terça-feira, 16 de setembro de 2008

Três enganos comuns


Sempre que pensamos, podemos cair em algumas armadilhas. Isso tanto acontece por sermos evidentemente falíveis como por  estarmos mais interessados em “provar” que são verdadeiras as nossas ideias preferidas do que em tentar saber honestamente se realmente são verdadeiras. Eis três dessas armadilhas, que se relacionam entre si.

1) “X é consistente com Y, logo é verdade que Y.” 

Devia ser óbvio que a mera consistência não é suficiente para estabelecer algo como plausível ou verdadeiro, dado que muitas coisas opostas são consistentes com os mesmos dados. Imagine-se que a existência de deuses é realmente consistente com tudo o que sabemos ou julgamos saber sobre o universo. Isso não prova que esses deuses existem, nem que é provável que existam, se a inexistência de tais deuses for igualmente consistente com tudo o que sabemos ou julgamos saber sobre o universo. Consistência não é verdade nem sequer probabilidade. 

O mesmo acontece com muitos raciocínios a favor da ideia de que somos regularmente visitados por extraterrestres, a favor da homeopatia, do Reiki ou seja qual for a última tolice inventada pelos seres humanos.

2) “X está por explicar; Y poderia explicar X, logo Y é verdade”. 

Devia ser óbvio que há muitas explicações concorrentes e não basta que algo explique uma coisa para isso ser verdade. É também preciso que essa seja a explicação mais plausível entre muitas outras e que resista melhor à discussão crítica. Podemos explicar a queda dos objectos dizendo que há um rato com poderes psíquicos no centro da Terra que puxa os objectos para baixo, mas esta explicação não é a mais plausível. Poder explicar algo não é razão suficiente, só por si, para aceitar seja o que for porque com imaginação suficiente podemos explicar tudo com tudo. É preciso procurar activamente explicações alternativas, para depois as comparar entre si e tentar ver qual delas será mais plausível.

3) “Era tão bom que fosse verdade que X! Logo, é verdade que X.” 

Claro que este tipo de erro nunca é tão explícito, mas nem por isso é menos comum. Sempre que uma explicação ou pretenso facto é particularmente desejável para nós, temos de a avaliar com redobrada crítica precisamente porque podemos estar a pôr na realidade o que queremos e não o que lá está. Qualquer argumento a favor da ideia de que um deus encarnou e depois de morto ressuscitou é mais fraco do que a hipótese de que isso nunca aconteceu, mas várias pessoas queriam tanto que isso acontecesse que inventaram essa fantasia. Quanto mais uma ideia nos for agradável, mais críticos temos de ser relativamente a ela, pois podemos ficar cegos precisamente por querermos tanto que seja verdadeira.

Estes três aspectos interligam-se obviamente. Uma pessoa gostaria que houvesse X. E se houvesse X, isso explicaria várias coisas. Além disso, X é perfeitamente compatível com o que vemos e ouvimos, com a ciência e com várias outras coisas que pensamos saber. Logo, conclui o desavisado ser humano, X existe.

Talvez este erro de raciocínio seja geralmente involuntário. Mas nem sempre o será, e raramente será inteiramente involuntário. Desconfio que na maior parte das vezes as pessoas adoptam este tipo de raciocínio com um misto de consciência de que estão a ser intelectualmente desonestas, mas ao mesmo isso é tão confortável que se forçam a continuar a pensar dessa maneira. É como alguém que se recusa a ver uma realidade desagradável e se força de algum modo a pensar que essa realidade não existe, só porque dava jeito que não existisse. Daí que quem adopta este tipo de atitude mental tenha a necessidade de estar integrado em comunidades de pessoas que pensam como elas e que não põem em causa as suas crenças mais queridas. Daí também a necessidade de introduzir na educação, desde a mais tenra idade, essas mesmas ideias: se desde muito cedo nunca contactarmos com pessoas que pensam que as nossas ideias são falsas, será mais difícil desconfiar que somos intelectualmente desonestos.

10 comentários:

Carlos Albuquerque disse...

O Desidério desmascara bem três erros de raciocínio mas, quando tenta aplicá-los às questões religiosas, parece-me que comete o mesmo tipo de erros.

Em particular sugere que se uma explicação é mais plausível então devemos aceitá-la porque é a verdadeira, o que me parece um erro do tipo 2)

O último parágrafo do texto também se poderia aplicar à repetição subliminar de certas ideias sobre religião em textos aparentemente sobre lógica ou ciência.

Acho que não devemos ser muito rápidos a considerar outros intelectualmente desonestos quando estamos em desacordo com eles.

Continuo a achar que se fala muito sobre religião conhecendo muitíssimo pouco de religião.

Unknown disse...

Carlos, meu grandessíssimo primata mamífero eucarionte:

#1 - Onde é que está escrito que "se uma explicação é mais plausível então devemos aceitá-la porque é a verdadeira"? - Acho que cometeste um erro do tipo 3 ("alguém que se recusa a ver uma realidade desagradável e se força de algum modo a pensar que essa realidade não existe, só porque dava jeito que não existisse").

#2 - "repetição subliminar de certas ideias sobre religião em textos aparentemente sobre lógica ou ciência". - Cometeste de novo um erro do tipo 3. O que se vê frequentemente é a apropriação de ideias relativas à "lógica ou ciência" (não sabes qual é a diferença, pois não?...) em textos subliminarmente religiosos (e pós-modernistas nem se fala...).

#3 - "Continuo a achar que se fala muito sobre religião conhecendo muitíssimo pouco de religião" - Conheço o apedrejamento de mulheres no antigo testamento, conheço os bombistas suicidas de alá, conheço as violações de meninos do coro por padres católicos, conheço que o dalai-lama não aceita que um homem pague a uma prostituta por sexo, mas que se for outra pessoa a pagar não há problema, conheço as fogueiras dos autos-de-fé, conheço a sã convivência do Vaticano com o Hitler, conheço a infeliz condição das mulheres na Arábia Saudita, conheço os milhões de infectados com o HIV porque "a contracepção é pecaminosa", conhecemos infelizmente muitíssimo de religião.

Carlos Albuquerque disse...

Caro uurrgghh

#1 - Não está escrito nem eu disse que estava escrito.

#2 - O que diz não invalida em nada o que eu disse.

#3 - Dá um exemplo cristalino do que eu queria dizer.

Fernando Gouveia disse...

Pergunto-me como poderíamos enquadrar estas três falácias no guia de Stephen Downes...

Talvez:

- “X é consistente com Y, logo é verdade que Y.”: Falácia da consistência (categoria: Non-Sequitur)

- “X está por explicar; Y poderia explicar X, logo Y é verdade”: Falácia da aceitabilidade (categoria: Erros silogísticos)

- “Era tão bom que fosse verdade que X! Logo, é verdade que X.”: Apelo a desejos (categoria: Apelo a motivos em vez de razões) - para manter a forma deste tipo de falácias, talvez reescrever na forma “X tem de ser verdade, porque era bom que assim fosse!”

Parece-lhes bem?...

Anónimo disse...

Já não é a primeira vez que observo o Desidério Murcho a passar mensagens subliminares sobre religião no meio da exposição de técnicas de argumentação.

Não me parece que afirmações tipo "é uma fantasia" estejam racionalmente justificadas. Julgo que o Desidério cai no erro que aponta aos outros: tanto quer que seja verdadeira a sua visão do mundo e da vida que a toma como absolutamente certa sem qualquer preocupação em a analisar e pensar criticamente.

O objectivo final do artigo é só um e está explicado no último parágrafo: apanhar cidadãos, logo na mais tenra idade, para os doutrinar. Exactamente aquilo que se critica à Igreja. Mas não cometerei a indelicadeza de adjectivar essa doutrinação como o Desidério o fez em tempos, porque a considero incorrecta seja em que contexto for.

Desidério Murcho disse...

Nos debates sobre questões como a religião abunda a tolice militante e a parcialidade. Isso não me interessa. Nem quando serve a fé nem quando serve o ateísmo. A desonestidade intelectual e a parcialidade são más em si, independentemente de estarem ao serviço do crente ou do descrente. É preciso elevar o tom do debate, mas isto não quer dizer "respeitar" a religião porque a religião não merece respeito, tal como o ateísmo não merece respeito. Quem merece respeito são as pessoas -- e só o merecem, entre outras coisas, quando se comportam eticamente num debate de ideias, demonstrando uma genuína vontade de descobrir a verdade, ao invés de uma persistente tentativa de ter sempre razão.

Lufiro disse...

«Quem merece respeito são as pessoas -- e só o merecem, entre outras coisas, quando se comportam eticamente num debate de ideias, demonstrando uma genuína vontade de descobrir a verdade, ao invés de uma persistente tentativa de ter sempre razão»

Sócrates não diria melhor, meu caro Desidério. Mas tenho dúvidas que a procura da verdade não esteja sempre dependente da vontade de alguém em ter razão; a não ser que , claro está, a verdade possa nascer da vontade de nunca ter razão. Isto é contudo contraditório, uma vez que mesmo quem procura a verdade "negativamente" (não procurando sempre ter razão) tenta ter razão nesse particular -- embora talvez nem sempre tente ter razão.

Desidério Murcho disse...

Olá, Luf, obrigado pela achega.

Repara que há uma grande diferença entre querer ajustar a realidade à nossa opinião para fingir que temos razão, e ajustar a nossa opinião à realidade para procurarmos ter genuinamente razão.

Anónimo disse...

A ideia de que as pessoas merecem respeito mas as suas ideias não, é o maior embuste de sempre. O que é uma pessoa? Para Peter Singer, é uma ser racional e auto-consciente. Para John Locke é um ser "pensante". Não se pode dissociar uma pessoa das suas ideias. Não se diz "respeito o teu joelho esquerdo mas não respeito o que pensas sobre religião".

Em seguida vem a questão do respeito. O que é o respeito? É a capacidade de escutarmos o outro com atenção, de sermos suficientemente inteligentes para perceber os seus pontos de vista e as suas ideias, sem o procurarmos ridicularizar. Não significa aceitar passivamente as ideias do outro, abdicar das nossas opiniões ou deixarmos de ter uma acção persuasiva para que os outros abandonem a suas ideias e adoptem as nossas.

Para se ter um debate intelectual elevado e culto é preciso aprender a respeitar o outro. Quando se consegue sentir esse respeito é uma porta aberta para o diálogo entre pessoas que pensam de forma diferente.

No caso particular do respeito pela religião a questão assume contornos mais melindrosos porque muitas vezes se confronta a emoção com a arrogância intelectual e os argumentos de autoridade para além de se procurar diminuir o carácter sagrado que uma religião tem para um crente, ridicularizando-a. Quando se usa a ironia, o sarcasmo ou o "humor" os debates não evoluem: se ambos os "competidores" forem boas nessa "arte" o debate transforma-se numa grande algazarra.

Aqui tem de entrar em jogo a tolerância que implica aceitar que os seguidores das diferentes religiões considerem as suas crenças como verdadeiras sem se abdicar de ideias próprias, sejam ateístas ou agnósticas.

Ser tolerante não implica abster-se de fazer críticas às práticas religiosas dos outros. Devem criticar-se livremente as religiões mas de uma forma racional e séria, não com argumentos "é uma fantasia" ou coisas semelhantes.

Finalmente, tal como na filosofia, quando se fala de religião é preciso saber o que se fala. E para isso é fundamental ler a bibliografia básica.

Desidério Murcho disse...

A máxima de Voltaire parece que afinal nunca foi expressamente escrita por ele: “Discordo completamente do que dizes, mas defenderei sempre o teu direito a dizê-lo”. Esta máxima quer dizer precisamente que se respeita as pessoas, mas não as ideias. Pois o que é respeitar uma ideia? É ser subserviente em relação a ela, em vez de procurar refutá-la. O que é respeitar uma pessoa? É achar que ela tem todo o direito de pensar o que lhe apetecer e de viver a vida como quiser, desde que não prejudique ninguém.

Penso que compreendo do que estás a falar, Parente, mas não é respeito pelas ideias que precisas. Precisas de seriedade na discussão. Imparcialidade. Discussão que almeja genuinamente à descoberta da verdade em vez de ser um mero exercício de poder ou uma mera propaganda. Nisso, estou contigo. Quando se falar de religião e de outros assuntos, fica um nojo porque ninguém está a discutir seriamente: cada qual está só a tentar trapacear o outro, prostituindo nesse processo a própria argumentação, que assim fica desfigurada.

Contudo, por que razão é importante não fazer apelos ao respeito pelas crenças ou ideias de cada um? Porque esse apelo é tipicamente uma forma de impedir a discussão aberta. Por outro lado, nenhuma crença, nenhuma convicção merece qualquer respeito. Devemos poder caricaturar religiões, convicções políticas, filosóficas, científicas, seja o que for. Qualquer atitude referencial ou de respeito no domínio das crenças e das convicções é já um primeiro passo, e um primeiro passo demasiado grande, para uma atitude subserviente que só serve a mentira.

O que achas?

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