domingo, 7 de setembro de 2008

No rescaldo dos Jogos Olímpicos de Pequim


Nova crónica , esta sobre Jogos Olímpicos, do nosso colaborador Rui Baptista:

“Só há uma maneira de entender o fenómeno desportivo: na perspectiva das estruturas sociais. O que há de característico e fundamental, no desporto,é, justamente, o que define e caracteriza a sociedade em que ele se realiza” (José Esteves)

A exemplo dos Jogos Olímpicos de Berlim, que antecederam a II Grande Guerra (1939-1945) e “em que o desporto forneceu um palco para a estética nazi e foi utilizado como veículo de propaganda pelo regime hitleriano como nunca antes acontecera” (Wikipédia), os recentes Jogos Olímpicos de Pequim também foram politizados ad nauseam com um aparato estético jamais visto (aliás de discutível gosto). Curiosamente, por razões aparentadas estas duas edições foram ameaçadas de boicote.

Em Berlim, a Alemanha hitleriana – embora humilhada pelo ouro ganho pelo negro americano Jesse Owens - 100 e 200 metros, salto em comprimento e estafeta de 4X100 metros - alcançou um total de 89 medalhas olímpicas contra 56 dos EUA (Portugal quedou-se por uma medalha de bronze no Hipismo). Em Pequim, a supremacia chinesa sobre os EUA fez-se sentir pela obtenção de 51 medalhas de ouro contra 36, tendo Portugal, através de Nelson Évora, alcançado a medalha maior no triplo salto e, através de Vanessa Fernandes, a de prata no triatlo. Neste pequeno rectângulo, isto teve como resultado que, depois das duas subidas ao pódio, se passasse, do dia para a noite, das lágrimas de má sorte à felicidade mais esfusiante.

Mas, porque o desporto de alto rendimento exige do atleta “ser sempre o melhor e permanecer superior aos demais” os atletas soviéticos, candidatos aos Jogos Olímpicos, eram chamados ao serviço militar onde, em vez de manusearem armas e frequentarem carreiras de tiro, treinavam os respectivos desportos até à exaustão. Por seu turno, os melhores atletas universitários americanos, subalternizando as aulas, iam para os estádios dos respectivos campus com a mesma finalidade, embora sem a opressora tutela estatal. Para acabar com a trapaça de um falso amadorismo, o espanhol Juan Antonio Samaranch, então presidente do Comité Olímpico Internacional, a partir dos Jogos de Barcelona (1992), passou a admitir, sem uma cortina a disfarçar a realidade, nestas competições, atletas que auferem das práticas desportivas e contratos com agências comerciais verdadeiras fortunas. Como diria Eça, sem o manto diáfano da fantasia, abriram-se, desta forma, as portas a um profissionalismo elitista, passando este organismo a funcionar como uma empresa multinacional.

É natural que os EUA e a China se tenham empenhado em alcançar medalhas por o prestígio das grandes potências se jogar hoje em vários tabuleiros: no desenvolvimento socioeconómico, no poderio militar, na vida cultural e científica, etc. Nesse sentido, investem-se rios de dinheiro na preparação dos atletas, por vezes, sem qualquer respeito pela sua dignidade moral ou pela defesa sua integridade física e psíquica, iniciando-se a sua prática em idades cada vez mais jovens. Para além das ginastas chinesas actuais, haja em vista o caso de ginastas da antiga “cortina de ferro”, como a romena Nadia Comanneci que, nos Jogos de Montreal (1976), obteve a medalha de ouro aos 14 anos, tendo sido retardado o seu crescimento físico em favor de uma melhor performance. Esta forma de trabalho infantil forçado deveria sentar-se no banco dos réus por transformar o atleta num cyborg, ao serviço cego de uma bandeira ou de uma ideologia política.

Conta a lenda que Pigmalião se perdeu de amores por Galateia (estátua de rara beleza por si esculpida ), em tão grande e sofrida paixão que Vénus, condoída, concedeu à estátua o sopro de vida. Émulo seu, o português José Esteves cinzelou, com o bater do coração e o escopo da alma, a grande paixão da sua vida: as práticas corporais e a sua docência em moldes éticos de desportivismo, da escola ao clube. A uma desumanizante máquina de bater recordes contrapôs José Esteves, figura impoluta de professor de Educação Física, doutorado honoris causa pela Faculdade de Motricidade Humana e autor do best-sellerO Desporto e As Estruturas Sociais” , a utopia de não trocar a iniciação de milhares de crianças das nossas escolas primárias por medalhas em competições internacionais. E porque os Jogos Olímpicos são, hoje, verdadeiros campeonatos mundiais de diversas modalidades, a um simples mortal os deuses do Olimpo jamais poderiam perdoar tanto descaro e desafio. Entretanto, as práticas corporais vivem hoje, injustamente, estigmatizadas como fábrica de montagem de hercúleos mentecaptos, parada de estupendas estampas físicas e, senão mesmo, campo de indesejável imoralidade. A propósito, recordemos a atitude de Ramalho Ortigão quando desancou Vaz Preto – numa época em que a tez pálida e a nediez das ancas eram prova da beleza feminina – na crítica que este fez, na Câmara dos Pares do Reino, à criação da ginástica nas escolas femininas…por considerar esta prática imoral. Fazia-se este par do reino, desta forma puritana, par de um obscurantismo ferozmente combatido em “As Farpas”.

Em nosso tempo, numa ausência de “Ciência com Consciência” (sugestivo título de um livro de Edgar Morin), a farmacologia, através de substâncias dopantes, entrou nos resultados das grandes competições desportivas, na obtenção das melhores marcas do atletismo olímpico e mundial, especificamente através dos anabolizantes que potenciam um crescimento muscular sem precedentes nos anais desportivos, embora prejudiciais à saúde dos atletas. Talvez o exemplo de maior escândalo tenha sido a retirada pelo Comité Olímpico aos EUA das medalhas de ouro e bronze conquistadas nos Jogos de Sydney (2000), nas estafetas de 4x400 e 4x100, por a velocista Marion Jones ter confessado publicamente o recurso ao doping antes e depois desta competição.

Os caminhos do desporto não podem continuar presos de uma maleita comportamental necessitada, desde o verdor dos anos, da acção frenadora do ambiente familiar, de uma educação integral, da sã vivência do fenómeno competitivo, do exemplo de educadores, treinadores e companheiros, em resumo, do meio envolvente. O genoma do indivíduo não age isolado: imerge e emerge do caldo social.

2 comentários:

Filipe Alexandre disse...

"especificamente através dos anabolizantes" e (para além de outros métodos) no podium dos métodos dopantes em esforços predominantemente aeróbios a famosíssima EPO (Eritropoietina) celebrizada recentemente pelos escândalos no Tour.

É realmente preocupante a imagem, a "montra" que se tornou o desporto de alta competição para a população: FAÇA MAIS, MELHOR, EM MENOS TEMPO!

Rui Baptista disse...

Caro Filipe:

Abordei pela rama a questão do doping, redimindo-me, agora, da injustiça em me referir, tão-só, aos competidores do atletismo, com omissão de outros desportistas que deles fazem uso em dose tanto ou mais industriais industriais, v.g., halerofilistas,nadores e...ciclistas.

Embora não competindo nos Jogos Olímpicos, uma outra referência se impõe: a dos culturista (ou seja, atletas que utilizam pesos e halteres par competirem em concursos de indivíduos com musculares massas descomunais) que se servem, para além de esteróides, da hormona de crescimento e diuréticos que, a breve ou médio trecho, conduzem à morte. O efeito nefastos dos esteróides trazem diversas complicações, como sejam, impotência, complicações cardiovasculares, tumores hepáticos, agressividade, etc., sem preocupação de as ordenar em função crescente ou decrescente da sua periculosidade.

Eu sei bem do que falo por ter vivido (e continuar a viver, não confundir sobreviver) nesse ambiente, através da prática do culturismo desde os meus 18 anos de idade até aos dias de hoje em que conto 77 anos de idade.

Mas nunca ingeri qualquer "droga" (no verdadeiro sentido da palavra),promotora de crescimento muscular.

Anos atrás vi um impressionante filme com o sugestivo título "Os cavalos também se abatem", com a Jane Fonda como protagonista. Em traços largos, o enredo respeitava um concurso de dança que premeava o par que se aguentasse mais tempo.

"Mutatis mutandi", os atletas de alta competição também se abatem. Aliás, drogas para melhorar a "performance" desportiva já eram utilizadas nos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga, e muitas drogas do desporto moderno tiveram a sua génese nas corridas de cavalo modernas. Fizeram-se em-se experiências com cobaias hípicas que se transferiram para para o homem, quando o homem, treinadores, médicos desportivos, massagistas , se tansforma em lobo do próprio homem. Mas isto pode ser mote para comentários bem mais alargados. O seu comentárioteve o mérito de chamar a atenção de um problema de Saúde Pública.

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