Como a revista "Sábado" reeditou a esta semana, a um euro apenas, o livro "O Pêndulo de Foucault" do escritor italiano Umberto Eco (livro publicado pela primeira vez há 20 anos), transcrevo, embora encurtado, um texto meu de divulgação científica sobre o referido pêndulo, que saiu na extinta revista "Futuro". O texto foi escrito em colaboração com João Fonseca, na altura meu aluno e hoje professor do secundário, com a particularidade interessante de o meu co-autor ter construído ele próprio um grande pêndulo de Foucault no vão das escadarias do Departamento de Física da Universidade de Coimbra. O pêndulo rodou, mostrando que a Terra gira em torno do seu eixo!
Desde tempos imemoriais que o homem olha as estrelas com um entusiasmo indisfarçável. Actualmente sabe-se que a matéria de que somos feitos, isto é, os átomos que nos constituem, proveio, na sua maioria, do interior das estrelas. Já alguém disse que o nosso encanto pelas estrelas é um reconhecimento e homenagem às nossas origens. Ao observar o céu nas noites límpidas vêem-se configurações que se movem ordenadamente. Todas as estrelas se movem no sentido retrógrado, descrevendo uma órbita circular em cada dia. Foi este facto que despertou a atenção humana, mostrando que existem regularidades na Natureza e que podemos desenvolver teorias para as descrever.
Os gregos da Antiguidade criaram um modelo para descrever e explicar o movimento das estrelas e dos outros astros. Imaginaram que a Terra estava fixa no centro do Universo envolvida por uma esfera negra, a que chamaram "esfera celeste". As estrelas estavam incrustadas nesta esfera, todas equidistantes da superfície da Terra, e giravam continuamente em torno de um eixo que passa pelo centro da Terra, dando uma volta completa em cada dia, no sentido retrógrado. Daqui resulta que todas as estrelas têm de se mover com movimento circular e uniforme, no sentido dos ponteiros do relógio, exibindo sempre as mesmas configurações. Mas, para descrever o movimento do Sol, da Lua e dos outros planetas visíveis a olho nu, tiveram que imaginar muitas outras esferas a rodar, dezenas de esferas, resultando um modelo assaz complicado e que não se ajustava completa e satisfatoriamente à realidade. Esse modelo só conseguia reproduzir de um modo grosseiro o movimento dos astros. Para explicar o movimento nos céus admitiram que a matéria celeste, a que chamaram "quinta essência", era diferente da que existia na Terra e que apenas se podia mover eternamente em volta desta.
Embora este modelo tenha sido aceite durante muitos séculos, actualmente está abandonado, em virtude das contradições que encerrava. O homem aprendeu a medir a distância que nos separa das estrelas, por paralaxe trigonométrica e por método fotométricos. Quando verificou que a referida distância, para estrelas diferentes, pode diferir de milhares de anos-luz, deixou de aceitar a hipótese segundo a qual as estrelas estão todas equidistantes da Terra. Com o aperfeiçoamento dos telescópios, acabou por descobrir que as estrelas mais próximas de nós fazem parte de um sistema estelar gigantesco com uma forma espiral, a que foi dado o nome de Galáxia ou Via Láctea. As viagens tripuladas à Lua, as sondas enviadas aos outros planetas, assim como observações telescópicas possibilitaram a conclusão de que os materiais que constituem os planetas, os cometas, os asteróides, assim como a poeira e o gás interestelar, são feitos de substâncias que nos são familiares aqui na Terra. Abandonou-se, portanto, a dinâmica baseada na hipótese da "quinta essência". É assim que a ciência progride: as ideias são submetidas à prova e emenda-se tudo o que não esteja de acordo com as observações.
O cepticismo em relação ao modelo das esferas celestes não é, porém, recente. Já no século III a.C. Aristarco propôs um outro modelo, um modelo heliocêntrico, que, na sua opinião, era mais adequado para descrever o movimento dos astros. Aristarco observou o tamanho da sombra da Terra sobre a Lua, durante um eclipse lunar. Com base nas dimensões dessa sombra, realizou um cálculo que o levou a pensar que o Sol é muito maior do que a Terra e que está muito mais afastado desta do que a Lua. Considerou, também, que o Sol é uma estrela, que brilhava mais e parecia maior do que as outras apenas por se encontrar mais próxima de nós. Assim, achava absurdo que as estrelas, com dimensões tão grandes comparadas com as da Terra e tão afastadas desta, girassem em seu redor, dando uma volta completa em cada dia. Para ultrapassar estas dificuldades, Aristarco pensou que seria mais conveniente imaginar o Sol fixo no centro do Universo, com a Terra e os outros planetas a girar em seu redor. Para explicar o movimento diário dos céus propôs a hipótese segundo a qual a Terra possui um movimento de rotação, em torno de um eixo de simetria, no sentido directo. Segundo esta hipótese, o movimento dos céus no sentido retrógrado é aparente, sendo devido ao movimento de rotação da Terra em torno do seu próprio eixo, em sentido contrário. Os contemporâneos de Aristarco e os que viveram nos séculos seguintes não aceitaram essa hipótese. É mais fácil admitir que são as estrelas que se movem, porque as vemos mover, do que a Terra, de cujo movimento de rotação em torno do seu eixo não nos podemos aperceber directamente. Algum misticismo e más interpretações das observações também contribuíram para refutar o modelo de Aristarco, que, apesar de tudo, permitia explicar a variação anual da inclinação das trajectórias dos astros, o movimento retrógrado dos planetas e o aumento da intensidade do seu brilho durante o movimento retrógrado.
Em finais do século XV, um monge polaco, Nicolau Copérnico (1473-1543) propôs um novo modelo também heliocêntrico, de algum modo semelhante ao de Aristarco, mas contendo novas demonstrações e recorrendo a novas observações. Copérnico, no seu livro "As Revoluções dos Orbes Celestes", escreveu: "E porque não havemos de admitir que a rotação diária aparente no Céu mas real na Terra? E assim que as coisas se passam na realidade, como disse o Eneias de Virgílio: 'Nós saímos do porto e a Terra e as cidades recuam' [Eneida, III,72]". Mais tarde Galileu, Kepler e Newton adoptaram este ponto de vista, tendo este último conseguido uma explicação unificada do movimento, isto é, uma explicação do movimento nos céus e na Terra à luz do conceito de força gravitacional, uma força universal a que estão sujeitos todos os corpos com massa.
Poder-se-ia em princípio dizer que as afirmações "A Terra roda em torno do seu eixo uma vez por dia" e "Todos os astros rodam em torno da Terra uma vez por dia" são ambas verdadeiras. A escolha de um referencial para descrever um movimento é arbitrária: qualquer referencial pode ser escolhido porque não há movimento absoluto. Contudo, convém escolher aquele que torna a descrição o mais simples possível!
Assim, para estudar o movimento dos astros e também outros movimentos, temos toda a conveniência em optar por um referencial ligado ao Sol e às outras estrelas. Neste referencial, a Terra roda em torno do seu eixo uma vez por dia, enquanto o Sol e as estrelas permanecem fixos. Esta opção permite-nos explicar o movimento com base na interacção gravitacional, permite interpretar certos fenómenos como o achatamento da Terra nos pólos e a variação da aceleração da gravidade com a latitude, e evita situações conflituosas, como as que acontecem quando escolhemos a Terra como referencial. Vejamos dois exemplos concretos. Conhecemos a massa das estrelas e sabemos que é muito maior que a da Terra. Consequentemente, a Terra não tem "meios" para obrigar as estrelas a girar à sua volta. Num referencial ligado à Terra só podemos explicar o movimento das estrelas em termos do antigo conceito de "quinta essência". Por outro lado, sabemos que as estrelas mais próximas da Terra são as do sistema estelar triplo chamado Alpha Centauri, a cerca de 4,3 anos-luz de distância. Todas as outras estrelas estão mais afastadas da Terra do que estas, muitas a milhares de anos-luz. Num referencial ligado à Terra, todas as estrelas descrevem uma órbita circular em torno desta em cada dia, o que entra em contradição com o resultado fundamental da teoria da relatividade, que afirma que a velocidade da luz não pode ser ultrapassada. Aplicado a conhecida equação do movimento circular e uniforme (v=wr) ao movimento das estrelas, considerando a distância r que as separa da Terra e a sua velocidade angular w correspondente a um ângulo de uma volta inteira por dia, chegamos conclusão absurda de que a velocidade das estrelas é milhares, ou mesmo milhões, de vezes superior à velocidade da luz. Em suma: é mais vantajoso admitir que o Sol e as estrelas estão fixos e que a Terra roda do que o contrário.
Em meados do século XIX foi construído um aparelho, tão simples quanto notável, com a ajuda do qual pode ser realizada uma experiência cujos resultados só podem ser explicados com base no movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo. Chama-se pêndulo de Foucault. Mesmo que a Terra estivesse sempre coberta de espessas nuvens, como acontece no vizinho planeta Vénus, impossibilitando aos terrestres a observação do movimento dos astros, este aparelho bastaria por si só para mostrar que é verdadeira a afirmação de que a Terra roda em torno do seu eixo.
Um pêndulo de Foucault é um sistema constituído por uma esfera com massa de vários quilogramas, suspensa por um fio metálico que pode ter várias dezenas de metros de comprimento, e que, como qualquer outro pêndulo, pode oscilar em torno duma posição de equilíbrio. Este pêndulo tem o nome do físico francês Jean Baptiste Leon Foucault (1819-1868), porque foi ele quem idealizou e montou um destes pêndulos pela primeira vez, em 1851. A experiência foi realizada na enorme abóbada do Panthéon, em Paris. O pêndulo original de Foucault era constituído por um fio de 67 m de comprimento no qual estava suspensa uma esfera oca de cobre, cheia de chumbo, cuja massa era de 28 kg. Quando realizou a experiência, Foucault distribuiu um texto anunciando os resultados. Em 1855, a Royal Society de Londres homenageou Foucault com a Medalha Copley reconhecendo o alto mérito do seu trabalho.
Se uma pessoa caminhar em cima do carrocel, ao longo do raio deste, da borda para o eixo, sente que uma força misteriosa a empurra para o lado, perpendicularmente à trajectória. Se a pessoa se deslocar ainda ao longo de um raio, mas em sentido contrário, isto é, do centro para a borda, sente a actuação duma força igual em intensidade mas com sentido oposto: a pessoa é empurrada para o lado indicado pela seta, no interior do círculo. Podemos concluir que, quanto maior for a velocidade com que o sujeito se desloca dentro do carrocel e quanto maior for a velocidade com que o carrocel roda, maior será a intensidade da força que actua no sujeito. Também se observa experimentalmente que, se o carrocel rodar em sentido contrário, a força sobre o sujeito terá sentido inverso. Do mesmo modo, se pusermos um berlinde a oscilar, dentro de uma superfície esférica (por exemplo, uma bola de plástico cortada ao meio), a projecção da sua trajectória num plano horizontal é um segmento de recta. Todavia, se o sistema for colocado num prato dum gira-discos a rodar, a projecção da trajectória do berlinde já não será um segmento de recta tendo uma forma complicada. Tal como o sujeito no carrocel, o berlinde será empurrado para um lado, quando se deslocar num determinado sentido, e empurrado para o lado contrário, quando se deslocar em sentido inverso.
O movimento do pêndulo de Foucault tem a seguinte característica especial: O seu plano de oscilação roda directamente no sentido horário (no hemisfério norte). Se for posto inicialmente a oscilar na direcção norte-sul, por exemplo, o seu plano de oscilação vai rodar no sentido dos ponteiros do relógio.
A rotação do plano de oscilação do pêndulo pode ser atribuída a uma força que, actuando no pêndulo perpendicularmente à sua trajectória, o empurra para a direita quando este se desloca de sul para norte, e o empurra para a esquerda quando este se desloca de norte para sul. Se analisarmos, com atenção, esta força, que modifica a trajectória do pêndulo, verificamos que ela é semelhante à dos exemplos anteriores: é perpendicular à trajectória e inverte o seu sentido quando o corpo onde actua se passa a mover em sentido oposto. Se admitirmos que o pêndulo oscila em cima dum sistema em rotação, isto é, se admitirmos que a Terra roda em torno do seu eixo, encontramos uma explicação para o movimento do pêndulo de Foucault por analogia com os exemplos que foram apresentados: o plano de oscilação do pêndulo de Foucault roda num determinado sentido porque está a oscilar em cima de um sistema que roda em sentido contrário, a Terra; nestas condições, sofre a acção duma força peculiar, perpendicular à trajectória, que inverte o seu sentido quando o sentido do deslocamento é invertido, e que provoca a rotação do plano de oscilação.
Esta explicação intuitiva para o movimento do pêndulo de Foucault levanta uma questão importante: De que tipo a força que falamos para explicar o movimento do pêndulo?
Para explicar o movimento usamos o conceito de interacção ou força, tendo sido necessário introduzir quatro tipos diferentes de força para descrever o comportamento da natureza. Esses quatro tipos de força receberam os seguintes nomes: força nuclear forte, força nuclear fraca, força electromagnética e força gravitacional. A força que encurva a trajectória do pêndulo de Foucault não se enquadra em nenhum destes tipos de força. Será que devemos propor um novo tipo de força para explicar o movimento do pêndulo de Foucault? Não, porque este fenómeno não pode ser compreendido com base no conceito de interacção. Uma interacção é uma acção recíproca entre dois ou mais corpos e não conseguimos atribuir o encurvamento da trajectória do pêndulo à acção de um ou vários corpos sobre este. Dizemos, portanto, que a "força" de que falamos para explicar o movimento do pêndulo é uma "força fictícia", ou "força de inércia". Trata-se de uma simples artimanha cujo uso se deve à impossibilidade de explicar de outra forma o movimento dos corpos em certos referenciais. Estes referenciais, nos quais temos que usar o "truque" das "forças fictícias" para explicar o movimento dos corpos, chamam-se referenciais não inerciais. Um referencial em rotação é não inercial. Pelo contrário, os referenciais onde isto não é necessário, isto é, onde possível explicar o movimento dos corpos com base no conceito de interacção, denominam-se referenciais inerciais. O pêndulo de Foucault mostra que a Terra é um referencial não inercial. Pelo contrário, usando o Sol e as outras estrelas como referencial, não necessitamos de recorrer a quaisquer forças fictícias. Para um hipotético observador no Sol é a Terra que roda, em vez do plano de oscilação do pêndulo. De facto, o Sol constitui um referencial inercial para o estudo de um número maior de fenómenos do que a Terra. A rotação lenta do pêndulo de Foucault constitui uma prova inequívoca que a Terra gira em torno do seu eixo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sociedade Civil
Sociedade Civil : Físicos - A Física pode ser divertida... é uma ciência focada no estudo de fenómenos naturais, com base em teorias, atravé...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
2 comentários:
Em toda a história da ciência há uma única verdadeira revolução do Conhecimento, aquela que substituiu o modelo de Ptolomeu pelo de Newton. Aquela que substituiu o «modelo do universo de acordo com os resultados da observação tal como os percebemos» por algo mais elaborado.
Não foi fácil, como este texto mostra, nem rápido - quase vinte séculos foram necessários para que o empirismo primário deste caso fosse vencido definitivamente
Einstein, contrariamente ao se afirma com frequência, não revolucionou o edifício da ciência - nenhuma equação foi tornada obsoleta pelas suas teorias, apenas limites à sua precisão foram introduzidos. Pelo contrário, ele «salvou» o edficio construído, lançando pontes entre partes dele que ameaçavam conflito. Foi revolucionário a nível de conceitos mas não perturbou o edifício formal existente.
a minha Teoria do Desvanecimento é a segunda revolução contra o empirismo primário - ela mostra, à saciedade, que o universo expande em relação a nós, é verdade, mas porque a matéria desvanece - não são as distâncias que aumentam, é a unidade de medida que diminui.
Quantos séculos serão agora necessários para esta segunda revolução? Qual será o «Pêndulo de Foucault» desta revolução?
http://math.ucr.edu/home/baez/crackpot.html
À saciedade!
Enviar um comentário