje na Torre do Tombo, prestados por dois dos seus netos que foram presos pela
Inquisição sob a acusação de judaísmo, em locais que incluíam a quinta da família: Matias Pereira e Pedro Nunes Pereira (o nome Pereira, só por mera
coincidência em comum com a biógrafa) têm um apelido proveniente do seu pai João Pereira de Sampaio, que casou com Isabel da Cunha, uma das quatro filhas de Pedro Nunes e da sua mulher, a espanhola Guiomar Áreas (tiveram ainda dois filhos varões). A fama do avô e os serviços que este prestou à Coroa de pouco valeram aos dois irmãos Pereiras, apesar de eles os terem invocado em sua defesa. Os dois, que tinham cursado Cânones na Universidade de Coimbra, foram submetidos a tortura (lê-se no processo de Matias: “
Foy aleuantada atee ao libello [...] foy aleuntado atee a Roldana [...] lhe foy dado um trato experto [...] que dissesse a verdade, E pello não querer fazer, nem falar palaura foy mandado deçer E desatar dos pees.”) Corria o ano de 1631 e a perseguição aos “hereges” era bem maior do que no tempo do avô. Depois de quase uma década no cárcere (no Pátio da Inquisição em Coimbra, onde é hoje o Centro de Artes Visuais, pode ser vista uma cela dessa época), os dois só foram libertados depois de “abjuração de veemente” em auto público de fé. No processo abundam denúncias, fruto de vários motivos. Um deles poderá ter a ver com desavenças entre famílias: designadamente, o célebre episódio da “cutilada”, quando uma filha de Pedro Nunes e D. Guiomar (também ela Guiomar) apunhalou, na Igreja de S. João de
Almedina, onde hoje é o Museu Nacional de Machado de Castro, na presença do bispo, um seu pretendente que afinal não a pretendia. O episódio deixou marcas muito para além da cicatriz do visado. Na altura correram versos jocosos e convenientemente anónimos sobre o episódio, que Lopes Pereira nos recorda: “
Foi mui grande o valor dela/ E pouca a vergonha dele/ /Mas se ela ficou sem ele. Ele não ficou sem ela”).
Ora digam lá se a vida de Pedro Nunes e da sua família não dava um bom romance ou mesmo um filme?
- Maria Teresa Lopes Pereira, “
Pedro Nunes. Em busca das suas origens”, Lisboa: Edições Colibri, 2009.