Do novo livro de Jorge Buescu, a sair em breve na Gradiva, tenho o gosto de pre-publicar aqui um dos capítulos, que conta como se pode fazer matemática avançada usando o formato de um blogue:
"Todos temos a ideia da Matemática como uma actividade essencialmente solitária. Com meios técnicos bastante mais avançados do que Arquimedes, é certo, o processo de descoberta matemática não parece ter mudado ele por vezes durante meses ou anos, por vezes em colaboração com outras mentes igualmente interessadas no tema e, se tudo correr bem (o que acontece, diga-se, muito raramente) demonstra um resultado matematicamente relevante.
Quando isso sucede o ou os matemáticos envolvidos, raramente mais do que três ou, no máximo, quatro, escrevem um artigo científico de acordo com as normas de comunicação em Ciência: todo o raciocínio é depurado, os becos infrutíferos são expurgados, e apresentam-se de forma objectiva e seca os resultados. O artigo é submetido para publicação numa revista da especialidade e seguirá o seu processo normal. E aí começa a saga do refereeing, mas isso é outra história. O processo de descoberta matemática já terminou. Fim da história.
Fim da história? Não! Como pode a história ter um fim a meio de uma revolução?
Porque é de uma revolução que se trata. Esta teve início em 2009, na pessoa do excepcional matemático inglês da Universidade de Cambridge Timothy Gowers (fig. 1), medalha Fields em 2008 e autor de vários obras científicas e de divulgação, entre as quais o brilhante livro Matemática: uma breve introdução, publicado entre pela Gradiva.
Em 2009 Gowers utilizou o seu blog (http://gowers.wordpress.com/) para anunciar uma experiência única: o Projecto Polymath. Este projecto tinha o objectivo científico habitual: atacar um problema em aberto na Matemática. Mas tinha também o objectivo mais ambicioso de conceber uma forma inovadora de realizar investigação em Matemática. Inspirado nas ideias de iniciativas open-source como o Linux ou a Wikipedia, e tendo em conta a natureza aberta das ideias matemáticas, Gowers construiu dois blogs e uma wiki para encorajar a colaboração sem fronteiras físicas nem mentais num problema de Matemática.
O problema proposto inicialmente por Gowers é conhecido na literatura como o teorema da Densidade de Hales-Jewitt (daqui em diante designado por DHJ). Embora já demonstrado, e sendo por isso um teorema, este resultado é relativamente simples de enunciar mas tem uma demonstração estratosfericamente complexa. E é um dos poucos resultados de combinatórica com grande impacto noutros ramos da Matemática que não tem uma demonstração “elementar”, isto é, que não saia da combinatória. Gowers, tal como outros matemáticos, estava verdadeiramente incomodado com esta questão.
Pode mostrar-se que o teorema DHJ é equivalente à seguinte pergunta, fácil de entender: quantos quadrados de um tabuleiro de Jogo do Galo de ordem n×n mergulhado numa dimensão espacial arbitrária m têm de ser removidos de forma a assegurar que nenhum dos jogadores possa ganhar, qualquer que seja a estratégia seguida? No Jogo do Galo usual (em duas dimensões, com um tabuleiro 3×3, a resposta é 3: basta remover uma diagonal para tornar impossível a vitória de qualquer dos adversários, como o leitor não terá dificuldade em verificar (nunca há 3 casas na horizontal ou vertical). Mas qual será a resposta no caso geral, em que tanto a dimensão do tabuleiro como a dimensão do “espaço” são arbitrárias? Veja-se a Fig. 2, com um tabuleiro 4×4 em dimensão 3.
O leitor é cordialmente convidado a tentar resolver “à mão” o problema da figura, ou seja o caso n=4, m=3. Um aviso: não é simples.
O problema proposto por Gowers tem potencialmente grande impacto, quer em Matemática quer em Ciências da Computação. Quem souber um pouco de Combinatória reconhece imediatamente que este problema tem de estar relacionado com a chamada Teoria de Ramsey, o ramo mais difícil mas com maiores consequências da Combinatória actual, e da chamada “teoria combinatórica aditiva”. O teorema DHJ tem também grande impacto nas Ciências da Computação, pois é equivalente ao chamado “problema da repetição paralela”. E, como em tudo na Matemátca, se o resultado é importante, a demonstração não o é menos: possuir duas demonstrações com técnicas diferentes pode levar ao desenvolvimento de ferramentas novas nas áreas emvolvidas.
Gowers tinha algumas ideias embrionárias sobre como se poderia construir uma demonstração puramente combinatórica de DHJ. Foi assim que, a 27 de Janeiro de 2009, decidiu partilhá-las com os matemáticos espalhados pelo mundo, publicando-as no seu blog e desafiando a comunidade matemática a contribuir com novas ideias, iniciando uma experiência que designou de “colaboração matemática maciça”.
Todos os matemáticos, mediante o cumprimento de regras mínimas de comportamento, eram convidados a participar activamente. “Os comentários”, dizia Gowers, “devem ser curtos, exprimindo uma única ideia ou apenas o germe de uma ideia; na verdade, essas ideias incompletas são particularmente bem-vindas. Os comentários devem ser o mais claros possível. O trabalho técnico deve ser atrasado o mais possível. Como regra prática, recomendo que seja evitado o tipo de comentário que exija pensar com um papel ao lado”.
Assim, Gowers inaugurava uma forma radicalmente nova de fazer Matemática: em vez de estudar artigos já depurados das ideias parciais e becos sem saída encontrados ao longo da sua construção, ele encorajou a publicação e partilha de ideias preliminares e contribuições individuais simples. Em vez de ser ver no seu blog um edifício construído, vê-se uma fiada de tijolos e o convite para irem sendo colocados mais tijolos, cimento e vigas.
Assim nasceu o Projecto Polymath. A discusssão começou devagar: passaram mais de sete horas até à primeira contribuição, de Jozsef Solymosi, um matemático da Universidade da Columbia Britânia em Vancouver. Um quarto de hora depois veio o segundo comentário, da autoria de Jason Dyer, um professor do Ensino Secundário no Arizona. Três minutos depois foi a vez de Terence Tao (medalha Fields em 2006 e um dos maiores matemáticos da actualidade; veja-se O fim do Mundo está próximo?, do autor destas linhas, cap. 14).
A partir daí o crescimento foi explosivo: em pouco mais de um mês, pessoas de todo o mundo contribuíram com mais de 800 comentários. O Projecto Polymath tinha ganho asas. Nas palavras de Gowers, “era extremamente agradável, mas também viciante. Tinha a sensação de ser um espectador de bancada. Mesmo antes de ir para a cama, podia ter algumas ideias e colocava-as no blog com algumas perguntas, e quando me levantava via que alguém nos EUA lhes tinha respondido”.
O progresso no problema foi muito mais rápido do que alguém poderia ter imaginado. A 10 de Março, em seis semanas apenas!, Gowers anuncou estar confiante de que o Projecto Polymath tinha construído uma demonstração elementar de um caso particular do teorema DHJ. Mais do que isso: a demonstração construída continha as sementes que permitiriam possivelmente demonstrar o teorema em toda a sua generalidade.
Esta ideia veio a tornar-se uma realidade, e deu origem a um arttgo científico já aceite para publicação, Density Hales-Jewett and Moser numbers. Colocando-se a delicada questão da autoria, o artigo é assinado sob o pseudónimo colectivo “DHJ Polymath” – que é exactamente a sua origem. E o Projecto Polymath já tem novos problemas na calha.
A forma de fazer Matemática no Projecto Polymath é profundamente revolucionária. Pela primeira vez estão públicos todos os registos de avanços e recuos, becos sem saída e ideias inovadoras presentes no processo de investigação científica. Eles mostram de forma viva como é que as ideias crescem, se alteram, são melhoradas ou abandonadas, e como os avanços no conhecimento não se dão num grande salto em frente, ao contrário da convicção geral dos não-cientistas, mas sim por agregação e refinamento de muitas pequenas contribuições em direcções diferentes. Todo este material está aberto para consulta. Como dizem Gowers e Michael Nielsen, seu colaborador, “quem poderia imaginar que o registo de trabalho de um projecto matemático fosse tão interessante de ler como um thriller?”
Qual o futuro desta revolução? Como o de qualquer outra, ninguém pode saber. O Projecto Polymath já está a atacar novos problemas, e Gowers e Nielsen sugerem mesmo a possibilidade de atacarem os Problemas do Milénio, propostos pelo Clay Mathematics Institute, e cuja solução é premiada com um milhão de dólares (não é claro como esse dinheiro poderia ser repartido pelos participantes no Projecto Polymath, o que poderia ser um quebra-cabeças maior do que o Jogo do Galo em dimensões n × m). Fora da Matemática, Gowers e Nielsen sugerem a possibilidade de aplicações em biologia sintética, Física Teórica e Ciências da Computação.
Eis aqui um novo e improvável papel para a Matemática: a de arma de construção maciça."
Jorge Buescu
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4 comentários:
:D boa!
muito bom mesmo, António e Buescu obrigado pelo privilégio e partilha.
intuitivamente penso neste fazer por redes abertas, que tanto se demonstra na nossa forma de comunicar, na arte e na construção de conhecimento.
"Eis aqui um novo e improvável papel para a Matemática: a de arma de construção maciça": esta última expressão - bem achada - evoca outra boa (que se pode encontrar aqui http://www.pleacher.com/mp/mpframe.html) de um texto humorístico de David Pleacher - "weapons of math instruction"!
Paulo Lopes
Comentário dois em um...
1 - Estes projectos de partilha alargada de ideias e conhecimento só possíveis através da comunicação massiva em rede, são esmagadores pelo carácter quase "amebiano" e aparentemente holístico mas verdadeiramente "ao pormenor" que os caracteriza.
Não resisto a divulgar outro, na área da Biologia Marinha, com a mesma filosofia apesar de ter umas nuances diferentes. Implica, literalmente, mergulho de cabeça!
http://www.findkelp.org/
2 - Mais uma vez parabéns Jorge Buescu e as maiores felicidades para este novo projecto.
Ficamos à espera que ele rapidamente salte do prelo para a prateleira.
Alexandra Nobre
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