sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A ESCOLA TEM DE ADIVINHAR O FUTURO


Entrevista que dei à jornalista Sara Oliveira, do portal Educare, a propósito das Conferências sobre Educação da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS):

EDUCARE.PT (E): Aprender a aprender é o tema da primeira conferência. O que parece uma redundância é, de facto, uma das questões-chave da Educação no nosso país?

Carlos Fiolhais (CF): "Aprender a aprender" é uma expressão que se tem ouvido muito. Está presente em inúmeros documentos dos programas portugueses, onde reina uma visão construtivista da pedagogia. Para alguns, mais importante do que a aprendizagem dos conteúdos, é a possibilidade que ela oferece de estarmos recetivos a aprender mais. Para outros, essa expressão não passa de um chavão que, no fundo, pretende desvalorizar os conteúdos em favor das metodologias, uma intenção afinal sem fundamento pois não se podem desligar conteúdos de metodologias. Aprende-se sempre alguma coisa em concreto.

A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) acha que esta dicotomia conteúdos-métodos deve ser discutida. Vamos discuti-la. O debate para o qual agora convocamos todos os interessados passa por cientistas da cognição e psicólogos. Como aprendemos? Há melhores formas de aprender do que outras? Que fatores favorecem a aprendizagem? As modernas neurociências e a moderna psicologia experimental oferecem-nos novos meios de olhar o assunto.

E: Quem tem de aprender a aprender? Os alunos? Os professores? Os pais? Todos?

CF: Os alunos, os professores, os pais, todos podem e devem aprender. Aprender faz-se na escola e fora dela, no tempo da escola e ao longo da vida. Mas os alunos, evidentemente, estão numa fase em que a aprendizagem se faz praticamente a tempo inteiro, estão numa fase em que se estão a preparar para a vida futura. Ora, a escola é o sítio onde devem aprender, foi o sítio que a humanidade inventou para isso. À medida que aprendem vão verificar que ficam evidentemente capazes de aprender ainda mais. Pedem-se várias coisas da escola, mas deve-se pedir sobretudo que nela se aprenda, o que implica necessariamente que nela se ensine, pois não há escola sem professores. É responsabilidade dos alunos aprender, é responsabilidade dos professores ensinar e é responsabilidade dos pais exigir a alunos e a professores que cumpram a sua obrigação.

E: Qual a principal mensagem do livro "Em causa: aprender a aprender", que será lançado em outubro?

CF: A cada conferência está associado um livrinho, que contém textos de apoio e que estará à disposição dos participantes. Isso permitirá que os debates cheguem mais longe do que as sessões presenciais. O livro sobre "aprender a aprender" contém as várias posições a propósito desse título por conceituados psicólogos da Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, e por dois especialistas portugueses, da Universidade do Minho e da Universidade de Lisboa. Não me vou antecipar, o melhor é ir à conferência e ficar com o livro para refletir. Os livros também poderão, depois das conferências, ser comprados nas livrarias.

E: A escola tem ensinado os alunos a encarar novos desafios, a enfrentar novas situações?

CF: Não há dúvida que a escola tem mudado à medida que a sociedade muda. Parece-nos, porém, muitas vezes, que a sociedade muda mais do que a escola. E isso leva-nos a pensar que temos de mudar ainda mais a escola. De facto temos. A escola é e deve ser cada vez mais uma realidade dinâmica. Mas temos de ter algum cuidado ao fazer isso: a escola tem obrigação de transmitir o que for, em cada época, julgado mais importante entre a enorme herança do passado. A escola tem de ser progressiva, adivinhar o futuro, mas ao mesmo tempo tem de ser conservadora, tem de transmitir os ensinamentos mais seguros do passado.

E: Num momento em que a Educação é uma área sensível, em que as políticas são contestadas nas ruas, o que importa debater? O que é importante mudar?

CF: Há várias questões que importa debater e há várias coisas que é preciso mudar. A FFMS quer ter e proporcionar uma visão mais profunda do que a que resulta da "espuma dos dias", da política contestada nas ruas. Queremos saber, por exemplo, onde estamos e para onde devemos ir no ensino do Português e da Matemática. Como estamos e para onde queremos ir nas ciências experimentais. Queremos, através de projetos de estudo, efetuar comparações internacionais sobre exames, horários escolares, exigência curricular, gestão das escolas, formação de professores, etc. E averiguar o que precisamos fazer para nos aproximarmos dos países mais desenvolvidos. A nossa comparação não deverá tanto ser com nós próprios no passado mas mais com os outros, que estão melhores do que nós, no presente.

E: O ensino experimental das ciências é outro assunto a analisar. Este ensino deverá ser uma presença assídua nos programas curriculares, independentemente dos conteúdos e das idades dos alunos?

CF: Sim, esse ensino deve ser uma presença nos programas. Mas é essencial nas idades mais baixas. Precisamos de mais e melhor ciência na escola, em particular nessas idades. Uma das maneiras de seduzir os jovens para a ciência, e até a melhor maneira para os levar a perceber o que é a ciência, consiste em generalizar na escola a experimentação. Para descobrir o mundo a ciência tem de "agarrar o mundo" com as mãos. Nos nossos jardins-escolas, no nosso ensino básico, as nossas crianças e jovens estão a "agarrar o mundo" com as mãos? Infelizmente, não o estão a fazer na medida suficiente.

E: A ciência é uma área que está a ser tratada como merece?

CF: A ciência em Portugal tem feito progressos extraordinários. Há mais investigadores, há mais projetos financiados, há mais dinheiro investido. E, com isso, publicam-se mais artigos, formam-se mais pessoas e espera-se que haja mais riqueza no sistema produtivo. Mas já o progresso não será o mesmo se analisarmos a educação científica nas escolas. A ciência ainda aparece algo escondida nos programas (chama-se-lhe até "Estudo do Meio" no 1.º ciclo) ou com pequena carga horária. O último teste internacional (PISA 2009) revelou alguns avanços, mas deixa-nos ainda, na área da ciência, abaixo da média internacional. Temos, por isso, de procurar fazer melhor.

E: Aprender uma segunda língua é o tema que será debatido em dezembro. As práticas internacionais serão analisadas para se perceber qual o exemplo que deverá ser seguido?

CF: Sim. O Inglês é, em Portugal, cada vez mais uma segunda língua. O seu ensino tem-se generalizado no Ensino Básico, em particular no 1.º ciclo. Mas a segunda língua aprende-se de forma diferente da língua materna, e estamos interessados em perceber o melhor modo de o fazer. Em vários países da Europa, o Inglês está mais difundido do que aqui e queremos aprender com as melhores práticas. O mesmo se pode dizer de outras "segundas línguas" como o Espanhol, o Francês ou o Alemão.

E: Como coordenador pedagógico, quais as bases em que se alicerçou para escolher os temas?

CF: Os temas já tinham sido escolhidos no ano passado, uma vez que estão na sequência natural dos temas escolhidos para as primeiras Conferências de Educação da FFMS, que foram "O valor de educar, o valor de instruir", o ensino da Matemática ("fazer contas ajuda a pensar?") e o ensino do Português ("como se aprende a ler?). Todas estas são questões-chave de educação. E haverá mais para o ano.

E: A presença de especialistas internacionais nas conferências - como Lynne Reder, professora de Psicologia da Universidade de Carnegie Mellon, David Klahr, professor de Desenvolvimento Cognitivo e Ciências da Educação da Universidade de Carnegie Mellon, e Cármen Muñoz, professora de Linguística Inglesa e Linguística Aplicada na Universidade de Barcelona - é importante para Portugal olhar à sua volta?

CF: A FFMS está interessada em fazer a análise e o diagnóstico da Educação em Portugal para possibilitar a todos uma melhor percepção do país que somos. E isso passa muito por comparações internacionais. Queremos cotejar-nos na cena europeia e mundial. E queremos aprender com o que se passa noutros lados, quer para evitar cometer os mesmos erros, quer para imitar os casos de sucesso. Chamamos alguns dos melhores especialistas internacionais porque eles nos trazem outras realidades e porque o seu olhar exterior é muito útil para compreender a nossa realidade e atuar sobre ela no melhor sentido.

E: Qual o futuro da Educação do nosso país?

CF: Na Educação progredimos nalguns indicadores mas estamos ainda longe dos níveis dos países mais desenvolvidos, onde existe mais e melhor Educação. O nível geral de qualificação da nossa população ativa ainda é baixo. Podemos melhorar, temos de melhorar. A maior riqueza de Portugal são os seus recursos humanos. Quanto mais formação tiverem os cidadãos, maior será a nossa riqueza. O nosso sistema educativo terá necessariamente de evoluir para formar mais e melhor os portugueses. Sem Educação, ou melhor, sem uma Educação qualificada, o nosso país não tem futuro. O futuro da Educação é, portanto, o futuro do país.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A minha alma não, desculpe!

Entro num certo departamento de uma certa instituição de ensino e não posso deixar de reparar no único cartaz que está afixado. A cor é suave, o grafismo apelativo. Vejo que se trata duma lista... Com alguma curiosidade, aproximo-me e confirmo: é uma lista composta por uma espécie de princípios, tópicos, aspectos. São muitos, mas não consigo passar do primeiro. Leio-o, relei-o e volto a relê-lo.

Quando aquilo que observamos é de tal modo alheio aos nossos esquemas mentais, temos dificuldade em perceber o seu sentido, o seu alcance...

Aderir de corpo e alma ao novo paradigma da organização…”, eis a frase que me deixa, por largos momentos, nesse estado!

Aderir ao “novo paradigma”!? Paradigma é uma palavra sofisticada, imprime sempre um tom erudito a qualquer texto, a qualquer conversa, não menospreza o leitor ao qual se destina, eleva-o a um patamar de sofisticação linguística, e o leitor sente que "está em casa".

Mas, "voltando à terra", qual é esse paradigma? Onde está explanado? Eu deveria conhecê-lo!? E, se não o conheço, devo aderir a ele? De corpo e alma!?

Seja qual for o paradigma, posso aderir a ele (talvez) de corpo. Mas de alma!? Aí, vamos mais devagar, calma… A alma (seja lá isso o que for) é minha e só minha, não ma peçam, por favor, que o não podem fazer.

Eu até a posso dar, empenhar, vender, destroçar, mas isso é comigo e só comigo. Não posso admitir que me digam para a dar, que me imponham que a dê, que a empenhe, que a venda, que a destroce. No caso, que adira…

Quem escreveu isto (alguém escreveu isto!), mesmo que seja agnóstico ou ateu, terá lido a Nau Catrineta?

Nota: Não importa a identificação da instituição que motivou este texto porque estará longe de se tratar de um caso isolado.

Magueijo, Majorana e os neutrinos


Hoje, às 18h30, na FNAC do Colombo, em Lisboa, tenho o gosto de apresentar o livro do físico João Magueijo (na figura), "O Grande Inquisidor" (Gradiva) que acaba de sair na Gradiva. Não podia ser mais actual pois se trata de uma biografia de Ettore Majorana, o físico italiano desaparecido misteriosamente em 1938 depois de ter estudado os neutrinos (há até um neutrino com o seu nome). E os neutrinos têm estado na ordem do dia. Deixo um bocadinho do livro, com a descrição dos neutrinos por João Magueijo, esperando assim abrir o apetite para um magnífico livro que é tanto de divulgação científica como de história da ciência moderna.

Carlos Fiolhais
"Termos descoberto a existência do neutrino é por si só quase um milagre, e no entanto o universo está infestado deles. Há tantos neutrinos como partículas de luz e mais, mas muito mais, neutrinos que átomos ou quaisquer partículas associadas à matéria vulgar. Movem-se por toda a parte, em todas as direcções, a uma velocidade próxima da da luz, atravessam tudo, atingem o nosso corpo aos biliões a cada segundo que passa, vindos dos céus, do chão, da linha do horizonte, de toda a parte.

Se alguma vez conduziu nas ruas de Palermo, talvez tenha reparado num número comparável de scooters a rodearem o seu carro vindas de todas as direcções concebíveis, e também a ultrapassarem-no a uma velocidade próxima da da luz; pelo menos, é o que parece. Conduzir em Palermo é uma metáfora perfeita do movimento
dos neutrinos. A semelhança, no entanto, fica-se por aqui. As scooters de Palermo, uma vez por outra, embelezam os carros dos habitantes com os efeitos extravagantes
de choques aparatosos; já os neutrinos são demasiado tímidos para este tipo de exuberância. Na verdade, são tão modestos e introvertidos que, apesar de biliões deles nos atingirem a cada segundo que passa, atravessam o nosso corpo como a um fantasma. São precisas várias horas para que um único neutrino interaja com os átomos do corpo de uma pessoa. Para os neutrinos, a matéria do universo é perfeitamente transparente, diáfana, imaterial; do mesmo modo, nós próprios não nos apercebemos dos efeitos do colossal mar de neutrinos que nos envolve.

A maior parte das hordas de neutrinos que nos atingem vem do Sol, mas a Terra é tão transparente para eles, que à noite recebemos uma chuva de neutrinos vinda de baixo, e o brilho do Sol no «canal de neutrinos» é aproximadamente o mesmo de noite e de dia.

A situação é de tal maneira estapafúrdia que, quando por fim construímos o primeiro telescópio de neutrinos, tivemos de o pôr no Pólo Sul — para observar os céus do hemisfério norte! Usámos a Terra como «lente», ou filtro, para que os muitos quilómetros de gelo do Pólo Sul funcionassem como película nesta peculiar câmara
de neutrinos.

Foi preciso esperar por 1956 para conseguirmos detectar o primeiro neutrino, com recurso a um truque muito engenhoso. Teve de o ser, uma vez que qualquer vulgar neutrino consegue atravessar vários anos-luz de matéria como se se deslocasse no vácuo, sem paragens em que possa dar-se a conhecer.

Sendo assim, como é possível que Ettore já soubesse da existência de neutrinos nos anos 30? A resposta pode muito bem ter a ver com o seu desaparecimento.

Os neutrinos podem ser tímidos, mas detêm o segredo da mais mortífera das armas humanas. Sem o segredo do neutrino, as armas nucleares não seriam possíveis. Cada vez que há uma detonação nuclear, é lançada uma vaga tremenda de neutrinos. Embora sejam demasiado discretos e tímidos para causarem qualquer dano directo, são fundamentais para a deflagração."

João Magueijo

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Física Nuclear: de Rutherford à bomba atómica


O físico britânico Ernest Rutherford, que há cem anos descobriu o núcleo atómico, foi o primeiro a reconhecer no seu interior a existência dos protões, partículas com carga simétrica da dos electrão mas cerca de 2000 vezes mais pesadas, no núcleo atómico.

Além dos protões, que mais partículas há nos núcleos dos átomos? Como os electrões escapam dos núcleos nos processos radioactivos beta pensou-se durante algum tempo que existiam, de facto, electrões nos núcleos, tal como existem fora deles. Diz o senso comum que se o Senhor Fonseca aparece à porta de casa porque, com certeza, se encontrava antes em casa. Os electrões, contudo, apareciam e aparecem à porta do núcleo sem terem estado antes do núcleo. Eles eram o resultado do declínio de uma partícula, de cuja existência suspeitaram várias pessoas, entre elas o próprio Rutherford, mas que só foi identificada experimentalmente em 1932 por um discípulo dele, James Chadwick, num laboratório de Cambridge, que ganhou assim direito ao Prémio Nobel da Física de 1935. Na experiência de Chadwick, um núcleo de berílio, bombardeado com partículas alfa (núcleos de hélio), originava carbono e libertava um neutrão. Este neutrão era depois absorvido por azoto, saindo finalmente novas partículas alfa e ficando um núcleo de boro.

1932 foi o "annus mirabilis" da Física Nuclear: nesse ano foi construído o primeiro acelerador circular (por Ernest Lawrence, em Berkeley, Califórnia), foi realizada a primeira reacção nuclear num acelerador (por John Cockcroft e Ernest Walton, em Cambridge; note-se a "importância de se chamar Ernesto", uma vez que já é o terceiro que aqui aparece) e descobriu-se, como já foi dito, o neutrão. Se as duas primeiras proezas foram percursoras de importantes técnicas experimentais para a exploração dos núcleos, tendo essas máquinas primitivas sido antepassadas dos modernos aceleradores, a última veio completar o elenco dos principais componentes do núcleo: o núcleo atómico é uma colecção de protões e neutrões (genericamente nucleões), sendo a soma deles igual ao número de massa e o número de protões, ou número atómico, igual ao número de electrões no átomo.

Em 1933 reunia mais um Congresso Solvay em Bruxelas. Desta vez a percentagem de físicos nucleares era bastante maior que das outras vezes. Apareciam, da velha geração, Ernest Rutherford e Marie Curie, e da nova, Niels Bohr, James Chadwick, Ernest Lawrence, John Cockcroft, Enrico Fermi, George Gamow, Rudolf Peierls, Irène e Fréderic Joliot Curie, Lise Meitner, Werner Heisenberg, etc. A Física Nuclear estava a entrar na sua idade adulta.

A mecânica quântica, estabelecida na sua forma actual em finais dos anos 20, conseguia explicar os fenómenos tanto do átomo como do núcleo. A radioactividade alfa só pode ter lugar devido a um efeito quântico chamado efeito túnel, tal como o físico de origem russa George Gamow (famoso pelos seus excelentes livros de divulgação) concluiu em 1928. Os processos radioactivos beta, por sua vez, foram teorizados pelo italiano Enrico Fermi em 1934, usando sempre a mecânica quântica. A teoria apareceu nestes casos bem depois da experiência.

Em 1934 descoberta a radioactividade artificial por Fréderic e Irène Joliot Curie, esta última filha do casal Curie. Núcleos leves em configurações anormais, por exemplo com grande excesso de neutrões, podiam ser a origem de processos radioactivos, tal como os núcleos pesados. O novo casal Curie bombardeou alumínio com partículas alfa, obtendo uma modalidade radioactiva de fósforo e provocando emissão de neutrões. Em 1935, Fréderic e Irène Curie receberam o Prémio Nobel da Química (numa cerimónia a que a mãe de Irène não pôde assistir pois tinha falecido de leucemia no ano anterior, em resultado do seu prolongado contacto com material nuclear; já Pierre Curie tinha efectuado sobre si próprio experiências sobre os efeitos fisiológicos da radioactividade).

De 1935 a 1945, Enrico Fermi, um notável professor que, vindo de Roma, atravessou o Atlântico para se estabelecer em Chicago e se confirmar como um dos maiores génios na Física do século XX (conseguia até, por cálculos simples, saber o número de pianos que havia em Chicago sem precisar de os contar!), foi o principal intérprete dos desenvolvimentos da Física Nuclear. Uma vez descoberto o neutrão, Fermi começou por efectuar numerosas experiências de bombardeamento de outros núcleos por neutrões, desencadeando assim várias reacções nucleares. Ganhou assim o Prémio Nobel da Física de 1938.

Usando ainda colisão de neutrões, os alemães Otto Hahn e Fritz Strassman descobriram em 1938 a cisão do urânio, num laboratório em Berlim. O urânio 235, quando bombardeado com neutrões, dava origem a núcleos de crípton e bário, muito mais leves que o urânio, e libertava neutrões. A cisão nuclear foi logo explicada por uma física sueca de origem austríaca, Lise Meitner, e por um seu sobrinho, Otto Frisch. Um tal processo pode ser induzido por neutrões ou mesmo aparecer espontaneamente, sendo neste caso, tal como acontece no declínio alfa, resultado de um efeito túnel. A cisão, descoberta no limiar da Segunda Guerra Mundial, viria a provocar o seu termo, como é bem sabido. Em 1942, Fermi punha a funcionar debaixo da bancada de um estádio de Chicago a primeira reacção em cadeia no urânio. O urânio bombardeado com neutrões lentos fazia libertar novos neutrões que, por sua vez, cindiam outros núcleos de urânio. Em 15 de Julho de 1945 num sítio chamado Trinity Zero, no deserto do Novo México, no meio do maior segretismo, era realizada a primeira explosão de uma bomba atómica no planeta. O chefe da notável equipa do Projecto Manhattan, que concebeu e experimentou a bomba foi Robert Oppenheimer, um jovem e brilhante físico norte-americano que haveria nos anos 50 de conhecer os horrores da suspeita política e da perseguição (existem uma peça de teatro e uma série televisiva sobre o caso Oppenheimer). A história do fabrico da bomba por demais conhecida: a fuga recambolesca de Niels Bohr da Europa com uma garrafa que julgava ser de água pesada mas que afinal continha cerveja, as travessuras de Richard Feynman a abrir os cofres de Los Alamos, a exclamação penitente de Oppenheimer de que "nós os físicos conhecemos o pecado", o facto insólito de um dos descobridores da cisão ter sabido da explosão sobre Hiroshima num campo de prisioneiros na Inglaterra (Hahn tinha recebido o Prémio Nobel da Química em 1944). Curiosamente, já tinha havido uma premonição de Pierre Curie, no seu discurso Nobel em 1911, sobre os perigos do material nuclear: "pode imaginar-se que em mãos criminosas o rádio se torne uma arma terrível"...

CIGANA E CIGANO


Novo texto literário da escritora Cristina Carvalho:

Há muitos, muitos anos havia uma égua e em cima da égua, uma mulher de longo, enorme cabelo que lhe corria até abaixo da linha da cintura. A égua era branca e tinha uma crina branca, muito forte, muito bela, comprida, comprida! A mulher, sentada de lado em cima do lombo da égua afagava-lhe de vez em quando a crina, dava-lhe umas palmadinhas no pescoço forte e muitas vezes, à medida do trote, trote que trote, entortava-se a mulher de modo a poder dar-lhe um beijo ainda e outra vez, no pescoço. Ambas trotavam. Uma em cima da outra. A mulher, descansadamente, enquanto passeava ia escovando calmamente o seu belo cabelo que se revelava com ar de cobre sob o sol desse quente mês de Junho.

Alguém lhe seguia os movimentos. Atrás de si e do trotar da sua égua, um passo rápido, um passo forte, uma passada de cavalo acompanhava-a sem disfarce e sem engano. Ela à frente, ele atrás. O homem em cima do cavalo era jovem, tão jovem que fazia o chão tremer à sua passagem, tão jovem e belo que nada mais neste mundo ali e naquele momento, nada poderia fazer com que ele desistisse desse passo e intenção.

Ela seguia escovando o cabelo. Nem tormentas, nem saudades, nem passado ou novidades a fariam desistir deste passeio único e apaixonado. A sua égua marchava calmamente e livre, livre sem rédeas, sem mandos, sem ordens, sentindo apenas aquele corpo tão leve em cima de si.

É então, num certo momento, num arredondar da estrada que eu a vejo. Vejo os dois. Ela em cima da égua. Ele em cima do cavalo. Mas a luz do seu cabelo cega-me, mal a vejo, mal a distingo tal é o Sol que dela vem. E agora ele, vestido de preto de cima a baixo, e por baixo do grande chapéu que usa vejo-lhe os olhos a brilhar, a seguir a passada da égua mais à frente, atentos olhos, atento rosto. É esta beleza que eu contemplo escondida por detrás duma árvore e quase que a respiração me falta, quase que passo ao sobressalto quando sinto o raspar dos cascos da égua tão perto da minha sombra e agora o sopro poderoso da respiração do cavalo que monta o homem vestido de preto, homem sem sombra de tão jovem, de tão poderoso que é. Ela avança pelo trilho, afaga a crina e o lombo da égua, escova o seu cabelo de oiro e cobre, o seu grande orgulho, e eu muda e muda e muda desloco-me, mudo de posição, escondo-me mais, quase desapareço nesta prega dum tempo que já não existe, que vai desaparecendo aos poucos como desaparece o dia quando a noite se aproxima, inexoravelmente.

Mais à frente, no final do caminho, a tenda armada num descampado de ervas rasteiras. É um vasto campo sem fronteiras, sem amarras. Dum lado a encosta do monte, do outro a cama brilhante do rio que corre, leito lânguido, língua húmida, água branca, transparente, enxoval de peixes e rãs e de pedras cintilantes como estrelas baixas. Eles lá entram na tenda e eu na esquina do tempo; o que por lá se passa não sei, não compreendo, não vejo a luz. Ainda não vejo a luz dos seus olhos e dos seus cabelos. Apenas sei e sinto que o tempo que tudo engole, também nos engole, a mim, a ti, cigana do longo cabelo que montas a égua da crina branca, e a ti, cigano jovem vestido de preto em cima do belo cavalo e não é porque tens esse longo cabelo, e não é porque tens esse olhos negros que espreitam abaixo da aba do teu chapéu e não é porque égua és e não é porque és cavalo e não é porque sou eu, arredondada na esquina do caminho, que escapamos à fome, à gula do tempo.

Hoje, passados anos, tantas luas já andaram e tantos sóis já giraram, tanta estrela se apagou, o grande vento soprou, águas de invernos passados, sopro de verãos desejados, aqui me encontro sentada nesta cadeirita baixa, atrás da minha banca recheada de peúgas de todas as cores e para todos os gostos. Estou velha e gorda. Já não tenho agilidade nenhuma. Apenas o meu olhar continua vivo, ardente e fixo. Reparo nas pessoas que se refugiam do calor debaixo dos toldos brancos das bancas dos feirantes, dos toldos que ondulam por via duma fraca brisa que flutua e finge frescura. Escalda e estoira o chão alcatroado, quase que derrete, o calor é tanto e tanto e eu, agachada na terra, escondida nas minhas roupas compridas e escuras, puxo o lenço preto mais para a frente, mais para a testa, restam-me os olhos; ninguém pára na minha banca, ninguém quer comprar nada e muito menos peúgas…

Mesmo em frente, do outro lado da rampa da rua por onde escorrem as bancas e os toldos, há um inesperado espaço e nesse espaço, abertura, hiato, não um cavalo nem uma égua mas uma carrinha branca e dentro do espaço de sombras dessa carrinha de portas laterais bem abertas, um escuro muito escuro porque a luz do Sol vai cegando e no escuro muito escuro, deitado nuns cobertores, acalorado, um homem, um outro homem sem cavalo, sem rasto de égua; um homem a dormitar. Do lado de fora, na rua, de frente para a boca aberta do escuro da carrinha, uma mulher escova o seu longo cabelo preto e branco e olha-se e torna a olhar-se e mais uma vez ainda, num espelhito pendurado no fecho duma das portas…

O tempo passou. Os animais já morreram. Nós ainda por cá andamos.

Cristina Carvalho

HUMOR: ATENDEDOR DE CHAMADAS DE UMA ESCOLA AUSTRALIANA

terça-feira, 27 de setembro de 2011

CIENTISTAS DE PÉ NA CASA DA CERCA

Uma mega-produção com um pôr do Sol verdadeiro e vista deslumbrante sobre Lisboa em cena, foi assim o espectáculo Salvar o Mundo ou Rir a Tentar na Casa da Cerca, em Almada:


Amanhã (quarta-feira) há mais: às 19h no Centro de Congressos do Estoril, na abertura do Green Festival.

MITOS E CRENÇAS NA CIÊNCIA

Versão completa do vídeo sobre mitos e crenças na ciência, criado especialmente para a Noite Europeia dos Investigadores 2011, pelas Produções Fictícias:

SOBRE A REVOLUÇÃO GENÓMICA










Richard Resnick, here in a TED Conference in Boston, is on the front lines of the business of genomes, as CEO of GenomeQuest, a maker of genomic software.

VACCINE: THERE IS NO INOCULATION AGAINST IGNORANCE.


Destaque para a sempre atenta e oportuna coluna What's New de Robert Park:

"Here we go again. Last week during a debate of Republican presidential candidates, Representative Michele Bachmann characterized human papilloma virus (HPV) vaccine as "a potentially dangerous drug," and linked its effect to "mental retardation." There is no medical support for her wildly irresponsible remarks; the HPV vaccine prevents cervical cancer, and an editorial in Nature calls on Bachmann to retract her words, but I don't think she reads Nature. The 1998 claim of British researcher Andrew Wakefield that the common MMR vaccine causes autism set off a revival of the anti-vaccination movement, and a corresponding rise in measles cases. In 2009, however, Wakefield was found to have altered patient’s records to support his claim . Barred from the practice medicine in the UK, Wakefield now operates an autism clinic in Austin, Texas. He doesn't have a US medical license, but such formalities don't much matter in Texas. Rick Perry, the Governor of Texas, differs with Bachmann on HPV, having attempted to mandate the use of the HPV vaccine for 11 and 12-year-old schoolgirls as the Center for Disease Control recommends, which may have something to do with the fact that Merck, the only maker of HPV vaccine, is a major contributor to Perry's campaign."

Robert Park

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

BOM DIA NEUTRINO!



Crónica (adaptada) publicada no Diário de Coimbra.

A luz solar demora cerca de oito minutos a atingir o planeta Terra, depois de percorrer cerca de 150 milhões de quilómetros a uma velocidade de aproximadamente 299 792 458 metros por segundo. (Diga-se, neste andamento, que a distância Terra – Sol varia ao longo do ano, devido à trajectória elíptica da Terra: É mínima no periélio, que ocorre no princípio de Janeiro (141 milhões de km) e máxima no afélio (152,1 milhões de km) por volta de 4 de Julho (Dia de Coimbra).

Albert Einstein considerou aquele valor como invariante e mostrou que ele era o limite superior inultrapassável para a velocidade de todas e quaisquer partículas e objectos no vácuo. A sua teoria da relatividade restrita, que entre outras se expressa na mais famosa equação do século XX - E = m c^2 (E para energia, m para massa, c a velocidade de propagação da radiação electromagnética no vácuo) -, parte precisamente da invariância da velocidade da luz e tem como consequência a existência de um limite superior para a velocidade: o m naquela equação vai crescendo à medida que a velocidade aumenta de modo a impedir que uma partícula com massa alcance a velocidade da luz.

O físico português João Magueijo tem vindo, há mais de uma década, a investigar a hipótese de o valor de c variar ao longo da evolução do nosso Universo, “desafiando” assim a teoria da relatividade de Einstein. Divulgou essa hipótese ao grande público no livro “Mais rápido do que a luz”, publicado em Portugal pela Gradiva, em 2003.

O novo livro de Magueijo, com o título de “O Grande Inquisidor”, também editado pela Gradiva, conta a vida de Ettore Majorana, um físico italiano que terá sido o primeiro a propor a existência do neutrão, partícula sem carga presente no núcleo dos átomos. Majorana, que desapareceu misteriosamente, terá também trabalhado, “precocemente”, na previsão da existência da partícula conhecida por “neutrino”, a qual tem sido notícia nos últimos dias devido à descoberta, pelo menos aparente, de que pode assumir velocidades superiores às da luz (ver, por exemplo, aqui, aqui e aqui)!

Mas o que é um neutrino?

Quando um neutrão é isolado de alguma forma de um núcleo atómico, os cientistas verificam que, em cerca de vinte minutos, ele “desaparece” aparecendo um protão e um electrão. Os primeiros investigadores a observar esta transformação ficaram intrigados porque, ao calcular (utilizando a equação de Einstein acima indicada) as energias envolvidas nessa transformação, estas não batiam certo: a soma das energias correspondentes ao protão e ao electrão resultante era inferior à energia do neutrão inicial!

A experiência parecia colocar em causa o princípio da conservação da energia, de certo modo semelhante ao princípio enunciado por Lavoisier da conservação da massa. No processo de transformação de um neutrão num protão e num electrão perdia-se, de alguma forma, energia. Num esforço teórico para “conservar”o princípio de conservação da energia (nada se cria, nada se perde, tudo se transforma!), Wolfgang Ernst Pauli (prémio Nobel da Física em 1945) propôs, como hipótese, a existência de uma outra partícula, indetectável pela tecnologia da época, que não teria carga eléctrica, mas que era responsável pela parte em falta no balanço energético! Essa hipotética partícula sem carga foi baptizada de “neutrino”. Os neutrinos viriam a ser detectados experimentalmente em 1956 na proximidade de reactores nucleares. E a confirmação da sua existência permitiu manter “incólume” o princípio da conservação da energia.

Os neutrinos, partículas muito difíceis de detectar por interagirem muito pouco com átomos ou com as partículas que os constituem, têm vindo a ser alvo de grande interesse por parte dos físicos e dos astrofísicos, quer para indagar a natureza íntima da matéria, quer para revelar a natureza do Universo longínquo. Sendo resultado de reacções nos núcleos atómicos, a detecção de neutrinos provenientes do “nosso” Sol foi mais uma confirmação da origem nuclear da energia das estrelas. Para além disso, a sua detecção na explosão da Supernova SN 1987A, em 1987, deu alento à astrofísica dos neutrinos como uma enriquecedora ferramenta para estudar o Universo.

Recebemos do centro do Sol um intenso fluxo de neutrinos (cerca de 65 mil milhões por segundo). Como estas partículas atravessam o nosso planeta praticamente sem interagirem com ele, podemos dizer, tal como escreveu Hubert Reeves, que o “Sol neutrínico nunca se deita” e, contrariamente à luz solar, somos banhados por fluxos solares de neutrinos numa alvorada permanente. Os neutrinos estão sempre a dizer-nos bom dia! Aliás, os neutrinos têm estado presentes nos novos dias da ciência, da nossa compreensão da natureza das coisas (De Rerum Natura) de que somos feitos e que nos rodeiam...

António Piedade

DAS ROCHAS SEDIMENTARES (2) - ROCHAS TERRÍGENAS


Arenito do Triásico discordante sobre camadas pregueadas
do Carbónico marinho, na Praia do Telheiro, Vila do Bispo, Algarve.


Continuação da divulgação dos textos do Professor Galopim de Carvalho sobre Rochas Sedimentares (ver aqui o primeiro).



ROCHAS TERRÍGENAS


Vai para 50 anos, mais precisamente, em 1963, o professor André Cailleux, da Universidade de Paris, de quem fui aluno de 1962 a 1964, escreveu: Parmi les joies qui s’offrent aux hommes, en ce demi-siècle, l’étude des sables et des galets tient une place de choix. E falou verdade este meu simpático mestre. Foram muitos os estudiosos que dedicaram às areias e aos calhaus muito do seu tempo. E eu fui um deles.

Ao classificar de terrígenas (em 1968) um certo tipo de rochas sedimentares, o professor Robert L. Folk, da Universidade do Texas, em Austin, pretendeu enfatizar a sua proveniência a partir das terras emersas, com base no correspondente étimo latino terra, em oposição a mare (mar), numa linha de pensamento que faz jus aos naturalistas do século XVIII, bem expressa numa das classes (“terras”) da classificação proposta em 1782 pelo químico e mineralogista sueco Torbern Oloff Bergman (1735 -1784), de todas a mais divulgada.

Em 1967, o petrógrafo e sedimentólogo britânico John C. Griffits (1912 – 1992) considerava uma rocha terrígena R como uma população de indivíduos (as partículas detríticas) e, assim, interpretava-a como uma função f das variáveis: composição litológica e/ou mineralógica C, dimensão D e forma F das partículas e, ainda, das respectivas orientação O e acondicionamento A, função que representou pela expressão: R = f(C,D,F,O,A). Quer isto dizer que, observando a natureza, o tamanho e a forma (incluindo o grau de desgaste) dos elementos detríticos de uma rocha terrígena e, ainda a orientação e a inclinação destes e o seu empilhamento, poderemos reconstituir a sua história e o ambiente em que se formou.

A expressão rocha detrítica (do latim detritus, o que resultou de esmagamento) usada como sinónima de rocha terrígena, acentua que os seus constituintes são, via de regra, fragmentos ou clastos (do grego klastós, fragmento) minerais ou líticos (rochosos) subtraídos a outras rochas preexistentes, por meteorização e/ou erosão e, em geral, transportados até ao local de sedimentação.

Na medida em que as principais fontes de materiais detríticos constituintes das rochas terrígenas provêm de granitóides (granitos, granodioritos e afins), gnaisses e xistos, rochas estas fornecedoras, sobretudo, de quartzo e de minerais primários ricos em silício (feldspatos, micas) ou de outros minerais silicatados (argilas), resultantes da meteorização destes, estas rochas são também apelidadas de siliciclásticas.

(continuar a ler aqui)

Com Camus

Jean Daniel, fundador do Le Nouvel Observateur, privou com Albert Camus, foram amigos, distanciaram-se, apesar de terem continuado unidos na profissão e no pensamento. A morte prematura do jornalista-filósofo-escritor-editor não permitiria uma reaproximação em presença, o que, de resto, não seria necessário: Daniel ficaria, para sempre, com Camus.

O livro que publicou em 2006 na Gallimard revela o encontro entre duas pessoas que, nas grandes e pequenas batalhas que o jornalismo convoca (e além dele) se pautaram, sem cedências, pelo humanismo.

É precisamente este conceito que se revela como o centro do livro, numa reflexão pouco linear mas indubitavelmente real: por não estar terminado e, nessa medida, implicar procura não isenta de erros; por levar, em certas ocasiões, à mudança de rumo que se tinha por certo e procurar novo caminho; por envolver coragem para pensar e agir em consciência, ainda que isso aconteça ao contrário do que está estabelecido.

Diz Daniel:

"Maravilhei-me um dia perante Camus por ele ter podido encontrar, tão jovem e com tanta facilidade, a força para se opor, a todos os seus, quando resolveu indignar-se, e com que soberba, pelo facto de a explosão da primeira bomaba atómica sobre Hiroxima poder ter sido saudada com um entusiasmo sem reticências. Negligenciando o facto (enorma, gigantesco!) de a nova invenção anunciar o fim da guerra, Camus receava já encontrar o homem na posse dos meios de destruir não só o inimigo, como a sua espécie. É preciso compreender em que consistiu a solidão desse grito e a coragem insólita de, na época, publicar a sua expressão. Como nos podemos escutar a nós mesmo quando somos os únicos a pensar? Como teremos confiança em nós mesmos? Perguntas que sempre me haveriam de atormentar. Como poderemos ousar persuadir-nos de que estamos certos, quando aqueles que admiramos discordam de nós?" (página 33).

E, mais adiante:

"Camus tem as suas receitas pessoais (...) quando não hesita em declarar que se enganou e que, daí em diante, tudo fará para manter os valores morais, mesmo que essa expressão pareça ridícula aos pedantes do realismo histórico. E quando pede aos intelectuais - e aos jornalistas! - que observem quatro obrigações: «1. Reconhecer o totalitarismo e denunciá-lo. 2. Não mentirem e saberem reconhecer o que ignoram. 3. Recusar dominar. 4. Rejeitar em todas as ocasiões e seja qual for o pretexto todo o despostismo, mesmo provisório», temosa sensação de possuir por fim estas regras de vida que nos protegem dos mais sanguinolentos desvios. (...) Como pilar filosófico de todas estas regras, havia a prevalência do facto moral (...) o que conta para mim é o facto de, em Camus, a moral não ser moralismo. Se se pode dizer que, em ceryos aspectos ele era nietzschiano, é no sentido em que a denúncia da impostura decanta a ética" (página 127).

domingo, 25 de setembro de 2011

Mais dois livros dos Classica Digitalia

Informação chegada ao De Rerum Natura.

O Conselho Editorial dos Classica Digitalia tem o gosto de anunciar dois novos livros.

Colecção “Humanitas Supplementum” (Estudos)

- Gabriele Cornelli, O pitagorismo como categoria historiográfica (Coimbra, Classica Digitalia/CECH, 2011). 265 p.
PVP: 30 € / Estudantes: 24 € [capa dura]

Colecção “Autores Gregos e Latinos” ‑ Série Ensaios

- Joaquim Pinheiro, José Ribeiro Ferreira, Nair Castro Soares e Rita Marnoto: Caminhos de Plutarco na Europa (Coimbra, Classica Digitalia/CECH, 2011). 192 p. [2ª edição revista e aumentada]
PVP: 14 € / Estudantes: 9 €

Nota: Todos os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital. O eBook correspondente (cujo endereço directo é dado nesta mensagem) encontra-se disponível em acesso livre. O preço indicado diz respeito ao volume impresso.

Sobre o medo

"Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente estado de emergência, como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade pode ser suspensa. Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas (...)".

Disse, recentemente, Mia Couto nas Conferências do Estoril, num pequeno discurso que pode ser visto aqui:

Como cães ou galos de luta

Como cães ou galos de luta, metidos numa jaula de rede, talvez para não ferirem a assistência, rodeados de publicidade e de adultos de olhar fixo, assim foram postas crianças a digladiarem-se.

Divulgou-se recentemente que isto se passava (ou passa?) neste primeiros anos do século XXI na velha Europa, mais precisamente na erudita Inglaterra.

Os adultos que se pronunciaram sobre o assunto parecem pessoas “normais”, daquelas que encontramos no nosso dia-a-dia: bem vestidas e arranjadas, bem falantes, gestos aceitáveis. Nada as denuncia.

As que assistem e instigam as crianças estão como se se tratasse de um vulgar jogo de futebol; os pais justificam a autorização de deixar os seus próprios filhos participar com argumentos "psicológicos" e “pedagógicos” que, possivelmente, registaram de programas de televisão para as famílias; os donos do clube onde tal aconteceu, obviamente que não lhes ficam atrás e mostram muita estranheza por algumas entidades responsáveis pela segurança na infância se indignarem com as imagens postas na grande paraça pública que é a internet; ao que li até a própria polícia local não vê bem onde estará uma razão para intervir.

É talvez a "banalidade do mal", mas parece-me que numa forma algo diferente daquela que H. Arendt viu.

As (muitas) fraudes em trabalhos académicos – 2

Um texto anterior que escrevi sobre o tema para que aponta este título foi inspirado num artigo muito esclarecedor e completo da autoria de Teresa Guilherme, intitulado “O mundo das fraudes académicas” e publicado na revista Visão do dia 15 do corrente mês Setembro.

A jornalista aponta se não todas as vertentes do assunto, pelo menos as que estão mais directamente ligadas à cópia e ao plágio que (nisso parece haver um acordo) estão implantadas “de pedra e cal” nas instituições de ensino superior.

De “de pedra e cal” porque, ao conhecimento que essas instituições não podem deixar de ter do assunto, junta-se uma estranha inércia para o enfrentar de modo eficaz. Por outro lado, não se pode negligenciar o facto de estarmos a falar de práticas que beneficiam de larga aceitação social, fazendo nascer e consolidar-se à sua volta múltiplas empresas, devidamente identificadas, que a alimentam de modo (aparentemente) impune.

No referido artigo de investigação põe-se a tónica no facto de os estudantes cometerem fraudes mas os professores também, sendo acrescida, naturalmente, a responsabilidade destes últimos em tal matéria; no facto de os estudantes, mesmo que já estejam em mestrado e doutoramento, desconhecerem que devem identificar as fontes consultadas para realizarem os trabalhos e como o devem fazer; na falta de controlo por parte dos professores, que, desdobramos em múltiplos afazeres burocráticos, não conseguem, mesmo que queiram, dar a devida atenção aos trabalhos que, obrigatoriamente, têm de solicitar às suas muitas dezenas ou centenas de estudantes; na corrida a graus académicos de quem tem um genuíno interesse pelo saber e de quem tem a ideia de que, por ter pago as propinas tem direito ao grau, independentemente do que apresentar para o obter.

Para os leitores que se interessam por este assunto deixamos a ligação para a entrevista realizada no âmbito do trabalho jornalístico em causa, a Isabel Capeloa Gil, directora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa: aqui.

ANDAR PARA TRÁS NO TEMPO?

Mais declarações sobre os neutrinos:

Segundo informa o Público on-line, os resultados recentes da experiência OPERA, realizada no CERN e no Laboratório de Gran Sasso, permitirão, se confirmadas, segundo Gaspar Barreira, representante de Portugal no Conselho do CERN e Presidente do LIP, "andar para trás no tempo e condicionar no futuro uma ação do passado”. E acrescentou: “Se esta experiência se confirmar, haverá uma enorme revolução na física, que trará graves consequências, porque há uma quantidade de coisas que achávamos que estavam descobertas e afinal não estão”.

Segundo informa a Reuters, o
astrofísico Stephen Hawking foi bastante mais cauteloso: "It is premature to comment on this. Further experiments and clarifications are needed."

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ILUSÃO ÓPTICA!



DOIS SÓIS


Minha crónica no "Sol" de hoje:

Na semana em que o jornal Sol comemora cinco anos de vida, isto é, na data em que a Terra completou cinco voltas completas ao Sol desde que este semanário nasceu, foram publicadas notícias sobre a observação de um planeta que orbita dois sóis. Com efeito, uma equipa na NASA, a agência espacial norte-americana, anunciou que, pela primeira vez, se tinha observado um planeta que dá voltas não em torno de uma estrela, como acontece com a Terra, mas em torno de duas. O novo planeta, o Kepler 16-b, a cerca de 200 anos-luz do nosso sistema solar, foi detectado pelo observatório espacial Kepler, uma sonda em órbita terrestre, lançada em 2009 (o ano Darwin), para encontrar planetas extrasolares, onde a vida pudesse ter evoluído tal como aqui.

O fenómeno de um pôr-do-sol duplo só existia até agora no cinema. Na saga de George Lucas Guerra das Estrelas, os indígenas de Tatooine, o planeta natal da família Skywalker, assistiam a um tal espectáculo. Embora, ao contrário do Sol, a maior parte das estrelas seja binária, não é fácil encontrar planetas com órbitas estáveis em volta de estrelas desse tipo, pelo simples facto de esse chamado “problema de três corpos” conduzir, em geral, a órbitas que terminam numa colisão do planeta com uma das estrelas. Se Júpiter, o planeta maior do sistema solar, fosse muito maior do que aquilo que é, poder-se-ia ter acendido uma reacção termonuclear no seu interior que o transformasse numa estrela, companheira do Sol. Nesse caso, no nosso planeta não teriam ocorrido as condições de regularidade ao longo de muitos anos que são indispensáveis ao lento processo de evolução da vida, incluindo numa fase adiantada, a emergência de vida inteligente. Nós não estaríamos cá nem para ler jornais, nem para saber notícias de novos planetas no espaço.

O tempo que o novo planeta demora a dar uma volta completa em torno dos dois sóis é bem menor do que um ano: 229 dias. Mas, com toda a certeza, Kepler 16-b não tem habitantes que possam nem ver pores-do-sol nem contar o tempo, como os Tusken Raiders, o “povo das areias” que vive nos desertos de Tatooine. O planeta tem, à semelhança de Júpiter, uma superfície gasosa, onde evidentemente ninguém pode caminhar. Além disso, Kepler 16-b é demasiado frio para permitir a vida tal como a conhecemos aqui: a temperatura à sua superfície é de cerca de 100 graus Celsius abaixo de zero, já que as duas estrelas que aí reinam são mais pequenas e menos radiantes que o nosso astro-rei. Haverá outros planetas semelhantes? Provavelmente sim, já se prefiguram alguns candidatos a partir dos dados recolhidos pelos instrumentos da sonda. Um dos cientistas que trabalha esse manancial de dados previu mesmo que haja um número astronómico: "Eu aposto que há mais dois milhões"...

Os gregos


Destaque para a última coluna de J. L. Pio de Abreu no "Destak":

"Acusem-nos de tudo. Burros não são de certeza. Os gregos já descobriram que a sua falência arrastaria a queda do sistema financeiro mundial. Bem se podem eles desequilibrar, tombar, atirarem-se pela janela ou de cima das colunas do Partenon. Ninguém os vai deixar cair. Até a senhora Merkel tem de vir a terreiro para os amparar. Calculo que antes disso bata três vezes com a cabeça nas paredes, mas ela sabe que os seus eleitores endinheirados e pensionistas não resistiam ao colapso dos bancos.

Há tanto tempo nesta incerteza, os gregos já se adaptaram à nova vida. Quem os conhece diz que andam bem dispostos. Passam o tempo em manifestações, mas, com computadores na mão, entraram num nível de auto-organização e conhecimento nunca vistos. Todos vivem da economia paralela, apoiam-se uns aos outros e treinam a auto-subsistência. E, vejam lá, pode-se fumar por todo o lado. Isto, sim, é Europa livre, não é a América hipocritamente moralista e asséptica.

É claro que os líderes europeus e mundiais desesperam com o comportamento dos gregos. Já compreenderam que uma pequena nação indomável pode pôr em causa todo o sistema que alimenta as elites mundiais. Mas o problema não está nessa nação, está no sistema que eles criaram. Nada podem fazer contra os gregos mas podem, paulatinamente, mudar o sistema. Aliás, é isso que estão a fazer a contragosto. Os gregos sabem-no e nós também. Se o sistema não mudar, chegará o dia em que todos nos veremos gregos."

J.L. Pio Abreu

NOITE EUROPEIA DOS INVESTIGADORES



Hoje é a grande Noite Europeia dos Investigadores. O filme de cima, feito para esta ocasião, lembra os abusos que se fazem em nome da ciência. É um bom dia para comunicarmos ciência a toda a gente. Pela minha parte estarem pelas 21 horas, no Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho, no rés do chão do Departamento de Física, na Alta da Cidade, com o matemático Jorge Buescu, a bióloga Helena Freitas, o geólogo Ivo Alves, os químicos Sebastião Formosinho, Sérgio Ropdrigues e Isabel Prata (estamos no Ano Internacional da Química!) e a física Constança Providência. Todos eles são comunicadores de ciência. É benvindo quem queira aparecer!

NOTÍCIAS FRESCAS DOS NEUTRINOS



Ver e ouvir aqui a TSF, a quem prestei declarações. Ler também o New York Times: aqui. A BBC: aqui. E a Deutsche Welle: aqui.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

HUMOR: CURANDEIROS 3

HUMOR: CURANDEIROS 2

HUMOR - CURANDEIROS 1

RELIGIÃO, PORQUÊ?


Informação recebida do grupo teatral "A Barraca":

RELIGIÃO, PORQUÊ? é o titulo aliciante de um livro da autoria de um médico – um prático da vida terrena – que se preocupou em estudar “a irracionalidade das crenças, dos misticismos, dos fanatismos, das superstições”.

É uma obra extensa, rigorosa, que retrata as guerras religiosas que têm martirizado a Humanidade e homenageia as “machadadas demolidoras vibradas por Charles Darwin e Karl Marx sobre velhas concepções do Deus criador e do dualismo com os seus dois mundos, o natural e o sobrenatural”.

De notar ainda que o autor – Manuel Souto Teixeira – revela um belíssimo gosto e aguda intenção satírica com os seus desenhos que ilustram a obra.

APRESENTAÇÃO : BAR da BARRACA, 4 de OUTUBRO, 19,30

NEUTRINOS APANHADOS EM EXCESSO DE VELOCIDADE?


Na noite antes da Noite dos Investigadores, chega do CERN (onde ainda não há partícula de Higgs) uma notícia para fazer manchetes: os neutrinos poderiam ser mais rápidos do que a luz.

O Sol está constantemente a emitir neutrinos, muitos neutrinos, que chegam à Terra e conseguem atravessá-la, excepto nalguns casos raros, pois essas partículas, sem carga e quase sem massa, dificilmente interagem com a matéria. Os neutrinos são partículas elementares: viajam a uma velocidade que é inferior mas bastante próxima da luz e são quase imparáveis. Todos nós estamos sujeitos a um chuveiro de neutrinos, que não nos faz mal nenhum.

Na experiência noticiada em baixo em telex da Lusa, há emissão de neutrinos no CERN, na Suíça, e a sua detecção no laboratório instalado no túnel de Gran Sasso (na figura), em Itália, a mais de 700 km de distância. E esses neutrinos, viajando debaixo da Terra, estariam a ir mais rápido do que é permitido pelas leis da física tal como as conhecemos hoje. Seria só um bocadinho, mas daria para o excesso ser reconhecível. Contudo, a generalidade dos físicos da área duvida da exactidão dos resultados. É preciso medir muito bem os tempos e as posições para saber bem a velocidade. Tem de se verificar se há algum erro. Na minha opinião deve haver. É muito provável que haja. Se fosse verdade, haveria uma partícula com massa, embora pequena, que andaria mais depressa do que os fotões, que não têm massa. A teoria da relatividade de Einstein, um dos pilares da física moderna, estaria em causa. Essa teoria não tem de ser eterna, mas tem resistido desde há mais de cem anos, e factos extraordinários exigem provas extraordinárias.

A equipa da experiência OPERA - uma colaboração internacional que tem feito boa física, designadamente sobre a transformação de um tipo de neutrinos noutros - tem de repetir a experiência ou apenas a análise de dados, em busca de erros sistemáticos. E mesmo que confirmem os resultados anómalos, estes terão de ser também confirmados por uma outra experiência independente, que pode por exemplo ser feita no Japão.

Curioso é que sai amanhã um livro, da autoria de João Magueijo, o físico português cujo primeiro livro falava da variação da velocidade da luz, que conta a história de um grande físico italiano, Ettore Majorana, que estudou os neutrinos.

Carlos Fiolhais

NOTÍCIA

"Os neutrinos, partículas elementares da matéria, foram medidos a uma velocidade que ultrapassa ligeiramente a velocidade da luz, considerada até agora como um "limite intransponível", anunciaram hoje físicos de um centro de investigação francês.

Caso seja confirmado por outras experiências, este "resultado surpreendente" e "totalmente inesperado" face às teorias formuladas por Albert Einstein poderá abrir "perspetivas teóricas completamente novas", sublinha o Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS, na sigla em francês), em França.

As medições efetuadas pelos especialistas com experiência internacional desta investigação, a que se chamou Opera, concluíram que um feixe de neutrinos percorreu os 730 quilómetros que separam as instalações do Centro Europeu de Investigação Nuclear (CERN), em Genebra, do laboratório subterrâneo de Gran Sasso, no centro de Itália, a 300,006 quilómetros por segundo, ou seja, uma velocidade superior em seis quilómetros por segundo à velocidade da luz.

"Por outras palavras, para uma corrida de 730 quilómetros, os neutrinos cruzaram a linha de chegada com 20 metros de avanço" sobre a luz, caso esta tivesse percorrido a mesma distância terrestre, exemplifica o CNRS.

"Longos meses de investigação e de verificações não nos permitiram identificar um efeito instrumental que explique o resultados das nossas medições", reconheceu o porta-voz da investigação Opera, Antonio Freditato, que se mostrou "ansioso" por comparar estes resultados com outras experiências.

"Tendo em conta o enorme impacto que tal resultado poderá ter na Física, são necessárias medições independentes para que o efeito observado possa ser refutado ou então formalmente estabelecido", sublinha o CNRS.

"É por isso que os investigadores do projeto Opera desejam abrir este resultado a um exame mais amplo por parte da comunidade de físicos", acrescenta."

(telex da Lusa)

Como conhecer o céu nocturno — O Céu de Outono


Informação recebida do Planetário Gulbenkian em Lisboa:

No próxímo dia 7 de OUTUBRO (uma sexta-feira), pelas 21:30, Guilherme de Almeida fará uma palestra especialmente dedicada ao reconhecimento do céu de Outono.

É totalmente diferente das sessões habituais do Planetário. A entrada é grátis e estão desde já todos convidados a comparecer.

Admiram a beleza e imponência de um céu estrelado?

Gostariam de aprender a reconhecer estrelas e constelações?

Pensam que é muito difícil fazer essa aprendizagem?

A palestra começa mesmo às 21:30 e é feita a convite da Direcção do Planetário Gulbenkian, contando com a presença de membros da ANC - Associação Nacional de Cruzeiros. O conteúdo da palestra vai indicado seguidamente.

Título: "Como conhecer o céu nocturno — O Céu de Outono".

Resumo:

Quem é que nunca desejou saber identificar uma estrela, ou reconhecer uma constelação no céu? Ou localizar a constelação cujo nome está associado ao seu signo pessoal (por exemplo: Carneiro, Touro, Gémeos, Caranguejo, etc.)? Contrariamente ao que possa parecer, estas identificações são simples e acessíveis desde que seja seguida a técnica própria, fácil de aprender. A curva de progressão desta aprendizagem é rápida.

A palestra é constituída por duas partes:

1. Abordagem das técnicas e procedimentos, recomendações e métodos de identificação.

2. Aplicação prática com exemplificação dos métodos e procedimentos, utilizando o magnífico céu que o Planetário permite reproduzir

Na palestra serão abordadas algumas lendas sobre constelações, assim como a sistematização do céu ao longo dos tempos e algumas vantagens práticas associadas a esse conhecimento.

As técnicas acima referidas serão mostradas e aplicadas relativamente ao céu desta estação do ano. A palestra incluirá ainda diferentes métodos de orientação, assim como alguns conceitos úteis sobre o céu nocturno e a sua observação. Haverá oportunidade para que todos os interessados possam colocar perguntas ou esclarecer dúvidas.

Destinatários: todas as pessoas que sempre sonharam conhecer o céu nocturno e identificar estrelas e constelações com eficácia e segurança. Ou que desejam ampliar esses conhecimentos.

Duração aproximada: 50 min.

Local: o Planetário Calouste Gulbenkian-Centro Ciência Viva fica em Belém, em frente do Centro Cultural de Belém. Há lugar para 330 pessoas confortavelmente sentadas.

Aguardamos a sua presença e dos seus amigos!

Evoluções numéricas a perder de vista


Novo post de Guilherme de Almeida, correspondendo a um artigo que publicou:

Estamos habituados, desde muito novos, a fazer previsões ou estimativas baseadas em progressões aritméticas, nas quais cada novo termo se obtém somando uma quantidade fixa, positiva ou negativa, ao termo anterior. Por exemplo 1, 3, 5, 7, … No nosso dia-a-dia quase nunca pensamos nas progressões geométricas, nas quais cada novo termo se obtém multiplicando o termo anterior por uma quantidade fixa, maior ou menor do que a unidade. Por exemplo 1, 2, 4, 8, … Quando somos confrontados com factos ligados a progressões geométricas, ou desafiados a fazer estimativas nesse contexto, as nossas previsões, em geral obtidas com base no senso comum e no hábito enraizado, falham estrondosamente. Também falhamos redondamente na comparação de outras situações para as quais também não estamos treinados. Este artigo destina-se a mostrar alguns desses casos limite.

Crescimento inesperado da espessura de uma folha de papel

Admita-se que tínhamos uma fita de papel muito comprida, com a espessura e=0,1 mm Dobrando a fita ao meio, pela primeira vez, teremos o dobro da espessura (0,2 mm), ou seja e x 2^1; dobrando outra vez a fita, após a segunda dobragem a espessura do papel atingirá 4 vezes a espessura inicial, ou seja, e x 2^2 ; à terceira dobragem chegaremos à espessura e x 2^3. É fácil concluir que ao fim de n dobragens, a espessura atingida será e x 2^n. Parece que estamos sempre nas pequenas espessuras. Por mais vezes que se dobre o papel, a espessura será sempre insignificante, pensamos nós.

É claro que todos sabemos que ao fim de algumas dobragens será preciso uma força enorme para dobrar o papel, e seria necessário ter à partida uma tira de papel enorme para o poder dobrar sucessivamente. Vamos desprezar esses factos e pensar apenas no modo como a espessura de papel cresce, à medida que este vai sendo sucessivamente dobrado, pois o nosso interesse fundamental é ver como é que a espessura vai aumentando.

Podemos colocar uma primeira pergunta: quantas vezes seria preciso dobrar o papel para obter uma espessura igual à distância média da Terra à Lua (384 400 km)? Parece que teríamos de o fazer milhares de vezes, ou provavelmente milhões de vezes (o senso comum diz-nos isso), mas... ao fim de 42 dobragens a espessura do papel dobrado já excedeu essa distância. Vejamos como:

A distância da Terra à Lua, em média, é d_Lua=384 400 km=3,844x10^8 m. A espessura da folha de papel (uma só camada) mede 0,1 mm = 0,1 x 10^-3 m.

Ao fim de n dobragens a espessura global de papel atingirá finalmente 3,844x10^8 m. Mas, afinal quantas vezes teremos de dobrar? Teremos de o dobrar n vezes, de tal modo que e x 2^n = d_Lua, ou seja, 0,1 x 10^-3 x 2^n = 3,844 x 10^8 m, o que significa que 2^n = 3,844 x 10^8/ 0,1 x 10^-3

Resta saber qual é o número n que torna possível a anterior condição. Aplicando logaritmos de base 10 (que se aprendem actualmente no 12.º ano) a esta última expressão, teremos:

2^n = 3,844x10^8/0,1 x 10^-33 ou n log 2= log (3,844 x 10-12) ou n=41,806.

Mas como n tem de ser um número inteiro (não há meias dobragens), a espessura de papel ultrapassa a distância da Terra à Lua à 42.ª dobragem. Este resultado é uma surpresa enorme. Qualquer jovem, ou menos jovem, pode verificar facilmente este resultado utilizando uma vulgar máquina de calcular com funções científicas básicas, usando a tecla x^y. Comprovaremos facilmente que 2^42 ultrapassa 3,844x10^12. É claro que a solução (valor de n) pode variar ligeiramente consoante a espessura do papel considerado no cálculo.

Ainda mais longe

À 51.ª dobragem (contada desde o início), já a espessura de papel excede uma unidade astronómica (distância média da Terra ao Sol), que vale aproximadamente 150 milhões de km (1,5 x 10^11 m). O cálculo a fazer é semelhante ao que fizemos anteriormente para a distância da Terra à Lua, utilizando agora a distância da Terra ao Sol (d_Sol).

À 67.ª dobragem (contada desde o início), a espessura do papel excede um ano-luz (1 ano luz = 9,461 x 10^15 m).

À 83.ª dobragem (contada desde o início), a espessura do papel excede o diâmetro tradicionalmente considerado da nossa galáxia! (100 000 anos-luz). Quem diria?

Caminhando para o infinitamente pequeno

Também podemos andar no sentido inverso, em busca de dimensões sucessivamente menores. Conta-se que Demócrito, filósofo grego que viveu em Abdera entre 460 a.C. e 370 a.C., foi uma das primeiras pessoas a pensar que a matéria não podia ser infinitamente dividida. Teve uma primeira ideia de átomo, considerando-o como a mais pequena porção de matéria que ainda mantinha as propriedades da substância original, se esta fosse uma substância simples (diríamos agora). Considerou o átomo indivisível (do grego “a ”=negação e “tomo” = divisível, ou seja, átomo = indivisível). Dizia Demócrito que se alguém cortasse uma maçã ao meio, com uma faca afiada, dividindo depois uma das metades ao meio, depois dividindo um dos quartos ao meio, e assim sucessivamente, teríamos de parar a certa altura, pois só restaria um átomo, já não divisível (para Demócrito). Não colocaremos a questão de saber da dificuldade técnica de cortar fragmentos minúsculos (ou até da real possibilidade de o fazer com uma faca, por mais afiada que esta seja), pois não é esse o nosso objectivo. Quantas vezes poderemos cortar a maçã até se chegar a um só átomo? Também parece que precisaremos de a cortar milhares de vezes, ou mesmo milhões de vezes, para o conseguir. Será assim?

Para simplificar, admita-se que a nossa maçã tem a forma de um cubo com 8 cm de aresta (Figura de cima), tendo por isso um volume de (8^3) cm^3= 512 cm^3. Um átomo, que suporemos de hidrogénio, por ser o menor de todos tem um diâmetro de cerca de 100 picómetros (100 pm), ou seja 100 x 10^-12 m= 1 x 10^-10 m = 1 x 10^-8 cm. Supondo esse átomo também cúbico, para simplificar, o seu volume seria (1 x 10^8)^3 cm^3 = 1 x 10^-24 cm^3.

Após o primeiro corte, o volume será 512/2^1 cm^3. Ao segundo corte termos 512/2^2 cm^3. E ao fim de m cortes o volume residual ficará em 1 x 10^-24 cm^3, que é o volume de um só átomo.

Portanto, (1x10-8)^3 =512/2^m ⇔ 2^m =512/10^-24, ou ainda 2^m =5,12 x 10^26. Recorrendo ao método já citado (logaritmos de base 10), obteremos:

m log 2= log (5,12x10^26), ou seja, m=88,73.

Isto significa que ao fim de 89 cortes teremos chegado ao átomo (mais uma vez, m tem de ser um número inteiro). Parece inacreditável que tenhamos de cortar tão poucas vezes.

Uma outra surpresa

Vamos ver agora um outro facto surpreendente e inesperado. Admita-se que alguém conseguia enrolar um arame em volta da Terra, passando, por exemplo, pelo equador. O diâmetro médio da Terra é aproximadamente 12756 km. Para simplificar os cálculos, consideremos a Terra perfeitamente esférica, sem montanhas. O arame estará, por isso sempre encostado à Terra em todo o seu perímetro. Aumentemos um metro ao comprimento do arame. Voltando a dar-lhe forma circular, e mantendo-o igualmente afastado do chão em todo o seu comprimento (suportando-o por estacas, por exemplo), o arame passará a uma altura de quanto relativamente ao chão? Esse não é o problema em si, pois essa altura vale 0,15915… m, como mostraremos mais adiante. Podemos repetir a experiência, agora mais fácil de realizar, circundando uma laranja esférica de (por exemplo) 8 cm de diâmetro, com um arame fino, de modo a ficar justo. Aumentando depois um metro ao comprimento desse arame, e dando-lhe a forma circular (e concêntrica com a laranja) a que altura passa o arame acima da superfície da laranja? Será muito mais do que no caso da Terra? Na realidade obteremos os mesmos 0,15915… m.

Na verdade, veja-se que a medida do raio do arame, dando a volta ao equador de uma esfera qualquer de raio r, vale 2 pi r / 2 pi = r quando encostado à esfera. E valerá (2 pi r + 1 )/ 2 pi = r quando o arame for alongado 1 m (considerando r expresso em metros). O que procuramos saber é diferença entre o segundo e o primeiro valor. Feitas as contas, essa diferença vale 1 / (2 pi) = 0,15915… m. E, para nossa surpresa, é independente de r. Terra ou laranja, tanto faz!

Guilherme de Almeida

Júlio Resende (1917-2011)


"Eu já ficava muito contente se dissessem:
«O fulano foi um teimoso, pintou até ao fim»."

Disse Júlio Resende, chegado aos noventa anos. Teimosia que fez com que uma obra única fosse paulatinamente construída para o tempo presente e para o futuro.

(Citação extraída de entrevista dada pelo pintor à Revista Pública de 10 de Fevereiro de 2008. Fotografia de Rui Duarte Silva).

Sobre Egas Moniz (1874-1955)


Novo post de António Mota de Aguiar:

Egas Moniz, que teve uma vida cheia de acontecimentos, quer na sua desajeitada passagem pela política, quer na investigação científica que levou a cabo com sucesso e nas lutas que engajou para defender a sua descoberta científica, jaz, por vontade testamentária, numa humilde campa rasa do cemitério da sua Avanca natal, ao lado da sua companheira de toda a vida.

No livro que escreveu, A Nossa Casa, publicado em 1950 e dedicado a sua mulher, Egas Moniz narra a sua infância em torno da Casa do Marinheiro, “donde a família provém. Ali todos se juntavam em dias festivos; templo de confraternização, amizade e harmonia em que sempre viveu a minha gente.”

Em casa de Egas, os pais tinham dificuldades financeiras, o que os terá levado a ceder a educação do filho, quando Egas tinha cinco anos, ao tio abade, que vivia em Pardilhó, e onde ingressou na escola do padre José Ramos. Todos os dias ia à escola a pé, mas acompanhado por um criado. Dormia no quarto da criada, por medo e terror nocturno.

Da sua infância guarda uma certa melancolia, mesmo tristeza, porque, ao terminar a licenciatura, era o único que restava da família, todos os seus familiares próximos tinham falecido.

Após terminar o ensino primário, foi para o Colégio jesuíta de S. Fiel, “cuja propina era bastante elevada”. “Em 1899 havia neste colégio 310 pensionistas da aristocracia e da elite política do país”.

Egas Moniz elogia em, A Nossa Casa, a boa qualidade de ensino que recebeu neste colégio, onde assinala que se faziam experimentações científicas e, por iniciativa do padre Joaquim Silva Tavares, em 1902, se fundou a revista Brotéria, publicação científica dos professores deste colégio.

De São Fiel, Egas Moniz recorda o padre Manuel Fernandes de Santana (1864-1910), que o desaconselhou a seguir a carreira eclesiástica, pois duvidava da vocação de Egas.

É este padre Santana que, anos mais tarde, mantém uma acesa polémica com Miguel Bombarda, autor de A Consciência e o Livre Arbítrio, aqui tratado.

Em 1891 entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e, uns anos mais tarde, levado pelo Conselheiro José Luciano de Castro (1834-1914), um dos fundadores do Partido Progressista, e figura central das últimas décadas da Monarquia, Egas Moniz entra na política. Em 1900 é eleito deputado progressista por Tondela.

Raul Brandão escreverá nas suas Memórias que Egas Moniz era um “conspirador e político até à medula”. De facto, encontramo-lo nas principais acções políticas desta época como conspirador envolvido no derrube da monarquia, e, mais tarde, na República.

Quando em Maio de 1907 D. Carlos dissolve as cortes e se entra no período conhecido como “ditadura franquista”, sucederam-se os primeiros encontros para derrubar a monarquia. Egas Moniz faz parte do grupo conspirador que, em Janeiro de 1908, tenta raptar João Franco e transportá-lo para um navio, também raptado pelos conspiradores. A conspiração falha, e Egas Moniz está entre os 120 conspiradores presos. Todavia, para sorte sua, a 1 de Fevereiro dá-se o regicídio e, cinco dias depois Egas Moniz é posto em liberdade. Sabe-se lá como evoluiria a sua vida se este acontecimento não se tivesse produzido.

Egas condenou o assassinato do rei e do príncipe herdeiro, e defendeu que o movimento revolucionário que pretendia prender João Franco nada tinha a ver com o regicídio.

Em Agosto de 1908 vemo-lo numa manifestação anti-religiosa, ele que tinha sido educado pelos jesuítas, outra vez no campo republicano, e fazendo dois dias depois um discurso no parlamento de “inexplicável ambiguidade”, segundo nos diz o Prof. João Lobo Antunes, em Egas Moniz Uma Biografia, que acrescenta:

“No fundo, o sentimento de Egas em relação à religião era algo ambivalente e este manteve com o clero uma relação de mútuo respeito e afabilidade. Confessaria mais tarde: «Nós, ateus, vivemos por vezes situações curiosas. Por exemplo, eu sei que a minha mulher terá um profundo desgosto se o meu funeral não tiver a presença de um padre». Egas far-lhe-ia a vontade com a «condição de ser só um padre»”.

Alguns anos mais tarde, em Junho de 1915, encontramo-lo ligado a uma intentona, “para repor a obra moderada do general Pimenta de Castro”.

Em Dezembro de 1916 é de novo acusado de uma intentona militar liderada por Machado Santos.

Em 12.2.1917, numa entrevista dada ao jornal A Opinião, argumenta:

Sou contra todo e qualquer movimento revolucionário e muito especialmente no momento que atravessamos, deveras crítico para a nossa nacionalidade. (…) Bom seria que se formasse uma agremiação patriótica, fora de todas essas concepções (…) cujo programa se condensasse nesta simples divisa – Pelo País.”
Alguns meses mais tarde, em Outubro de 1917, funda o Partido Centrista Republicano, que classifica de “organização republicana de direita”, procurando nele reagrupar, numa coligação, todos os partidos da direita, para fazer face ao Partido Democrático de Afonso Costa, de quem era acérrimo inimigo.

De 5 a 8 de Dezembro de 1918 deu-se a revolta militar de Sidónio Pais.

“Que grupos políticos estiveram com Sidónio Pais na Rotunda”? Pergunta-se a historiadora Maria Alice Samara. “Em primeiro lugar, «amigos íntimos de Egas Moniz», ou seja, homens do partido centrista, como por exemplo Tamagnini Barbosa, que não actuaram, contudo, enquanto unidade política, mas sim como agentes individuais.” (História da Primeira República)

Em Abril, o Partido Centrista apoiava totalmente a ditadura imposta por Sidónio Pais e fundia-se com o Partido Sidonista, o Partido Nacional Republicano.

O País atravessava uma grave crise económica, não era por isso um homem que ia levantar Portugal. Por isso, compreende-se mal por que se integrou num bloco tão heteróclita, sem grande hipótese de sucesso. De resto, poucos meses depois do golpe militar, avisaria Sidónio Pais que o Partido se desorganizava de dia para dia e que sem a criação de uma forte agremiação partidária, o regime acabaria por baquear.

Em Fevereiro de 1918 Egas Moniz é nomeado por Sidónio Pais responsável pela legação de Madrid, onde vai tratar das relações diplomáticas com o Vaticano e, com a Espanha, “do aproveitamento da bacia do Douro para produzir energia eléctrica.”

Em Agosto desse ano é nomeado ministro dos negócios estrangeiros em Paris, para negociar, pela parte portuguesa, o Tratado de Paz que pôs fim ao conflito mundial. Porém, com o assassinato de Sidónio Pais, é substituído por Afonso Costa.

Abandona Paris em 1919, ano que pôs fim à sua carreira política.

Muitos anos mais tarde, ao abandonar o ensino, em 1944, a um grupo de alunos que viera homenageá-lo, Egas Moniz dissera-lhes:

“Transviei-me, em tempos, da minha vida médica deixando-me arrastar pela actividade política (…). O único bem que tirei desse afastamento foi reconhecer que andava pelo caminho errado.”

Egas Moniz teve uma vida política activa, onde não faltaram “conspirações revolucionárias” e intentonas, por vezes no campo de Afonso Costa, a quem odiava.

Paralelamente à sua faceta de político, Egas Moniz diz que nunca abandonou os estudos neurológicos e, em 1911, é provido em lente catedrático da cadeira de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Lisboa, ramo da ciência para a qual ele sempre se inclinara, e universidade a que ficou ligado para o resto da sua vida.

Ainda no tempo de aluno da Universidade de Coimbra Egas Moniz revolta-se contra o ensino ministrado, critica o seu carácter livresco e o “enciclopedismo” vigente.

E 1901, em provas para o doutoramento, escreveu vários trabalhos sobre sexualidade, indo contra a opinião dos mestres da universidade.

Os seus trabalhos em sexologia, tornaram-no conhecido nesta matéria, tendo na altura emitido vários pareceres em matérias legais, além de ter dado várias conferências, as quais colocavam problemas considerados tabus à sociedade de então.

Quando vem para Lisboa, instala o seu consultório na área do Chiado, e anuncia que dá consultas de “doenças nervosas”, e que possui uma instalação de “Electroterapia geral com duches estáticos, correntes galvânicas, farádicas, etc.”, como tratamento para patologias diversas, como hipertensão arterial e arteriosclerose, terapias que João Lobo Antunes considera mais que discutíveis quanto à eficácia, que nos diz ainda que a sua clínica estava longe de se limitar à neurologia e à psiquiatria. “O seu receituário incluía purgantes, drogas para o coração, gripe, impotência sexual e poluções nocturnas.”

O certo é que se tornou um neurologista conhecido e médico assistente de figuras importantes da sociedade portuguesa, como Fernando Pessoa e Mário Sá Carneiro, entre outros.

Além das actividades que mencionei: professor, político e clínico de sucesso, ganhava dinheiro com seguros e com actividades comerciais, fabris, que ao longo da vida empreendeu. Gabava-se de ser um importante comprador de antiguidades e, possivelmente, também terá vendido algumas. Egas Moniz sabia ganhar dinheiro, foi um homem rico (não vejo nada de mal nisso quando o enriquecimento é licito!) que vivia em grande estilo: viajava de primeira em comboio e em barco, apreciava os bons carros – o último que teve foi um Cadillac – “modelo único em Portugal, com strapontins.” “Nas viajas longas viajava com motorista e trintanário.

Frequentava hotéis de luxo, como as termas de Vidago, onde convivia com o seu “velho amigo” presidente da República, Óscar Carmona, e hospedava-se no Hotel Palace do Estoril onde se encontrava com a aristocracia da época.

“Continuava a viver fidalgamente, embora na sua declaração para o imposto suplementar referente a 1941 registasse apenas 34.800$00 de rendimento profissional…”.

Faço notar, contudo, que esta ostentação de riqueza se dava numa cidade com muita pobreza, como era Lisboa nestas décadas.

Possuiu ao longo da vida moradias sumptuosas. Durante a sua permanência na Legação em Madrid, Egas Moniz ajudou a restabelecer as relações diplomáticas com o Vaticano, e, em 1943, vendeu-lhes a luxuosa moradia que tinha mandado construir em 1919 na Avenida Luís Bívar, em Lisboa.

Desde criança, do tempo do tio abade, teve sempre criados a servi-lo. Na casa de Avanca, hoje museu, em 1920, tinha “um feitor, três criados, uma cozinheira e um criado de mesa.”

Egas Moniz teve alguns inimigos, que, ao longo da vida lhe chamaram vários nomes: “Oportunista e cobarde”, “célebre aventureiro”.

Fernando Pessoa não teve muita simpatia por ele, porque escreveu o seguinte:

“O que me indigna não é que esse parvo da ciência tenha estas opiniões. É que eles gozem, no nosso meio de idiotas, de prestígio suficiente para que a essas opiniões se ligue importância”.

E acrescenta:

“O Dr. Egas Moniz é o conselheiro Acácio da neurologia nacional. Nunca tem uma opinião própria. Nunca esculpiu relevo em uma única frase. Seguiu sempre.”

O jornal a “A Luta” de Brito Camacho, escrevia em 1918 que: “O Sr. Egas Moniz tem sempre, em política, opiniões excessivamente provisórias”.

Egas Moniz não mostrou simpatia pelo Estado Novo, embora tivesse “excelentes relações” com Óscar Carmona e alguns ministros do Estados Novo, seus antigos companheiros na Universidade de Coimbra. O governo de Salazar tratou-o com respeito, embora Egas Moniz tivesse “um ódio de estimação” a Salazar, tal como o tivera a Afonso Costa. Em 22.10.1945, numa entrevista à “República” diz que:

“…sem liberdade de expressão de pensamento não pode haver progresso social. A liberdade só existirá quando desaparecerem os censores, carcereiros das ideias, déspotas do pensamento alheio”.

Como político, a meu ver, foi um desastre. Em 1917, faltava no leque partidário da República o partido que ele precisamente criou, o Partido Centrista Republicano, “uma organização republicana da direita”, como ele o intitulou.

Nessa altura, o partido centrista deveria ter servido para sustentar a República, tanto mais que a Guerra Mundial tinha chegado ao fim, e tentar, nas próximas eleições – na República havia democracia -, colocar o seu partido o melhor possível, e proceder às alterações que entendesse as melhores segundo as suas ideias políticas.

Mas não foi isso que aconteceu, ao contrário, enveredou pelo apoio a um golpe de estado. Tivesse ele tido uma acção dentro do quadro da democracia e teria contribuído para evitar os traumas que as gerações vindouras vieram a conhecer.

Em vez disso, provavelmente por ambição política, afunilou por um golpe de estado improcedente, que causou durante oito anos uma crise que levaria a outro golpe de estado, o de 26 de Maio de 1926, e ao fim do regime republicano.

Anos mais tarde, em 1939, sofreu um atentado de um doente seu, que quase o matava. Agradeceu a Salazar pelo interesse que este tivera pela sua saúde: “…Venho agradecer por este meio enquanto não se proporciona o ensejo de o fazer pessoalmente…” mas Salazar nunca o recebeu.

Aos 51 anos Egas Moniz, empreende a carreira de investigador científico, propondo-se como objectivo visualizar os vasos cerebrais.

“Vivia atormentado pelo desejo de alcançar o fim, isto é, um método de visibilidade vascular para a localização dos tumores cerebrais (…) conseguir um líquido opaco ao Raio X.”

“Era necessário obter um líquido que fosse inócuo na injecção das artérias cerebrais,” escreve ele nas Confidências.

Depois de várias tentativas, consegue, a 28 de Junho de 1927, a 1ª arteriografia ao vivo:
“Pela primeira vez vimos ao vivo na radiografia obtida, os vasos cerebrais.”(…)

“Quando vimos pela 1ª vez as artérias cerebrais aos Raios X, denominámos a descoberta como «Encefalografia arterial» (…) a breve trecho deixámos essa designação para outra mais simples: «angiografia cerebral».”

Com a radiografia das artérias do cérebro na pasta, rumou a Paris para fazer parte da sua descoberta, apresentando uma comunicação em 7 de Julho desse ano, subordinada ao título “encefalografia arterial, sua importância na localização dos tumores cerebrais.”

A partir de aqui foram muitas as viagens que fez ao estrangeiro, em particular a Paris, por ser o País onde a neurologia, nestas décadas, estava mais desenvolvida.

Nas “Confidências de um Investigador científico” Egas Moniz detalha as exposições e conferências que fez, as lutas que travou, por um lado, para fazer reconhecer internacionalmente as suas descobertas, por outro lado, para as defender do plágio ou da apropriação ilícita por outros, como a certo momento aconteceu, e que ele narra.

Em 1936, obtinha novos avanços científicos (Egas Moniz teve sempre a seu lado como colaborador o médico Pedro Almeida Lima) com a descoberta da leucotomia préfrontal.

Recebeu o Prémio Nobel em 1949 e, em 1954, um ano antes de morrer, ainda lutava, num discurso na Academia das Ciências de Lisboa, para que outros não viessem retirar à ciências portuguesa as descobertas realizadas.

As suas descobertas foram resultado de um corajoso e árduo trabalho experimental, que implicou o transporte no seu carro pessoal, primeiro, de cabeças de animais entre o Instituto Rocha Cabral – já aqui tratado - e o Hospital de Santa Marta e, posteriormente, com cabeças de cadáveres, entre as mesmas duas instituições, para depois, no Hospital de Santa Marta, onde havia os utensílios experimentais necessários, proceder às experiências científicas que lhe deram o Nobel.

Egas Moniz foi um persistente investigador científico, um árduo trabalhador, obstinado na pesquisa do que o preocupava, e que por isso recebeu o Prémio Nobel, o que veio sobremaneira prestigiar a ciência portuguesa. Aos 51 anos soube dar a volta à sua vida, deixando a política para trás, da qual diria que colhera “um ilusório sucesso e muitas contrariedades.”

Ao longo da vida escreveu dezenas de artigos científicos e alguns de índole não científica. Escreveu igualmente alguns prefácios e mais de uma dezena de monografias.

A sua obra científica é ainda pouco conhecida dos portugueses por isso conselho a leitura do livro do Prof. João Lobo Antunes já citado, uma boa iniciação à obra do nosso único Nobel de medicina.

António Mota de Aguiar

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