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sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Cogência e falibilidade


A leitora Helena Serrão deu voz aqui a uma perplexidade comum quanto à noção de argumento cogente. A perplexidade resulta da curiosa dificuldade que as pessoas têm de separar a verdade do que pensamos que é verdade.

Um argumento é cogente se, e só se, obedece a três condições: é válido, tem premissas verdadeiras e tem premissas mais plausíveis do que a conclusão. Às duas primeiras condições chama-se “solidez”: um argumento é sólido quando é válido e tem premissas verdadeiras. Assim, para ser cogente um argumento tem de ser sólido. Mas para ser sólido tem de ter premissas verdadeiras. Então, pergunta a Helena, para que serve a cogência? Se as premissas já são verdadeiras, para que precisamos de ter premissas mais plausíveis do que a conclusão? Por duas razões.

Primeiro, porque é óbvio que há argumentos sólidos que não são cogentes por serem obviamente maus: “A neve é branca; logo, a neve é branca” é um argumento sólido, mas muito mau. E todos os argumentos circulares, as chamadas falácias da petição de princípio, ou petitio principii, são argumentos válidos, podendo alguns ser sólidos. Mas mesmo assim são maus. Porquê? Porque não desempenham a sua tarefa epistémica de dar razões, a quem não aceita a conclusão, para passar a aceitá-la. Isto acontece porque quem não aceita a conclusão também não aceita a premissa ou premissas, dado que uma delas, ou mais, é igual à conclusão. Portanto, não basta que um argumento seja sólido para ser bom.

Segundo, porque não seria muito avisado defender que um dado argumento é cogente só por ser válido e ter premissas plausíveis, mais plausíveis do que a conclusão, mesmo que o argumento tivesse premissas falsas. O que é mais natural dizer, neste caso, é que pensamos que o argumento é cogente, mas estamos enganados. E estamos enganados porque as premissas são falsas, apesar de nós pensarmos, erradamente, que são verdadeiras. Nós não somos omniscientes. Tanto podemos considerar plausível uma falsidade, como implausível uma verdade; erramos. Mas seria desavisado considerar cogente qualquer argumento que nos pareça ter premissas verdadeiras, mesmo que as não tenha.

Eu explico este aspecto mais pormenorizadamente no livro Pensar Outra Vez. Mas espero que esta breve nota tenha esclarecido a Helena.

sábado, 1 de novembro de 2008

A Nova Fé PseudoCientífica


Psicologicamente, é curioso como a Nova Fé PseudoCientífica faz pessoas que de outro modo poderiam ser sensatas ter ideias insustentáveis. Mas como não sou psicólogo, não encontro interesse em mais essa manifestação da estultícia humana.

Vem isto a propósito de alguns comentários ao meu post sobre argumentos de autoridade. Nenhum cientista verificou mais do que uma parte estatisticamente irrelevante das verdades científicas em que acredita. Isto seria óbvio se as pessoas não estivessem mergulhadas em dogmatismo cientificista. Imaginemos um biólogo, por exemplo. Que verificou ele directamente quanto ao Big Bang? Nada. E quanto à composição da água? Nada. E quanto aos resultados fundamentais da matemática, que teoremas fundamentais sabe demonstrar ou alguma vez demonstrou? Poucos.

Os cientistas apoiam-se na autoridade dos colegas. O conhecimento seria impossível se cada um de nós tivesse primeiro de verificar tudo. Quem foi verificar se realmente os seus pais não estão a mentir e ele não foi adoptado? Quem foi verificar se realmente Neil Armstrong esteve na Lua?

De onde vem então a ideia dos PseudoAdoradores da Ciência (PACs) de que todos os argumentos de autoridade são maus? De um argumento de autoridade (eu não disse que isto era psicologicamente interessante?). Nas historietas da ciência que se contam às criancinhas diz-se que na ciência, com Galileu, se começou a recusar argumentos de autoridade, como todos os idiotas faziam antes de descer a luz da ciência ao mundo. Só que isto em primeiro lugar é falso, historicamente, e em segundo lugar quem leu isto limita-se a aceitar a autoridade do historiador que fala disto, ou a própria autoridade de Galileu, se acaso o leu. Claro que isto é absurdo. O que estava em causa não era a recusa de argumentos de autoridade, mas a recusa de maus argumentos de autoridade. Contudo, traçar distinções subtis, que é precisamente o que caracteriza qualquer prática cognitiva séria, incluindo a ciência, é precisamente o que os PACs não querem fazer.

Este blog defende a racionalidade e a ciência. Mas parece-me cada vez mais que tenho de defender a ciência de alguns cientistas — ou que se dizem cientistas e nem dão a cara em público, ao contrário dos autores deste blog. Como dizia Orwell, o problema é o espírito de gramofone, independentemente do disco que está a tocar.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Argumentos de autoridade

Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos de autoridade são maus; o progresso do conhecimento é impossível sem recorrer a argumentos de autoridade; e pode-se distinguir com alguma proficiência os bons dos maus argumentos de autoridade.

Um argumento de autoridade é um argumento baseado na opinião de um especialista. Os argumentos de autoridade têm geralmente a seguinte forma lógica (ou são a ela redutíveis): «a disse que P; logo, P». Por exemplo: «Aristóteles disse que a Terra é plana; logo, a Terra é plana». Um argumento de autoridade pode ainda ter a seguinte forma lógica: «Todas as autoridades dizem que P; logo, P».

A maior parte do conhecimento que temos de física, matemática, história, economia ou qualquer outra área baseia-se no trabalho e opinião de especialistas. Os argumentos de autoridade resultam desta necessidade de nos apoiarmos nos especialistas. Por isso, uma das regras a que um argumento de autoridade tem de obedecer para poder ser bom é esta:

1) O especialista (a autoridade) invocado tem de ser um bom especialista da matéria em causa.

Esta é a regra violada no seguinte argumento de autoridade: «Einstein disse que a maneira de acabar com a guerra era ter um governo mundial; logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um governo mundial». Dado que Einstein era um especialista em física, mas não em filosofia política, este argumento é mau.

Contudo, apesar de Marx ser um especialista em filosofia política, o seguinte argumento de autoridade também é mau: «Marx disse que a maneira de acabar com a guerra era ter um governo mundial; logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um governo mundial». Neste caso, é mau porque viola outra regra:

2) Os especialistas da matéria em causa não podem discordar significativamente entre si quanto à afirmação em causa.

Dado que os especialistas em filosofia política discordam entre si quanto à afirmação em causa, o argumento é mau. É por causa desta regra que quase todos os argumentos de autoridade sobre questões substanciais de filosofia são maus: porque os filósofos discordam entre si sobre questões substanciais. Poucas são as afirmações filosóficas substanciais que a generalidade dos filósofos aceitam unanimemente e por isso não se pode usar a opinião de um filósofo para provar seja o que for de substancial em filosofia. Fazer isso é falacioso.

Os seguintes argumentos contra Galileu são igualmente maus: «Aristóteles disse que a Terra está imóvel; logo, a Terra está imóvel» e «A Bíblia diz que a Terra está imóvel; logo, a Terra está imóvel». O primeiro é mau porque nem todos os grandes especialistas da altura em astronomia, entre os quais se contava o próprio Galileu, concordavam com Aristóteles; o argumento viola a regra 2. O segundo é mau porque os autores da Bíblia não eram especialistas em astronomia; o argumento viola a regra 1.

Considere-se o seguinte argumento: «Todos os especialistas afirmam que a teoria de Einstein está errada; logo, a teoria de Einstein está errada». Qualquer pessoa poderia ter usado este argumento quando Einstein publicou pela primeira vez a teoria da relatividade. Este argumento é mau porque é derrotado pela força dos argumentos independentes que sustentam a teoria de Einstein. A regra violada é a seguinte:

3) Só podemos aceitar a conclusão de um argumento de autoridade se não existirem outros argumentos mais fortes ou de força igual a favor da conclusão contrária.

A regra 2 é redundante relativamente a 3. Não se aceita um argumento de autoridade baseado num filósofo quando há outros argumentos de igual força, baseados noutro filósofo, a favor da conclusão contrária. Mas 3 abrange o tipo de erro presente no último argumento sobre Einstein, ao passo que 2 não o faz. No caso do argumento de Einstein, o erro consiste no facto de o argumento de autoridade baseado em todos os especialistas em física ser mais fraco do que os próprios argumentos físicos e matemáticos que sustentam a teoria de Einstein.

Considere-se o seguinte argumento: «O psiquiatra X defende que toda a gente deve ir ao psiquiatra pelo menos três vezes por ano; logo, toda a gente deve ir ao psiquiatra pelo menos três vezes por ano». Admita-se que todos os especialistas em psiquiatria concordam com X, que é um grande especialista na área. A regra 3 diz-nos que este argumento é fraco porque há outros argumentos que colocam em causa a conclusão: dados estatísticos, por exemplo, que mostram que a percentagem de curas efectuadas pelos psiquiatras é diminuta, o que sugere que esta prática médica é muito diferente de outras práticas cujo sucesso real é muitíssimo superior. Além disso, este argumento viola outra regra:

4) Os especialistas da matéria em causa, no seu todo, não podem ter fortes interesses pessoais na afirmação em causa.

Quando Einstein afirma que a teoria da relatividade é verdadeira, tem certamente muito interesse pessoal na sua teoria. Mas os outros físicos não têm qualquer interesse em que a teoria da relatividade seja verdadeira; pelo contrário, até têm interesse em demonstrar que é falsa, pois nesse caso seriam eles a ficar famosos e não Einstein. Mas nenhum psiquiatra tem interesse em refutar o que diz X. E, por isso, a sua afirmação não tem qualquer valor — porque é a comunidade dos especialistas, no seu todo, que tem tudo a ganhar e nada a perder em concordar com X.

Os argumentos de autoridade são vácuos ou despropositados quando invocam correctamente um especialista para sustentar uma conclusão que pode ser provada por outros meios mais directos. Por exemplo: «Frege afirma que o modus ponens é válido; logo, o modus ponens é válido». Dado que a validade do modus ponens pode ser verificada por outros meios mais directos (nomeadamente através de um inspector de circunstâncias), este argumento é vácuo ou despropositado. Os argumentos de autoridade devem unicamente ser usados quando não se pode usar outras formas argumentativas mais directas.

Finalmente, note-se que nenhum argumento é verdadeiro ou falso, tal como nenhum conjunto de bananas tem casca; as bananas têm casca, mas não os conjuntos de bananas. Do mesmo modo, a verdade aplica-se às proposições que constituem os argumentos, mas não aos próprios argumentos porque estes são conjuntos de proposições. Os argumentos são válidos ou inválidos, além de poderem ser interessantes ou não, mas não podem ser verdadeiros nem falsos. E as proposições são verdadeiras ou falsas, mas não podem ser válidas nem inválidas. Quem não compreende isto, não sabe o que é um argumento. Tal como não sabe o que é um conjunto de bananas quem pensar que esse conjunto tem casca. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Definições

Retirado da Enciclopédia de Termos-Lógico Filosóficos, eis um artigo sobre definições que poderá ser útil. As definições são cruciais na nossa vida cognitiva: em física, biologia, direito, filosofia, sociologia. Precisamos de saber exactamente o que é um solteiro, em termos legais, por exemplo; o que é a massa, em física; o que é a água; o que é a validade dedutiva. Em todos estes casos, precisamos de definições rigorosas, mas para saber avaliar e apresentar definições precisamos de ter uma visão clara dos diferentes tipos de definições. Foi isso que tentei fazer neste artigo. Espero que seja útil. Aproveito para informar que a versão portuguesa da Enciclopédia deverá sair em 2009. 

Definir é especificar a natureza de algo. Chama-se definiendum ao que se quer definir e definiens ao que a define. Por exemplo, pode-se definir o ouro (definiendum) como o elemento cujo peso atómico é 79 (definiens). E pode-se definir a palavra «solteiro» como «não casado». Chama-se «real» ao primeiro tipo de definição e «nominal» ao segundo.

Há três tipos principais de definições nominais: as lexicais, as estipulativas e as de precisão.
Nas definições lexicais ou de dicionário dá-se apenas conta do significado preciso que uma dada palavra realmente tem. Estas definições podem ser equivalentes a definições reais. Por exemplo, definir a palavra «água» como «líquido incolor, sem cheiro nem sabor, que se encontra nos rios e na chuva» é equivalente a definir a própria água porque muitas vezes o modo formal é equivalente ao modo material (ver MODO FORMAL / MATERIAL).

Usa-se uma definição estipulativa quando se introduz um termo novo (como «Dasein»), ou quando se quer usar um termo corrente numa acepção especial (como «paradigma», na filosofia da ciência de Thomas Kuhn). Uma forma falaciosa de argumentação consiste em presumir que uma definição capta sempre algo, como se a definição de «flogisto» implicasse a existência de flogisto. Outra, consiste em simular definir uma noção da qual depende a plausibilidade de uma ideia, mas fazê-lo de modo tão vago que impede qualquer avaliação crítica dessa ideia.

Usa-se uma definição de precisão quando se pretende tornar o discurso mais preciso, dando um significado particular a um termo que pode ser entendido de modos diferentes («liberdade», por exemplo). Uma forma falaciosa de o fazer é usar uma definição que não capta aspectos fundamentais da noção em causa, o que permite criar a ilusão de que se resolveu o problema em discussão.

Os tipos fundamentais de definições são os seguintes:
  • Definições Explícitas
    • Analíticas
    • Essencialistas
    • Extensionais
  • Definições Implícitas
    • Ostensivas
    • Contextuais
Nas definições explícitas define-se algo por meio de condições necessárias e suficientes ou (o que é equivalente) através do esquema «definiendum é definiens». Por exemplo, «Algo é um Homem se, e só se, é um animal racional» ou «O Homem é um animal racional».

Nas definições implícitas define-se algo sem recorrer a condições necessárias e suficientes. Por exemplo, ensina-se as cores às crianças por definição implícita ostensiva: apontando para exemplos concretos de objectos coloridos. A incapacidade para definir explicitamente algo não significa que não se sabe do que se está a falar, pois a maior parte das pessoas não sabe definir explicitamente as cores, mas não se pode dizer que não conhecem as cores. Contudo, a procura de definições explícitas de noções centrais é uma parte importante da filosofia (e da ciência); a definição de conhecimento, arte, verdade e bem, por exemplo, tem constituído parte importante respectivamente da epistemologia, da estética, da metafísica e da ética.

As definições implícitas contextuais podem ser tão precisas e rigorosas quanto as definições explícitas. Um sistema axiomático para a aritmética, por exemplo, nunca define a soma explicitamente, mas o sistema no seu todo define correctamente esta operação (ver DEFINIÇÃO CONTEXTUAL).

As definições analíticas são as mais fortes de entre as explícitas, no sentido em que toda a definição analítica correcta é uma definição essencialista correcta (mas não vice-versa), e toda a definição essencialista correcta é uma definição extensional correcta (mas não vice-versa).

As definições analíticas captam o significado do termo a definir, resultando numa frase analítica. Por exemplo, a definição «Um solteiro é uma pessoa não casada» é uma frase analítica. As definições analíticas são expressões de sinonímia. Estas definições são nominais; contudo, dadas as críticas recentes à definição metafísica de analiticidade (ver ANALÍTICO), é defensável que são igualmente reais.

As definições essencialistas procedem em termos de condições metafisicamente necessárias e suficientes (ver CONDIÇÃO NECESSÁRIA). Por exemplo, a definição «A água é H2O» é essencialista porque, em todos os mundos possíveis, uma condição necessária e suficiente para algo ser água é ser H2O (ou seja, a água é necessariamente H2O). Esta definição não é analítica porque o significado da palavra «água» não é «H2O» (mesmo as pessoas que não sabem que a água é H2O sabem o significado da palavra «água»).

As definições extensionais procedem em termos de condições necessárias e suficientes. Por exemplo, a definição «Uma criatura com rins é uma criatura com coração» é uma definição extensional porque todas as criaturas que têm rins têm coração, e vice-versa. Mas noutros mundos possíveis poderá haver criaturas com rins que não têm coração, e por isso esta definição não é essencialista (logo, também não é analítica).

As definições explícitas podem falhar por 

1) serem excessivamente restritas (não incluírem tudo o que deviam), 
2) serem excessivamente amplas (incluírem o que não deviam) e 
3) incorrerem no erro 1 e 2 simultaneamente. 

Por exemplo: «A filosofia é o estudo do Homem» é uma definição excessivamente restrita de filosofia, pois exclui disciplinas filosóficas como a lógica e a metafísica, entre outras; «O Homem é um bípede sem penas» é uma definição excessivamente ampla, pois inclui na categoria de Homem bípedes como os cangurus; «O Homem é um animal racional» é excessivamente ampla (poderá haver animais racionais noutras partes da galáxia, e eles não serão humanos) e é excessivamente restrita (alguns bebés humanos nascem sem cérebro, pelo que não podem ser racionais, mas são apesar disso seres humanos).

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Três enganos comuns


Sempre que pensamos, podemos cair em algumas armadilhas. Isso tanto acontece por sermos evidentemente falíveis como por  estarmos mais interessados em “provar” que são verdadeiras as nossas ideias preferidas do que em tentar saber honestamente se realmente são verdadeiras. Eis três dessas armadilhas, que se relacionam entre si.

1) “X é consistente com Y, logo é verdade que Y.” 

Devia ser óbvio que a mera consistência não é suficiente para estabelecer algo como plausível ou verdadeiro, dado que muitas coisas opostas são consistentes com os mesmos dados. Imagine-se que a existência de deuses é realmente consistente com tudo o que sabemos ou julgamos saber sobre o universo. Isso não prova que esses deuses existem, nem que é provável que existam, se a inexistência de tais deuses for igualmente consistente com tudo o que sabemos ou julgamos saber sobre o universo. Consistência não é verdade nem sequer probabilidade. 

O mesmo acontece com muitos raciocínios a favor da ideia de que somos regularmente visitados por extraterrestres, a favor da homeopatia, do Reiki ou seja qual for a última tolice inventada pelos seres humanos.

2) “X está por explicar; Y poderia explicar X, logo Y é verdade”. 

Devia ser óbvio que há muitas explicações concorrentes e não basta que algo explique uma coisa para isso ser verdade. É também preciso que essa seja a explicação mais plausível entre muitas outras e que resista melhor à discussão crítica. Podemos explicar a queda dos objectos dizendo que há um rato com poderes psíquicos no centro da Terra que puxa os objectos para baixo, mas esta explicação não é a mais plausível. Poder explicar algo não é razão suficiente, só por si, para aceitar seja o que for porque com imaginação suficiente podemos explicar tudo com tudo. É preciso procurar activamente explicações alternativas, para depois as comparar entre si e tentar ver qual delas será mais plausível.

3) “Era tão bom que fosse verdade que X! Logo, é verdade que X.” 

Claro que este tipo de erro nunca é tão explícito, mas nem por isso é menos comum. Sempre que uma explicação ou pretenso facto é particularmente desejável para nós, temos de a avaliar com redobrada crítica precisamente porque podemos estar a pôr na realidade o que queremos e não o que lá está. Qualquer argumento a favor da ideia de que um deus encarnou e depois de morto ressuscitou é mais fraco do que a hipótese de que isso nunca aconteceu, mas várias pessoas queriam tanto que isso acontecesse que inventaram essa fantasia. Quanto mais uma ideia nos for agradável, mais críticos temos de ser relativamente a ela, pois podemos ficar cegos precisamente por querermos tanto que seja verdadeira.

Estes três aspectos interligam-se obviamente. Uma pessoa gostaria que houvesse X. E se houvesse X, isso explicaria várias coisas. Além disso, X é perfeitamente compatível com o que vemos e ouvimos, com a ciência e com várias outras coisas que pensamos saber. Logo, conclui o desavisado ser humano, X existe.

Talvez este erro de raciocínio seja geralmente involuntário. Mas nem sempre o será, e raramente será inteiramente involuntário. Desconfio que na maior parte das vezes as pessoas adoptam este tipo de raciocínio com um misto de consciência de que estão a ser intelectualmente desonestas, mas ao mesmo isso é tão confortável que se forçam a continuar a pensar dessa maneira. É como alguém que se recusa a ver uma realidade desagradável e se força de algum modo a pensar que essa realidade não existe, só porque dava jeito que não existisse. Daí que quem adopta este tipo de atitude mental tenha a necessidade de estar integrado em comunidades de pessoas que pensam como elas e que não põem em causa as suas crenças mais queridas. Daí também a necessidade de introduzir na educação, desde a mais tenra idade, essas mesmas ideias: se desde muito cedo nunca contactarmos com pessoas que pensam que as nossas ideias são falsas, será mais difícil desconfiar que somos intelectualmente desonestos.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Ideologia, lógica e discussão pública de ideias


Na discussão pública argumenta-se por vezes de um modo enganador. É o tipo de coisa que acontece na seguinte situação: uma pessoa defende uma ideia X. Como é natural e saudável, há pessoas que discordam de X. Mas quem discorda de X argumenta por vezes procurando mostrar que tal ideia pertence a um “ismo” detestado: liberalismo, comunismo, socialismo, capitalismo, etc.

Já me vi muitas vezes nessa situação. Não sendo um neoliberal (sou de esquerda, mas não me reconheço nas tolices da esquerda nacional), algumas das ideias que defendo são por vezes sumariamente executadas por serem aparentemente neoliberais. Outras vezes, as minhas ideias são sumariamente executadas precisamente por não serem neoliberais, o que pelo menos ajuda a equilibrar as coisas e dá para fazer algum humor. Mas estes equívocos escondem uma concepção profundamente errada da discussão pública.

A discussão pública de ideias é o melhor método que temos para testar a plausibilidade das nossas ideias. Não somos omniscientes — todos sabemos disso. Mas, como argumenta John Stuart Mill no maravilhoso Da Liberdade (Edições 70) (que não é um manifesto neoliberal, mas uma obra de esquerda — basta ler o que ele defende sobre o ensino dos pobres), apesar de toda a gente reconhecer teoricamente que não é omnisciente, a maior parte das pessoas age como se o fosse. Assumir que realmente não somos omniscientes leva-nos a considerar isto: O que podemos fazer para limitar os nossos erros? E a resposta, como sublinha Mill, é esta: a discussão pública. E esta é uma das bases da sua defesa da liberdade de expressão (que como é evidente está longe de estar interiorizada junto de muitos intelectuais de esquerda, como é o caso de Maria Teresa Horta, que não compreende que o preço a pagar pela liberdade de expressão é a chatice de alguém desatar a gozar connosco em público). Mas que noção de discussão pública pode desempenhar tal papel? É aqui que começa o problema.

Quem não compreende que a discussão pública é uma forma de testar ideias concebe-a como uma mera “contagem de armas” e como uma maneira retórica de fazer as pessoas aceitar as nossas convicções preferidas — e não como um convite a que todos analisem cuidadosamente tais convicções. Assim, cola-se o rótulo de um qualquer “Xismo” a uma ideia de que se discorda simplesmente para dizer à nossa manada: dado que nós somos anti-Xismo, devemos rejeitar esta ideia.

Esta atitude enfrenta dois problemas lógicos.

O primeiro é pressupor que há outra maneira qualquer de saber que o Xismo em causa é falso que não o mesmíssimo procedimento de discutir ideias publicamente.

O segundo é não se dar conta de que é muito mais difícil saber se o Xismo é falso do que saber se a ideia particular em causa é falsa, se a única razão que tivermos para pensar que o Xismo em causa é falso é o facto de o “ismo” que nós mesmos favorecemos se opor ao Xismo em causa. Pondo as coisas em pratos limpos: é muito mais fácil alguém argumentar directamente contra a ideia de que nenhuma escola deveria ser pública, por exemplo, do que atacar essa ideia dizendo apenas que é uma ideia neoliberal. Na verdade, desconfio que esta manobra só ocorre precisamente quando uma pessoa não tem qualquer outro argumento minimamente plausível contra a ideia em causa.

Em conclusão, se queremos uma discussão pública saudável temos de parar de a transformar em contagem de armas e retórica vácua. Temos de argumentar cuidadosamente quanto a cada ideia em causa, analisando-a, dissecando as suas vantagens e desvantagens previsíveis, tendo em conta os argumentos contra a nossa própria posição. Se não o fizermos, a discussão pública não contribui para a vida democrática — pelo contrário, tende a desgastá-la, e é talvez por isso mesmo que em Portugal as pessoas se cansam rapidamente da democracia e tendem a acolher de braços abertos qualquer ditadura que prometa soluções mágicas sem o incómodo da discussão pública de ideias.

A discussão pública de ideias não pode transformar-se na mera afirmação de ideologias. A ideologia é uma forma automática de fingir que se está a pensar, quando na verdade se está apenas a aplicar sem pensar receitas velhas a problemas novos. Não há qualquer razão para pensar que um conjunto de ideias gerais e muitas vezes velhas tem uma aplicação infalível na solução dos nossos problemas actuais. É preciso olhar para a realidade com olhos de ver, e ainda que procuremos inspiração na nossa ideologia favorita, temos sempre de nos perguntar se neste caso particular a aplicação da nossa ideologia favorita não terá consequências que nós mesmos não desejamos.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Provas, indícios, demonstrações e argumentos

Quer por influência de traduções erradas do inglês quer por confusão conceptual fundamental, alguns vocábulos portugueses andam muito baralhados.

Em primeiro lugar, o termo “evidence”, em inglês, não significa geralmente evidência, mas sim indícios ou provas (numa certa acepção de “prova” que já veremos). Uma evidência, em português, é algo evidente, algo acerca do qual não há dúvidas. É evidente que a neve é branca, por exemplo, ou que a água mata a sede.

Indícios (ou provas, numa certa acepção) são informações empíricas que nos permitem tirar conclusões. Pegadas de um certo tipo, no local do crime, são indícios de que a pessoa X, mas não a Y, cometeu aquele crime. É a este tipo de coisa que os anglófonos chamam “evidence”. Por vezes, usamos também a palavra “prova” nessa acepção, como quando falamos de apresentar provas em tribunal: apresentamos, por exemplo, a arma do crime com as impressões digitais do arguido.

Noutra acepção da palavra, uma prova é qualquer argumento a favor de algo. As chamadas provas tradicionais a favor ou contra a existência de Deus são apenas argumentos: um conjunto de proposições que conjuntamente pretendem justificar a conclusão de que Deus existe, ou não existe. Quando se fala em provas neste sentido é preciso não pensar que todas as provas são finais. Em muitos casos, há várias provas a favor e contra algo. Nestes casos, um só argumento não decide coisa alguma. Por isso se costuma dizer que há bons argumentos a favor de tudo — a questão é saber se não há argumentos mais fortes contra isso. Portanto, não se pode ter a ingenuidade de pensar que se houver um dado argumento a favor de algo, esse argumento é decisivo. Isso raramente acontece, mas pode acontecer — e acontece sobretudo na matemática e na lógica; nesse caso, chama-se “demonstrações” a tais argumentos, ou “derivações”.

O cientismo caracteriza-se, entre outras coisas, por pensar que os métodos da ciência eliminam a necessidade de argumentação, ou provas, na acepção de argumentos. A ideia seria que a ciência se basearia exclusivamente nos indícios ou “evidence”, não precisando de toda essa maluquice a que os filósofos dão tanta atenção: a argumentação. Só que isto é falso. Os indícios, só por si nada dizem. São apenas indícios. Se não os usarmos em argumentos, ainda que infantis e simples, nada podemos concluir.

Vejamos um exemplo clássico: observamos cuidadosamente a natureza das coisas e registamos várias propriedades dos corvos. Algumas dessas propriedades variam de corvos para corvos; outras, não. Algumas variam com a região em que os corvos são observados; outras, não. E continuamos a fazer observações. Tem de chegar um momento que se faz algo do seguinte género (esta é a simplificação grosseira típica dos livros de filosofia, peço desculpa por isso): todos os corvos observados até hoje são negros; logo, todos os corvos são negros. Ora, isto não é senão um argumento. Um argumento indutivo. Tal e qual como algumas provas a favor da existência de Deus, que se baseiam também na informação que obtemos do mundo (são as chamadas provas a posteriori).

Outro exemplo simples é pensar na investigação de um crime. Se nos limitarmos a dizer que foi vista uma pegada com tais e tais características no local do crime, e que o arguido tem sapatos com tais e tais características, sem retirar desses indícios qualquer conclusão — sem argumentarmos — os indícios só por si não se põem a argumentar por nós.

O que dá a ilusão ao cientismo de que na ciência não precisamos de argumentos é o facto de os argumentos da ciência serem em geral simples ou, quando são complexos, baseiam-se exclusivamente na matemática. Mas nós argumentamos — isto é, pensamos e decidimos e avaliamos — tenhamos ou não instrumentos formais para o fazer e quer se trate quer não de casos infantis e simples. Fazemo-lo quando temos curiosidade pela natureza das coisas. E insistimos em fazê-lo.

Isto faz confusão ao cientificista, que só quer aceitar argumentos quando sabe que são decidíveis matematicamente. Quando isso não acontece, declara que nada se pode saber porque até hoje ninguém o descobriu (uma falácia indutiva que devia ser óbvia), ou porque as pessoas acreditam nistou ou naquilo sem razões; ou torna-se mais sofisticado e desata a falar da escada do Wittgenstein que temos de deitar fora e tal. Mas a verdade é que este tipo de conversa é apenas uma tentativa, a que devemos resistir, de nos fazer parar de fazer a coisa mais normal do mundo: discutir argumentos, a favor e contra, quando não há métodos formais de prova, nem indícios que apontem inequivocamente num ou noutro sentido. E aqueles que insistem em argumentar precisamente quando não há garantias científicas, matemáticas ou outras de obter resultados têm sido os responsáveis por todas as provas que hoje temos e que o resto da humanidade aceita acriticamente como se não tivessem sido fruto da insistência em argumentar quando toda a argumentação parecia fútil.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Pensamento crítico

Ludwig Krippahl é professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e membro do centro de investigação em inteligência artificial CENTRIA. De formação em bioquímica, trabalha em bioinformática. Mantém o blog Ktreta, recomendado pelo DRN, e é professor de Pensamento Crítico, uma iniciativa ímpar no país, juntamente com Luís Moniz Pereira e Ana Rita Canário. Esta disciplina está fortemente presente em algumas das melhores universidades estrangeiras, mas é praticamente desconhecida no nosso país. Convidámo-lo para falar um pouco do pensamento crítico e da sua importância.

Para muitos é ofensivo criticar as pessoas, duvidar delas ou contradizê-las nas suas crenças. Isto está enraizado na nossa cultura. Talvez até nos nossos genes. Mas é um mal-entendido. Normalmente, o que se critica são afirmações e não pessoas. O pensamento crítico não é um ataque pessoal. Mas compreende-se que muitos o julguem ser. Durante milhares de gerações a melhor forma de julgar a credibilidade de uma afirmação foi julgando a pessoa que a proferia.

Se o ancião da tribo dizia que comer figos ao sol dava dores de barriga não se ia organizar um teste controlado com grupos de voluntários seleccionados aleatoriamente. Não só por limitações práticas como pela falta dos conceitos necessários para perceber a necessidade da experiência, organizá-la e interpretar os resultados. A única possibilidade era decidir se se confiava no ancião. Por isso a confiança nas hipóteses esteve muito tempo associada à confiança nas pessoas.

Hoje em dia é diferente. Não vivemos em tribos pequenas cujo conhecimento total é o dos seus membros mais sábios. Vivemos entre estranhos numa sociedade global que, colectivamente, tem mais informação que qualquer um de nós pode imaginar. Estas circunstâncias justificam avaliar as ideias pelas ideias e não por quem as propõe. Não quer dizer que se rejeite a autoridade, mas que a autoridade não é um valor primário. Tem que se fundamentar em evidências. Um médico não tem autoridade porque é médico mas porque a medicina cura.

O conhecimento disponível também aumenta o custo de aceitar crenças falsas. Durante a Peste Negra havia quem não tomasse banho para se proteger da doença. Não adiantava, mas como nenhum outro profilático conhecido era eficaz também não havia muito a perder. Só mau cheiro e desconforto. Hoje quem adia a quimioterapia para experimentar a homeopatia arrisca a vida quando se pode curar. Se pintamos o mundo com as fantasias dos outros, perdemos a oportunidade de compreender a realidade como ela é, uma oportunidade muito recente na história da nossa espécie.

Além de uma ferramenta útil, o pensamento crítico faz parte da participação responsável na sociedade. Prolongar uma doença infecciosa por recorrer a terapias sem fundamento põe em risco a saúde dos outros. As liberdades democráticas de voto, associação e debate público justificam que se pondere o que se defende. Até a liberdade de crença deve ser temperada pelo pensamento crítico, e não apenas nos atentados ou fanatismos. Quando a sua religião pode afectar outros, o crente deve abstrair-se da sua crença pessoal e considerar o fundamento do que afirma. O pensamento crítico começa pela crítica às nossas próprias opiniões.

Finalmente, o progresso depende de olhar criticamente para o que fazemos. Isto é óbvio na ciência e na tecnologia, mas é igualmente válido na arte, ética, política e em toda a actividade humana. Não se progride sem um olhar crítico que revele o que se pode fazer de maneira diferente e melhor. Por tudo isto é importante que a educação não dê apenas conhecimento mas que também estimule esta capacidade.

Para melhorar este aspecto da formação dos nossos alunos, o Departamento de Informática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa introduziu a disciplina semestral de Pensamento Crítico no programa da Licenciatura em Engenheira Informática (1). Esta disciplina foca a estrutura de argumentos, erros de percepção e raciocínio, análise de modelos científicos, explicações causais e problemas de decisão. O objectivo é explorar, pela prática, obstáculos ao raciocínio crítico e técnicas que ajudem a ultrapassá-los. É apenas o segundo ano em que a disciplina é leccionada, pelo que só podemos notar a melhoria na capacidade de análise e expressão dos alunos a curto prazo. Mas mesmo que o efeito a longo prazo seja modesto é na direcção certa.

Para concluir, deixo a sugestão de abordar o pensamento crítico como uma disciplina própria. Principalmente no ensino secundário, mas também no primeiro ciclo do ensino superior, é difícil conciliar uma abordagem crítica com a aprendizagem de conceitos básicos na maioria das disciplinas. Para ensinar matemática, línguas, história, biologia e outras disciplinas a este nível é preciso exigir que o aluno aceite muita coisa pela autoridade do professor. Só depois de dominar uma área é que se consegue compreender como esta se fundamenta em evidências e não na autoridade. Disciplinas que estimulassem a análise crítica por si iriam beneficiar não só os alunos mas toda a sociedade.

Ludwig Krippahl

1. Pensamento Crítico na FCT/UNL, 2007/8, 2006/7.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Argumentação e subjectividade

A argumentação é um dos instrumentos mais importantes para alargar a nossa compreensão do mundo e melhorar a nossa intervenção nele. Infelizmente, este facto passa muitas vezes despercebido na nossa cultura. Ao longo dos séculos, Portugal não tem sido um grande produtor de conhecimento; estamos habituados a importar o conhecimento do estrangeiro. E por isso não compreendemos os processos de descoberta, pois nunca temos de descobrir — alguém, numa universidade, laboratório ou atelier estrangeiros, descobre por nós. Olhemos à nossa volta: todos os produtos humanos são fruto do conhecimento e da intervenção humana no mundo. As ideias científicas, tecnológicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas são fruto do esforço dos seres humanos para compreender melhor o mundo e para, com base nessa compreensão, melhor podermos intervir nele. Todavia, quase nenhumas das ideias que são o fundamento de todas estas coisas que nos rodeiam nasceram em Portugal.

É imperioso mudar esta cultura de dependência da importação de ideias; é imperioso que a nossa cultura seja dinâmica, criativa, autónoma, inteligente. A nossa cultura não pode continuar a ser a mera repetição da cultura alheia; é preciso que Portugal conquiste um lugar cultural e científico e que acrescente valor ao mundo. Para isso é necessário fornecer aos estudantes instrumentos que lhes permitam descobrir ideias novas e propor novos rumos. É necessário colocar os estudantes portugueses a par dos seus colegas dos países mais desenvolvidos, que desfrutam de um sistema de ensino baseado no estudo criativo e rigoroso de problemas, teorias e argumentos.

As teorias são construções humanas que procuram resolver problemas reais — não são elucubrações meramente formais para fazer carreira escrevendo obscuras teses de doutoramento que imitam a seriedade académica usando sem compreender uma linguagem especializada. Essas teorias defendem-se com base em argumentos. É o que acontece na história, na psicologia, na filosofia, na física, na musicologia, etc. Mas se o ensino não for baseado no estudo dos problemas, teorias e argumentos, o que é apenas teoria será ensinado como dogma para repetir, não permitindo que o estudante pense por si — sobretudo quando nem se lhe explica quais são os problemas que a teoria procura resolver. O estudante fica assim reduzido ao trabalho de repetição acéfala, sem estímulo nem instrumentos para avaliar as ideias que estão em discussão por esse mundo fora — imaginando que as últimas modas pós-modernas, ou pragmatistas, ou retóricas, ou liberais, ou o que quer que seja, são Verdades que não podem ser discutidas. No meu entender, esta é uma das raízes do atraso português.

O correcto ensino da lógica pode ser um antídoto para este estado de coisas. Pois é aí que se pode sublinhar a importância da argumentação no difícil e paciente processo de tentar descobrir a verdade das coisas; é aí que se pode sensibilizar o estudante para a importância de saber pensar, dando-lhe instrumentos lógicos adequados. O resultado que se pode almejar são cidadãos mais criativos e críticos, que trarão uma competência fundamental para um país que tanto carece de pessoas com capacidade para resolver os nossos problemas, produzir riqueza e bem-estar, e estimular com o seu exemplo os outros cidadãos a fazer o mesmo. Sem uma cultura criativa e crítica, informada e rigorosa, a discussão pública é sempre deficiente, e as decisões são sistematicamente tomadas pelos interesseiros que têm mais força ou que gritam mais alto, e não um resultado da reflexão criativa e rigorosa, informada e inovadora.

Numa cultura apartada da descoberta científica e da inovação cultural — uma cultura cinzenta e formalista — há a tendência para pensar que tudo o que não vem já matematicamente decidido nos livros importados do estrangeiro é «muito subjectivo». Esta posição tem consequências terríveis na vida pública, contribui para o subdesenvolvimento e a estagnação da sociedade, e impede o acesso à cultura das pessoas mais talentosas — pois se a opção é entre o que se decide matematicamente e com todas as garantias, mas já está nos livros, e o que não está nos livros mas é «muito subjectivo», nenhuma pessoa talentosa vê qualquer interesse em desenvolver o estudo e o pensamento, a cultura e a ciência, a sociedade e a economia. Portugal precisa de boas ideias, soluções engenhosas, debate informado e talentoso — e não de ideias feitas, soluções ingénuas, debates de café. Ensinar a debater ideias, avaliar argumentos, precisar pontos de vista, levantar contra-exemplos e objecções é, consequentemente, uma das tarefas mais importantes do professor.

Quem desconhece a lógica e está mergulhado numa cultura onde o debate de ideias é circense tem tendência para pensar que a argumentação é «muito subjectiva». Mas mal se estudam os elementos básicos da argumentação compreende-se que isto é uma ilusão. Sem dúvida que não há soluções fáceis e argumentos decisivos com três ou quatro proposições; para cada solução levantam-se problemas inesperados; para cada argumento levantam-se contra-argumentos e objecções. Mas isto não é surpreendente para quem conhece a história do pensamento humano. Para cada grande feito da ciência, da cultura e das artes havia multidões de Velhos do Restelo a dizer que era impossível fazer-se, munidos do discurso paralisante do costume. E, no entanto, essas coisas fizeram-se e as dificuldades ultrapassaram-se. Será mesmo verdade que é tudo «muito subjectivo»? E, nesse caso, será «muito subjectivo» afirmar que é tudo «muito subjectivo»?

Entre o algoritmo e o oráculo — que dispensam Verdades Absolutas aos pobres mortais —, e o paralisante relativismo e subjectivismo — que torna tudo igual a tudo —, não haverá alternativas? E que garantias oferece a opinião de quem nada ou quase nada sabe de lógica e argumentação, mas declara, confiante, que na argumentação é tudo «muito subjectivo»? No Capítulo 12 vimos como a pretensa diferença entre a demonstração, do «domínio do apodíctico» (o oráculo), e a argumentação, do «domínio do verosímil» (o subjectivismo, ou o inter-subjectivismo — a sua encarnação mais sofisticada) se baseia em confusão e falta de informação. Não será que é isso que se passa em geral? Afinal, quem nunca assistiu aos jogos olímpicos não acreditaria que um ser humano consegue saltar um muro de dois metros de altura sem lhe tocar.

Em qualquer domínio do conhecimento, das artes ou da vida pública, temos problemas para resolver e decisões para tomar. Para cada proposta, há argumentos a favor e argumentos contra; esses argumentos terão força desigual — uns serão mais fortes, outros mais fracos. O nosso trabalho é estudar cada um dos argumentos e tomar uma decisão, ou optar por uma proposta. Não há garantias; é preciso arriscar. Mas trata-se de um risco calculado. Em muitos casos, nomeadamente nos aspectos mais teóricos do conhecimento, podemos mudar de ideias; noutros casos, pode ser demasiado tarde para mudar uma decisão — a ponte pode já estar construída no sítio errado, ou o novo estádio de futebol financiado pelo estado pode já estar em construção. Somos todos seres humanos e temos de ser tolerantes para com os erros alheios — pois precisamos dessa tolerância quando for a nossa vez de errar. Mas devemos e podemos evitar os erros tanto quanto possível — e isso consegue-se através da discussão séria de ideias. É essa forma de discutir ideias — que produz riqueza e bem-estar, que alarga a experiência e o conhecimento humano — que urge ensinar. O lugar próprio desse ensino é a disciplina de Filosofia, que deu à humanidade esse instrumento espantoso do pensamento correcto que é a lógica. Aprender a pensar correctamente é a mais humana das aprendizagens.

Retirado do livro O Lugar da Lógica na Filosofia (Plátano, 2003)

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Argumentos cogentes

No postArgumentos Sólidos” foi apresentada a distinção entre argumentos válidos e argumentos sólidos: um argumento sólido é um argumento válido com premissas verdadeiras. No fim do post, apresentava-se um argumento obviamente mau, mas sólido:

Sócrates não era engenheiro.
Logo, Sócrates não era engenheiro.

Isto mostra que não basta um argumento ser válido e ter premissas verdadeiras para ser bom. Uma terceira condição para que um argumento seja bom é ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. É isso precisamente que não acontece nos argumentos circulares.

O que é ser mais ou menos plausível? É o que um agente encara como mais ou menos provável, em função do seu estado cognitivo — isto é, em função das suas restantes crenças. Trata-se de uma noção epistémica, ao passo que a verdade é uma noção metafísica: a plausibilidade é relativa aos agentes, mas a verdade não. É verdade que a Terra se move ou não, independentemente do que as pessoas pensam sobre isso; mas um agente pode estar num estado cognitivo que não lhe permita saber que a Terra se move, e que lhe dê até boas razões para pensar que não se move.

Argumentar sem atender ao estado cognitivo das pessoas com quem argumentamos é perder tempo. Pois se não partirmos de premissas que tais pessoas considerem plausíveis, e mais plausíveis do que as conclusões a que desejamos chegar, os argumentos não persuadem — pois essas pessoas irão sempre rejeitar as premissas. Assim, argumentar é partir do que as pessoas consideram plausível e concluir validamente o que elas não aceitavam antes da nossa argumentação. Imaginemos duas pessoas a discutir a questão de saber se ter fé em Deus é racional na ausência de provas da existência de Deus. Para que esta discussão seja profícua é necessário que os argumentos usados por qualquer das partes se baseiem exclusivamente no que a outra parte considera plausível. Dito de forma mais clara: se eu sou crente e quero argumentar, perante um ateu, que a fé é racional na ausência de provas, só posso usar premissas que o ateu com quem estou a discutir considere plausíveis.



Concluindo, estas são as três condições necessárias da boa argumentação: usar argumentos válidos, usar premissas verdadeiras e usar premissas mais plausíveis do que a conclusão. Chama-se “argumentos cogentes” aos que reúnem as três condições. Resta saber se estas três condições são suficientes, além de necessárias.


segunda-feira, 21 de maio de 2007

Argumentos sólidos

No postO Que é Um Argumento?” respondi preliminarmente à pergunta do título e deixei uma questão em aberto, relacionada com este argumento:

Se a vida faz sentido, Deus existe.
A vida faz sentido.
Logo, Deus existe.

A questão que deixei em aberto foi esta: o argumento é válido, mas será bom? A validade, recorde-se, acontece quando as premissas e conclusão de um argumento estão de tal modo organizadas que é impossível ou improvável as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. A validade é uma condição necessária da boa argumentação — mas não é suficiente. Isso torna-se evidente se considerarmos um argumento menos abstracto:

Aristóteles e Platão eram alemães.
Logo, Aristóteles era alemão.

Este argumento é obviamente válido porque é obviamente impossível a premissa ser verdadeira e a conclusão falsa. Mas o argumento é mau — até porque tem uma conclusão falsa. Isto acontece porque a própria premissa é falsa. A validade só garante que se partirmos de premissas verdadeiras, obtemos conclusões verdadeiras. Não garante que obtemos conclusões verdadeiras se partirmos de premissas falsas.

Assim, há duas condições necessárias para que um argumento seja bom: a validade do argumento em si e a verdade das premissas. Chama-se “argumento sólido” aos argumentos que além de válidos têm premissas verdadeiras. São os argumentos sólidos que nos interessam, e não apenas os argumentos válidos.

Mas isto levanta um problema: como garantir que as nossas premissas são verdadeiras?

E é aqui que se esconde geralmente a visão distorcida que muitas pessoas têm das coisas. Muitas pessoas são como as crianças que pensam que a origem do leite é o supermercado — desconhecem a verdadeira origem do leite. Acontece o mesmo com algumas pessoas que pensam que as verdades caem das árvores, já prontas e acabadas, bastando aos seres humanos a sua recolha mais ou menos automática. Quando descobrem que temos de nos dar ao trabalho de tentar descobrir verdades, e que não há mecanismos automáticos para isso, ficam aborrecidas.

Para argumentarmos correctamente, temos de usar argumentos sólidos e para isso temos de ter premissas verdadeiras e para ter premissas verdadeiras temos de ir à descoberta das coisas — e não há receitas automáticas para fazer isso. Fazemo-lo de diversas maneiras e nenhuma delas é automática nem garante resultados — o risco de errar está sempre presente. Por isso, para cada maneira de tentar pacientemente descobrir a verdade, há mil maneiras de o impedir usando variações do conhecido Discurso Paralisante: “Não vale a pena porque não há garantias”. A história das grandes descobertas e dos grandes feitos da humanidade é a história do que se conseguiu saber e fazer quando não havia garantias de se conseguir sabê-lo nem fazê-lo.

Para aborrecer ainda mais os que querem soluções tipo “fast-food”, quase todas as maneiras de descobrir verdades obrigam a usar... argumentos. De modo que para justificar uma premissa temos de usar outro argumento e por sua vez para justificar uma premissa desse argumento temos de usar um terceiro. Só de pensar nisto faz tonturas, mas a vida é mesmo assim. Não há soluções automáticas. Há apenas as nossas crenças sobre as coisas, uma mais plausíveis do que outras, e as nossas justificações delas. Se formos sérios e honestos, procuramos mesmo as justificações, com cuidado, imparcialidade e objectividade. Se adoptarmos o maravilhoso lema “vale tudo”, torna-se tudo muito mais simples porque podemos dizer o que nos dá na telha. Mas também tem a desvantagem de ser completamente aleatório, pelo que com a mesma aleatoriedade podemos negar tranquilamente, e sem qualquer justificação, tudo o que essa pessoa disser. Se o fizermos com um sorriso nos lábios temos ainda o bónus de a irritar profundamente, e portanto não se pode dizer que a vida é sempre madrasta.

Em conclusão, conhecemos já duas das condições necessárias para que um argumento seja cogente: ser válido e ter premissas verdadeiras. Mas ainda falta uma terceira condição necessária para que um argumento seja cogente: é o que veremos noutro post. Para espicaçar a sua curiosidade deixo-lhe este argumento maravilhoso, que é sólido (é válido e tem premissa verdadeira), mas é idiota:

Sócrates não era engenheiro.
Logo, Sócrates não era engenheiro.

Noutro post veremos por que razão este argumento é mau, apesar de ser sólido.

domingo, 13 de maio de 2007

Más companhias

Entre outros aspectos, a lógica informal estuda as falácias formais e informais que ocorrem quando as pessoas argumentam. Recentemente, apercebi-me de que uma das falácias mais comuns em debates públicos é a falácia das más companhias ou “guilty by association”. Esta falácia baseia-se no erro de pensar que as ideias vêm aos “cachos”, como as uvas: rejeita-se qualquer ideia ou argumento defendido por uma pessoa com a qual se discorda sobre alguns assuntos fundamentais, presumindo-se algo vagamente que defender um certo conjunto de ideias ou argumentos considerados errados implica que todas as ideias ou argumentos defendidos por essa pessoa ficam “contaminados”. A limite, isto provoca a “tresleitura”, fazendo os “inimigos” rejeitar até o que a pessoa não escreveu, nem disse, nem defendeu.

O debate público sobre o aborto, assim como muitos debates na blogosfera, têm esta característica. As pessoas não ouvem nem lêem com atenção o que as outras dizem, porque já sabem a que “grupo” elas pertencem. E quando respondem, nem leram nem ouviram com atenção o que a pessoa disse — limitam-se a presumir que a pessoa disse outra vez o que muitas vezes diz. Este tipo de atitude é a negação do debate e baseia-se em associações de ideias mal amanhadas. Saber se é realmente verdade que uma determinada ideia implica outra é muitas vezes difícil e exige grande sofisticação. Mas para o partidário do pensamento “fast food” nada disso conta — basta saber que aquela pessoa é marxista para que tudo o que ela diz sobre economia ou política ter de estar errado. Ou basta saber que aquela pessoa é ateia, ou religiosa, ou seja o que for, para que tudo o que ela diz ser lido apenas superficialmente, só para se manifestar a nossa indignação e para “não deixar passar”.

Esta atitude é tola. Todos os seres humanos erram, mas também todos os seres humanos acertam parcialmente na verdade. Ninguém tem o monopólio nem da verdade nem do erro. As ideias não vêem aos cachos. Pessoas que defendem ideias erradas defendem também, misturadas com essas, ideias correctas. Destrinçar umas das outras é um dos objectos da discussão de ideias. Discutir cuidadosamente se a ideia A implica realmente a ideia B exige cuidado, atenção ao pormenor e seriedade. Presumir que a ideia A implica a ideia B só porque sabemos que a pessoa que defende a primeira defende também a segunda é uma tolice.

Mas pior do que uma tolice: esta atitude corrói a própria possibilidade da discussão de ideias. Discutir correctamente ideias é discutir só as ideias que explicitamente estamos a discutir, e fazê-lo com cuidado. A falácia das más companhias transforma a discussão de ideias em contagem de armas: quem consegue ter mais apoiantes, X ou Y? Não se trata de, juntos, seguirmos o fio da argumentação, atentarmos aos pormenores, verificarmos as fontes e os factos — nada disso. Trata-se apenas de usar todos os truques e mais alguns para gritar de múltiplas maneiras diferentes a mesma coisa: “Viva a minha ideia, o meu modo de vida, as minhas preferências, e abaixo a tua ideia, o teu modo de vida, as tuas preferências!” A imagem justa desta maneira de entender o debate de ideias é a palhaçada das manifestações de rua, em que grupos bovinos de pessoas gritam palavras de ordem e exibem a força do número dos seus apoiantes, sem uma sombra de argumentação séria nem de articulação de ideias. Muitas pessoas pensam que isto é que é a democracia: a constituição de grupos irracionais de pressão da opinião pública, para que ganhe quem faz mais barulho. E por isso ficam até desnorteadas quando se procura a discussão séria de ideias, pois o que está para elas em causa não é saber de que lado está a verdade (está sempre do delas), mas unicamente saber quantos apoiantes se conseguem cativar para gritar mais alto do que os apoiantes da posição contrária.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Ainda o palimpsesto de Arquimedes

Como o Desidério já informou, hoje é o dia do lançamento do «Codex de Arquimedes», o livro em que o historiador de ciência Reviel Netz e o conservador de manuscritos e livros raros William Noel contam a história fascinante daquele que é o mais famoso palimpsesto do mundo, de que a Edições 70 disponibiliza em formato pdf o Prefácio e o Capítulo I.

Mas as surpresas do livro de orações, que se revelou uma fonte inestimável e única de textos do «filósofo mais importante no mundo», nas palavras de William Noel, não se ficaram por aí. Já se sabia que no livro de orações em que foram reciclados os tratados de Arquimedes era na realidade não um mas cinco palimpsestos.

Um dos livros reutilizados pelos monges continha textos de Hipérides, o político e orador ateniense do século 4 a.C. que foi discípulo de Platão e Isócrates. Hipérides organizou a resistência dos atenienses contra Antípatro e foi executado pouco depois de o macedónio vencer a guerra Lamíaca. Da pena de Hipérides sobreviveram apenas um discurso completo, Em Defesa de Euxenipo, e fragmentos de outros cinco, os mais importantes dos quais são o Contra Demóstenes e a Oração Fúnebre, uma homenagem aos soldados mortos na guerra de independência do domínio macedónio. O palimpsesto aumentou em 20% o nosso conhecimento dos textos deste importante actor de um período conturbado da história grega.
















Outro dos livros reciclados, de leitura extremamente difícil de acordo com Roger Easton, professor de ciência da imagem no Instituto de Tecnologia Rochester, nos Estados Unidos foi finalmente decifrado. E o palimpsesto mereceu o epíteto de 8ª maravilha de mundo como se lhe refere William Noel: o terceiro livro decifrado revelou-se um comentário a um texto de Aristóteles, as Categorias, uma obra basilar para o estudo da lógica em toda a história ocidental.

Bob Sharples
do University College de Londres considera que o autor mais provável destes comentários da obra de Aristóteles é Alexandre de Afrodisias, o mais importante comentador da obra de Aristóteles e que tornou a Política de Aristóteles a base de todas as escolas de filosofia política no mundo intercultural da Idade Média.

Como refere William Noel: «Temos um livro que contém três textos do mundo antigo que são absolutamente centrais para a nossa compreensão de matemática, política e, agora, filosofia», concluindo «Estou sem palavras para descrever o que este livro se revelou. Fazer estas descobertas no século XXI é francamente de loucos - é simplesmente tão excitante».

A partir de hoje todos podem partilhar a excitação de Noel e Netz ao longo da odisseia de recuperação e tradução do Codex e ficar sem palavras ao ler aquelas que descrevem as maravilhas inesperadas que o palimpsesto revelou.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Lógica e argumentação

A argumentação é um instrumento sem o qual não podemos compreender melhor o mundo nem intervir nele de modo a alcançar os nossos objectivos; não podemos sequer determinar com rigor quais serão os melhores objectivos a ter em mente.

Os seres humanos estão sós perante o universo; têm de resolver os seus problemas, enfrentar dificuldades, traçar planos de acção, fazer escolhas. Para fazer todas estas coisas precisamos de argumentos. Será que a Terra está imóvel no centro do universo? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra ela? Será que Bin-Laden é responsável pelo atentado de 11 de Setembro? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra? Será que foi o réu que incendiou propositadamente a mata? Será que o aborto é permissível? Será que Cristo era um deus? Será que criaremos mais bem-estar se o estado for o dono da maior parte da economia? Será possível curar o cancro? E a Sida? O que é a consciência? Será que alguma vez houve vida em Marte?

Queremos respostas a todas estas perguntas, e a muitas mais. Mas as respostas não nascem das árvores nem dos livros estrangeiros; temos de ser nós a procurar descobri-las. Para descobri-las temos de usar argumentos. E quando argumentamos podemos enganar-nos; podemos argumentar bem ou mal. É por isso que a lógica é importante.

A lógica permite-nos fazer o seguinte:

1) Distinguir os argumentos correctos dos incorrectos;
2) Compreender por que razão uns são correctos e outros não; e
3) Aprender a argumentar correctamente.

Os seres humanos erram. E não erram apenas no que respeita à informação de que dispõem. Erram também ao pensar sobre a informação de que dispõem, ao retirar consequências dessa informação, ao usar essa informação na argumentação. Muitos argumentos inválidos não são enganadores: são obviamente inválidos. Mas alguns argumentos inválidos parecem válidos. Por exemplo, muitas pessoas sem formação lógica aceitariam o seguinte argumento:

Tem de haver uma causa para todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa.

Contudo, este argumento é inválido. A lógica ajuda-nos a compreender por que razão este argumento é inválido, apesar de parecer válido. O argumento é inválido porque ainda que a premissa seja verdadeira, a conclusão pode ser falsa.

domingo, 29 de abril de 2007

O que é um argumento?


Um argumento é um conjunto de afirmações encadeadas de tal forma que se pretende que uma delas, a que chamamos a conclusão, seja apoiada pela outra ou outras, a que chamamos a premissa ou premissas. Um argumento só pode ter uma conclusão, mas pode ter uma ou mais premissas. A diferença mais importante entre um argumento e um raciocínio é que num argumento pretendemos persuadir alguém de que a conclusão é verdadeira, ao passo que num raciocínio queremos apenas saber se uma determinada conclusão se segue ou não de um determinado conjunto de afirmações.

Ao passo que as afirmações que usamos nos argumentos são verdadeiras ou falsas, os argumentos não podem ser verdadeiros nem falsos, pois não são afirmações, mas sim conjuntos de afirmações. As pessoas são morenas ou louras, mas os conjuntos de pessoas não são morenos nem louros. Quando os argumentos têm uma certa estrutura, ganham uma propriedade deveras interessante: torna-se impossível, ou altamente improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Nesse caso, dizemos que o argumento é válido — o termo é aqui usado não no sentido popular de “valioso” nem “interessante”, mas no sentido muito preciso indicado.

Nos argumentos válidos é impossível ou altamente improvável que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Repare-se que apenas se exige que seja impossível ter premissas verdadeiras e conclusão falsa para que um argumento seja válido. Mas um argumento pode ser válido e ter conclusão falsa — desde que tenha pelo menos uma premissa falsa. Por isso, a validade é uma condição necessária da argumentação cogente, mas não suficiente. Noutro artigo veremos quais são as outras duas condições necessárias para que um argumento ser cogente, além da validade. Para já, é tempo de dar um exemplo de um argumento válido muito simples:

Se a vida faz sentido, Deus existe.
A vida faz sentido.
Logo, Deus existe.

Este argumento é válido. O que significa que mesmo sem saber se as premissas são verdadeiras ou não, sabemos isto: que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será. Mas será um bom argumento? É o que veremos noutro artigo.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Lógica e falácia correlação-causalidade



A contribuição do Desidério é importantíssima. É curioso como um dos ramos filosóficos e matemáticos aparentemente mais afastados do dia-a-dia, a Lógica, é o maior pilar do pensamento crítico. E da defesa contra as ideias feitas com que tantos falsos profetas por vezes nos pretendem enfiar os seus dogmas pela garganta abaixo. E tantas vezes com sucesso!

Podia dar muitas referências. Em português recomendo aquele que é, para mim, o melhor livro do Carl Sagan (não, não é o Cosmos: é Um mundo infestado de demónios. Em inglês, as referências são infindáveis; para dar apenas uma fico por Thomas Gilovich, How we know what isn't so. Em ambos os casos o tema é ajudar a compreender e a desconstruir as falácias lógicas (e são muitas!) com que somos bombardeados todos os dias e que têm, queiramos ou não, influência no nosso comportamento enquanto cidadãos.

Uma das falácias lógicas mais exploradas por políticos, media, seitas, clubes de futebol e em geral agrupamentos de seres humanos com interesses comuns é a falácia de que "correlação implica causalidade". Vou dar três exemplos reais por ordem crescente de gravidade.

Um estudo famoso de há já vários anos mostrou que no Oeste Selvagem americano havia uma correlação quase perfeita entre o consumo de whisky nos saloons e o números de padres e missas celebradas: ambos aumentaram, num período de um quarto de século, por um factor de quatro. Qual é a conclusão a extrair? Foi o aumento de padres que conduziu as pessoas a afastar-se da religião e a beber mais, ou foi o aumento do consumo de whisky que levou as pessoas a arrependerem-se e a frequentar mais a igreja?

Nenhuma. Existe correlação mas não causalidade entre estas variáveis. Ambas as variáveis são manifestações indirectas da verdadeira causa de ambos os fenómenos: o aumento da população por um factor de 4. Havendo 4 vezes mais pessoas, passou a haver 4 vezes mais pessoas a beber whisky. E a ir à missa. Se se fizesse uma estatística sobre a venda de pão ou de cuecas nessa aldeias, também se observaria o mesmo factor de 4. Mas ninguém passou a comer 4 vezes mais pão ou a usar 4 pares de cuecas. Simplesmente passou a haver 4 vezes mais pessoas. Todos os outros aumentos estão correlacionados entre si (são essencialmente proporcionais ao aumento da população) mas nenhum deles provoca outro. São causados por uma variável externa, que os provoca a todos. Correlação não implica causalidade.

Segundo exemplo: nos anos 80, numa aldeia no norte de Israel, um surto de mortes por causas naturais levantou especulação sobre eventuais causas desconhecidas. Em vez de se determinar se o aumento de mortalidade era devido a flutuações estatísticas, implementaram-se soluções ad hoc. Em particular, um grupo de rabis proibiu as mulheres de frequentarem os funerais no cemitério comum, prática enraizada na tradição patriarcal milenar. Resultado: muitas famílias optaram por fazer os funerais noutros lados. É claro que o número de mortos enterrados no cemitério em questão diminuiu - não porque se tenha diminuído a mortalidade mas porque o número de enterros naquele cemitério diminuiu. Correlação não implica causalidade (e neste caso deixa-nos mesmo com um sabor amargo sobre qual será o reforço do papel que as pessoas da região passaram a atribuir a superstições misóginas).

Terceiro exemplo: quem viu An Inconvenient Truth dificilmente esquece a cena em que Gore mostra histrionicamente gráficos gigantes com a evolução da temperatura global na Terra e, seguidamente, a evolução da concentração do CO2. Conclusão, que Gore sarcasticamente explica: a concentração de CO2 determina a evolução da temperatura. Acreditai, incautos!

Do ponto de vista meramente lógico, como o Desidério poderá confirmar, esta conclusão é simplesmente falsa. É tão falso como falso é argumentar que o aumento do número de missas no Velho Oeste levou os pistoleiros a beber mais (ou vice-versa). Estes gráficos mostram que existe correlação entre estas variáveis. A única conclusão lógica que se pode extrair é que ambos os fenómenos estão correlacionados. "Concluir" que uma delas é causa da outra é um erro lógico, a falácia correlação implica causalidade. Estes fenómenos, aumento de temperatura e aumento de CO2, podem simplesmente ser ambos manifestação de uma causalidade externa a ambas, e os gráficos em si não permitem decidir esta questão. Do ponto de vista lógico, é tão errado argumentar num sentido como no seu oposto: tanto o aumento CO2 pode provocar aumento de temperatura como o aumento de temperatura provocar aumento de CO2. Como ambas as hipóteses, ou nenhuma. Correlação não implica causalidade.

No entanto, as indicações científicas vão cada vez mais no sentido de haver uma correlação provocada por uma causa externa, e portanto de o aquecimento global observado não ser provocado pelo efeito de estufa, ao contrário do que ouvimos dizer há vinte anos.

A comunidade científica aceita hoje pacificamente que desde 1850, quando saímos da Idade do Gelo, a Terra está em moderado aquecimento global, a uma taxa média de 0,7 a 0,8 graus por século. Isto são dados factuais do IPCC. Por outro lado, é um facto científico que o aquecimento dos oceanos liberta por expansão térmica o CO2 dissolvido nos oceanos (que, recorde-se constituem 70% da superfície do planeta), pelo que o aquecimento da Terra implica forçosamente o aumento da concentração de CO2. Por outro lado ainda, existem cada vez mais publicações científicas que mostram que o CO2 é um lagging indicator climático: em vez de se antecipar ao aquecimento, a sua concentração começa a aumentar depois de o aquecimento começar. O artigo que iniciou esta linha de investigação faz um estudo de 400.000 anos a partir dos cilindros de gelo de Vostok, e o gráfico dá-se acima. Devido às escalas temporais, é difícil verificar esta diferença a olho nu; mas a análise matemática dos registos revela claramente que a concentração de CO2 começa a subir entre 400 a 1000 anos depois do aumento de temperaturas.

Mas não é impossível verificar este facto científico no conforto de sua casa. O leitor não precisa de acreditar em ninguém: nem em mim nem em quem disser o contrário. Felizmente a Ciência não e uma questão de fé: é uma questão de factos. Faça o seguinte. Imprima este post em papel branco; ou, melhor ainda, vá buscar uma versão do gráfico em tamanho grande aqui. Agora, recorte os dois gráficos e sobreponha-os, tendo o cuidado de sobrepor as correspondentes escalas temporais. Está a ver o que se passa? Ao longo de 400.000 anos, os registos não mentem: as variações de temperatura precedem sempre as de concentrações do CO2, seja para cima seja para baixo. A diferença temporal entre os dois gráficos é pequena (cerca de 800 anos quando os gráficos têm uma escala de 400.000) mas vê-se claramente a olho nu! Não acredite apenas no que eu estou a dizer: faça isto! E, por favor: deixe de acreditar em verdades reveladas.

A razão é que a capacidade calorífica dos oceanos é tão grande que, para elevar 1 grau a temperatura dá água, é preciso fornecer uma grande quantidade de calor (é por isso que para aquecer água para o chá o leitor precisa de usar o fogão da sua cozinha). Se a diferença de tempeeratura do ar (o aquecimento) é pequena, vai demorar muito, muito tempo para que os oceanos aqueçam. Afinal, as massas oceânicas chegam a ter mais de uma dezena de quilómetros de profundidade. Assim, as massas oceâncias demoram séculos a acompanhar o aquecimento, muito mais rápido, da superfície sólida da Terra e portanto a libertar CO2 significativamente.

(Já agora, para que não haja alarmismos injustificados: a actividade humana é responsável por apenas 3% das emissões de CO2, que por seu lado constituem apenas 20% dos gases de efeito de estufa; 70% são vapor de água.)

Aumento de temperatura e aumento de CO2 estão de facto correlacionadas e vão a par. Mas sempre foram! E o aumento do CO2 sempre se seguiu ao aumento de temperatura! A causa não é o Homem: é outra, que provoca ambas estas variações correlacionadas.

Se existe correlação entre aumento de temperatura e de concentração de CO2, qual é o mecanismo responsável pelas alterações climáticas, pelo aquecimento global e de concentração de CO2 que estamos agora a viver (e pelas quais, pelo gráfico acima, a Terra já passou 4 vezes nos últimos 400.000 anos), afinal qual é a causa?

Embora não haja consenso absoluto, os dados científicos mais recentes apontam para que seja a actividade solar, e não o CO2, a responsável pelo forçamento do clima. A discussão científica está, em 2007, em plena actividade, com artigos publicados de um e de outro lado. O que é falso, e é essa mentira que nos é passada pela falácia lógica "Correlação implica causalidade", é que a discussão científica esteja encerrada. Pelo contrário: a comunidade científica está muito mais dividida agora do que há uma década. Os dados de Vostok são de 2000. Os ciclos solares essenciais foram identificados em 2001, e têm sido confirmados independentemente, por vários métodos, desde então. Se for este o mecanismo de forçamento do clima, e portanto do aquecimento global, bem podemos tentar diminuir as emissões de CO2 à vontade: estamos a dar a resposta errada a um pseudoproblema. Temperatura e CO2 vão aumentar acompanhando a verdadeira causa, o aumento da actividade solar.

Correlação não implica causalidade. Por que razão é fácil reconhecer isso com os pregadores do Velho Oeste mas não com os pregadores politicamente correctos? Será tão difícil, como dizia Sagan, manter o espírito aberto sem que o cérebro caia?

domingo, 22 de abril de 2007

O que é a lógica?

A lógica elementar, formal e informal, é uma disciplina de tal modo formativa e ao mesmo tempo básica que é inaceitável que não seja ensinada desde cedo a todas as pessoas. É um pequeno escândalo que se possa considerar alguém um cidadão instruído sem saber lógica elementar, ao passo que todos concordamos que não se pode ser um cidadão instruído sem ter a mais pequena ideia da composição da água ou da arquitectura do sistema solar.

A lógica elementar é um instrumento fundamental para ajudar o cidadão a ter um sentido crítico apurado, ao mesmo tempo que o põe em contacto com um aspecto central do conhecimento. A lógica estuda a argumentação e o raciocínio, procurando entre outras coisas distinguir a argumentação correcta da falaciosa, assim como compreender e sistematizar o próprio fenómeno da argumentação ou raciocínio correctos. Fundada por Aristóteles no séc. V a. C., a lógica formal foi desenvolvida pelos seus sucessores, nomeadamente os estóicos. Depois as coisas ficaram em grande parte estagnadas, até ao séc. XIX (apesar de alguns desenvolvimentos medievais notáveis que todavia não tiveram grande influência no mundo académico em geral), altura em que se dão novamente desenvolvimentos impressionantes, redescobrindo-se nomeadamente a lógica estóica, que é a base de todas as lógicas formais contemporâneas.

A lógica é importante por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque precisamos de raciocinar para descobrir muitas coisas que não podemos saber directamente pela observação. Na verdade, a quase totalidade do conhecimento mais sofisticado que temos do mundo, nomeadamente o conhecimento científico, não resulta directamente da observação — é produto também do raciocínio. Pessoalmente, acho preocupante que muitos cientistas não tenham uma formação sólida em lógica formal e informal, apesar de terem de ter formação em matemática, o que é uma ajuda modesta — mas nem todo o raciocínio é matemático.

Em segundo lugar, porque a lógica nos permite melhor discutir assuntos sobre os quais não há resultados científicos definitivos, ou sobre os quais os especialistas das áreas em causa discordam. Discutir ideias é trocar argumentos, e esses argumentos podem ser melhores ou piores — mas se nem sabemos bem o que é um argumento, e o que o distingue de uma simples afirmação, e como se distinguem os bons dos maus argumentos, não podemos discutir com o grau de seriedade e sofisticação que os assuntos profundos e graves que nos interessam merecem.

Em artigos seguintes veremos o que são os argumentos.

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...