sexta-feira, 5 de setembro de 2008

SEIS LIVROS DE RÓMULO DE CARVALHO



Em 2006, ano do centenário do nascimento de Rómulo de Carvalho, realizou-se na Maia, organizado pelo Instituto Superior da Maia, um colóquio internacional sobre António Gedeão / Rómulo de Carvalho. Eis a transcrição, encurtada e editada, da intervenção que aí tive a honra de fazer:

Vou falar de alguns livros de Rómulo de Carvalho. A sua obra é tão vasta que só posso referir alguns, a meia dúzia de livros que me tocaram e tocam, esboçando a relação que esses livros tiveram e têm comigo.

Começo com a obra de António Gedeão: a Obra Completa é uma edição muito cuidada, num só volume, da Sá da Costa. Seria estultícia da minha parte escolher um poema de entre tantos e tão bons, mas, como o primeiro poema tem sempre um significado particular, escolho o poema de 1956, que inaugurou o livro Movimento Perpétuo, o primeiro livro de Gedeão, publicado na Atlântida, quando Rómulo de Carvalho tinha 50 anos e ensinava em Coimbra no Liceu D. João III. Por acaso, é o ano em que nasci e por acaso estudei nesse liceu, embora só muitos anos depois. Como o mestre tinha ido para Lisboa, tive de me limitar a ser discípulo dele através dos livros, numa espécie de ensino à distância. Já se fazia ensino à distância naquele tempo. Agora fala-se muito em ensino à distância, usando as novas tecnologias. Nessa altura fazia-se ensino à distância recorrendo a essa antiga tecnologia, e ainda bem actual, que é o livro.

O poema “Homem”, que inaugura a obra de Gedeão, tem como primeiro verso: “Inútil definir este animal aflito”. É um verso que esteve talvez retido muito tempo dentro do poeta. Mas, quando saiu para fora, foi uma espécie de “big bang” da sua poesia, criou-se um novo cosmos poético.

O segundo livro que trago é A História dos Balões da colecção “Ciência para Gente Nova” também da Atlântida. Se tiverem a sorte de apanharem este livro, não a desdenhem... A História dos Balões conta a história da Passarola de Bartolomeu de Gusmão. Rómulo conta-a como se fosse hoje, como se a estivesse a ver, na corte de D. João V, o monarca que está no fundo da Biblioteca Joanina, a olhar para quem nela entra. É uma história muito interessante. Aliás, qualquer história contada por Rómulo de Carvalho torna-se interessante. Devo muito aos meus professores e ao meu liceu, mas talvez tenham sido livros como os decisivos para a escolha do meu curso. Foi, portanto, um ensino à distância muito efectivo. Eu, como toda a gente que passa pela escola, achava que o ensino era, por vezes, um bocadinho maçador. Mas este livro é precisamente o oposto. Isto era não só ciência para gente nova, era ciência nova para a gente. Foi com livros como este que comecei a abraçar a ciência.

Tenho também aqui a edição nova, num só volume, de Física Dia a Dia. Em casa tenho a edição antiga, em dois volumes, intitulada Física para o Povo, ainda da Atlântida Este livro dirige-se não só a gente nova, mas a gente de todas as idades, em particular, às pessoas que não gostam de ciência, talvez porque não a conhecem, mas que são inteligentes. Rómulo de Carvalho trata o leitor como pessoa inteligente. Mas mais: trata-o por “o meu amigo”. Há muitos poucos livros que nos tratem desse modo. Dá vontade de ficar amigo de quem nos trata assim. Apresenta-nos assim os barcos a flutuar: “o meu amigo já ouviu dizer que um barco num rio mergulha mais na água do que se estiver no mar? Sabe porquê?”. É uma conversa íntima. Diz-nos: “sabe porquê?” e quer dizer “venha comigo”. E uma pessoa vai com ele. “Suponha o meu amigo que sai num barco do porto de Lisboa, navegando no Tejo, que atravessa a barra, que entra no mar a caminho…” Estamos mesmo, ao ler, a assistir à cena. Estamos com ele a navegar no rio. E esta é apenas uma das muitas histórias do livro, esta é a história número 40, há mais de 70. A nova edição foi enriquecida pelo prefácio de José Mariano Gago, que foi quem, no ano de 1996, designou Rómulo de Carvalho patrono do Dia Nacional da Cultura Científica, celebrado a 26 de Novembro, data do nascimento.

Uma experiência descrita neste livro é a da construção da bússola. Eu disse que a minha carreira orientada por estes livros. Onde fica o Norte? Rómulo explica-nos neste livro que se pode saber onde fica o Norte: “O meu amigo já ouviu falar em bússolas? Vou ensinar-lhe a fazer uma bússola e vai ver como é fácil”. Reparem que ele não evita a palavra “ensinar”, ao contrário de alguns documentos educativos. Repito: “Vou ensinar-lhe a fazer uma bússola”. Ele não tem receio nenhum de dizer isto, ele sabe e sabe que a gente vai gostar de saber. Explica como se faz uma bússola com material rudimentar. Lembro que o jovem Einstein, aos cinco anos, recebeu uma bússola do seu pai. O petiz ficou curioso com aquele mistério, o mistério da “mão invisível” que orienta a agulha para o mesmo sítio. Um cientista é apenas uma criança que cresceu, mas que, apesar disso, conserva a curiosidade infantil. Dizia Einstein: “nunca percam a curiosidade”.

Devo falar também dos Cadernos de Iniciação Científica. Cito, da introdução do filho, o físico Frederico Carvalho: “Os Cadernos de Iniciação Científica publicados em Lisboa entre 1969 e 1975 são uma das realizações mais notáveis do autor nos campos da pedagogia e da didáctica das ciências”. Não posso estar mais de acordo. São livrinhos muito originais, agora reunidos num só volume. Hoje fala-se muito em divulgação da ciência, mas esta, apesar de antiga, é divulgação da ciência da melhor, com uma qualidade gráfica, um bom gosto, que não é comum. O autor expressa-se num português de lei, um português clássico, o que significa eterno. Não é uma linguagem rebuscada, mas simples e clara. Escreve logo no início: “Sempre em todos os tempos existiram pessoas interessadas em observar a Natureza. Não nos referimos às pessoas que olham para a Natureza porque há nela flores bonitas, aves de penas coloridas, penedias soberbas de grandes alturas e ribeiros alegres que saltam entre seixos. Referimo-nos às pessoas que observam a Natureza pelo desejo de quererem saber o motivo por que certas coisas acontecem nela”. Está aqui tudo dito: A ciência não é mais do que isto.

Do livro As Origens de Portugal também o seu filho Frederico poderia falar melhor do que eu, porque se trata de uma história contada à criança que era ele. Agora Rómulo não fala da ciência, mas da história. Sabia contar histórias de ciência e sabia ainda, na mesma linguagem límpida, contar histórias da história. Além do mais, é um livro também muito bonito, uma edição muito bem feita da Gulbenkian. Ainda na área da história, a História do Ensino em Portugal, também da Gulbenkian, não tem uma capa tão apelativa. Mas é uma obra pioneira e de referência, qualquer pessoa que se debruce sobre a História do Ensino em Portugal tem de conhecer este livro. Demorou muito a fazer e está bem feito, é uma síntese incontornável para quem se dedica às questões da pedagogia. A ler e reler!

Queria, por último, dizer algo sobre este outro livro, um livro de peso, editado pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (ainda há alguns exemplares): História do Gabinete de Física Pombalino da Universidade de Coimbra. Este livro é feito de cadernos fechados, sendo preciso uma faca para os abrir. À medida que se abrem, descobre-se um trabalho imenso, um trabalho de monge medieval. É a descrição de um tesouro: a colecção de instrumentos do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra, que está no edifício do Colégio de Jesus, um dos mais antigos colégios de jesuítas do mundo. O Gabinete de Física deve-se ao Marquês de Pombal, que, depois de ter reformado a cidade de Lisboa, destruída pelo terramoto, reformou em 1772 a Universidade de Coimbra. Introduziu o ensino experimental, criando, além do Gabinete de Física Experimental, o Gabinete de História Natural, o Jardim Botânico, o Observatório Astronómico e o Laboratório Chimico, no primeiro edifício que, a nível mundial, foi construído para o ensino experimental da Química. É aí que funciona hoje o Museu da Ciência, que se irá alargar ao Colégio de Jesus, e que integra a referida colecção.

Rómulo estudou as atracções magnéticas com ímanes antigos, contrariando uma proposta que havia sido feita sobre a descoberta em Coimbra da lei das atracções magnéticas de Coulomb. Fez isso experimentando: pegou nesses ímanes, viu o que dava e disse “não dá”, quer dizer, seria muito interessante ter sido descoberta em Portugal uma lei tão importante, mas não foi. Vê-se, ao ler os seus escritos, que experimentou com gosto. Os instrumentos da colecção do Gabinete de Física têm aliás muito ver a ver com a dualidade António Gedeão/Rómulo de Carvalho. Porquê? Porque eles juntam de forma assaz harmoniosa a arte e a ciência.

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