sexta-feira, 15 de maio de 2020

Máscaras, pessoas e personagens

Na Antiguidade, entre os Gregos e os Romanos, as máscaras eram utilizadas no teatro e serviam para caracterizar a personagem que ali se queria representar. Como os papéis eram desempenhados apenas por homens, as máscaras denunciavam também o tipo de personagem, masculino ou feminino e era, ainda, através da mudança de máscara que o mesmo actor conseguia representar duas ou mais personagens numa mesma peça. 

Havia a máscara do velho e a do jovem enamorado; distinguia-se a máscara da comédia e a máscara da tragédia. Assim, a assistência sabia, pela máscara, em latim persona, qual o tipo de peça teatral a que ia assistir e que tipo de personagem era aquela que aparecia. A máscara levava, portanto, à primeira reacção da assistência, ela denunciava uma característica, escondia o actor que estava debaixo dela e apresentava uma personagem com características distintas dele. Debaixo da persona, o indivíduo tornava-se outro; dizia-se personam tenere para significar “desempenhar um papel”, a persona era o fingimento, o disfarce. A palavra persona designava o carácter do actor que ali desempenhava um papel. Passou, assim, também ao sentido de “individualidade”, ao significado presente no vocábulo português daí derivado “pessoa” e “personalidade”. 

Diz-se que Quinto Róscio, um famoso actor cómico do século I a.C. foi o primeiro, em Roma, a usar máscara para desse modo esconder o seu estrabismo.

Fedro, escritor romano, tem uma fábula sobre a raposa e a máscara (Vulpes ad personam tragicam) em que nos conta a reacção da raposa quando encontrou uma máscara de tragédia. Observando-a atentamente, e admirando a sua beleza, terá exclamado: “O quanta species cerebrum non habet!”, que bela aparência, mas não tem cérebro. A máscara é apenas o exterior, pode ter grande beleza, mas falta-lhe o mais importante, aquilo que fará dela um humano, uma pessoa. Não interessa, pois, a glória feita de aparências...

É através dessa característica específica que persona dá em português palavras como personalizar, atribuir características próprias, específicas de uma determinada pessoa, e da pessoa que tem características bem vincadas diz-se que tem personalidade, pois possui ideias muito pessoais; quando, em literatura, atribuímos a uma coisa ou a um ser irracional características próprias de pessoas, de seres humanos, estamos a construir uma personificação, a personificar e, no mundo da ficção, temos personagens, homens ou mulheres, seres com características próprias que se assemelham a pessoas do mundo real.

Hoje somos todos personagens, com as nossas personas, com a máscara que disfarça e protege nas suas diferentes aplicações. 

Vemos, portanto, que o vocábulo perdeu em português aquele sentido que tinha no teatro antigo.

Para designar o que oculta, o que esconde a verdadeira pessoa, o vocábulo português “máscara” veio através do italiano maschera (que, por sua vez, terá vindo do latim medieval “masca” ou, talvez, do árabe). 

Sempre, oportunamente, atenta aos temas da actualidade, é de máscaras que nos fala a última crónica semanal de Pascale Seys (aqui), uma reflexão que se ouve sempre com agrado, pelas muitas e variadas relações que estabelece.

Aqui se apresenta a sua tradução na totalidade: 

“Masques et bergamasques 1
"Em 1751, Voltaire apoderou-se de uma lenda que ampliou de forma fenomenal para fins políticos. No capítulo XXV do seu livro “História do século de Luís XIV”, o filósofo faz referência a um misterioso prisioneiro clandestino que o poder disse ter morrido por causa da peste. Mas quem é então o prisioneiro desconhecido? É um lacaio ou um homem importante? É o superintendente das finanças Nicolas Fouquet? É d’ Artagnan, é o amante da Rainha? Ou trata-se do irmão clandestino, o gémeo indesejado de Luís XIV, como pretendiam depois de Voltaire, Alexandre Dumas e Marcel Pagnol? Ninguém conhecia a identidade do prisioneiro e o mistério permanece. O homem, parece, gostava de roupa fina e apreciava rendas, e se beneficiava de um tratamento privilegiado no seu cárcere, entre todos os sinais particulares, havia um que vai verdadeiramente alimentar o fogo da sua lenda: o prisioneiro usa uma máscara, uma máscara de ferro. E Voltaire acrescenta que tinham ordem de matar o prisioneiro da máscara de ferro, se ele destapasse o rosto. A existência de uma permissão de matar contra aquele que levanta aquilo que o revela atesta ao mesmo tempo a importância da função da máscara e do valor daquilo que ela oculta." 
"Uma máscara esconde, uma máscara oculta a identidade ou a verdade de um ser ou de uma coisa, o que revela, aliás, a etimologia da palavra “disfarce, fingimento”. Mascarar-se é sair da sua maneira, quer dizer, sair da sua maneira habitual de ser. Trazer uma máscara equivale, pois, a sair da sua verdade, o que se chama também: uma mascarada. Mas as máscaras têm o seu deus: Dioniso, um deus paradoxal, inatingível, cheio de epicleses 2. Não se sabe se é velho ou jovem, se defende os excessos do vinho ou antes a abstinência. Dioniso encarna o espírito do teatro e de um disfarce em relação ao outro, ele é o deus das metamorfoses. Como nós e como as borboletas, Dioniso é inconstante, plural e rico nas suas transformações. Ele é o deus das máscaras que, debaixo da sua máscara, esconde outras máscaras até ao infinito: é a sua verdade." 
"No Reino Unido, nos corredores de um hospital de Southampton, o artista Banksy realizou uma obra de um metro quadrado, a preto e branco. Representa um menino de fato de macaco que agita, na sua mão, uma boneca com os traços de uma super-heroina: é uma enfermeira de máscara, vestida com uma capa e um avental. Aos pés do menino, relegados sem consideração, Batman e Superman estão juntos num cesto dos papéis. A mensagem de Banksy é clara: no reino dos heróis mascarados, são as enfermeiras que destronam em heroísmo e em verdade os super-heróis de ficção. O que podemos imaginar, através do olhar da criança que brinca, é que debaixo da máscara da enfermeira, debaixo da sua capa e do seu avental bate um coração que atravessou lutos." 
"E se a máscara esconde a coragem, a fadiga, tal como as lágrimas de quem faz face à morte, então o disfarce pode vestir de verdade uma das mais belas formas de heroísmo que existe: o heroísmo do pudor. Nietzsche não se enganou quanto a isso, ele que enunciava este paradoxo num grande texto, sob o título “Prelúdio de uma filosofia do futuro” onde dizia: “Tudo o que é profundo ama a máscara”."
Notas: 
1 bergamasque: alusão, com certeza, ao poema de Paul Verlaine (poeta francês do século XIX), Clair de Lune, que começa assim: 
Votre âme est un paysage choisi 
Que vont charmant masques et bergamasques 
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.
 2 epiclese: em grego ἐπίκλησις, significava “sobrenome”, mas também “invocação” de uma ou mais divindades.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Uma excelente abordagem em tempo de máscaras, para evitar perder a vida, de que ressalta o génio de Voltaire, incansável e arguto observador, mas não menos brilhante pensador, qual caçador, e não presa, de tornados e de furacões sociais.
As máscaras, os papéis, os palcos, os bastidores, temas fascinantes, para a psicologia e a sociologia e tudo o mais que envolve conduta humana, por acção ou omissão, mas particularmente importantes para o conhecimento de si mesmo e dos outros, daquilo que é o poder da imaginação, a aptidão do cérebro para trabalhar, ainda que à revelia do seu "dono, mas pouco", de produzir imagens, ideias, representações, palavras, falas, músicas, medos, ficções, movimentos... correlações, explicações, teorias...cenários... e cujo interesse artístico, estético, filosófico, social, clínico, político, comercial... tem uma dimensão astronómica.
Saberemos algo que não seja imaginado, que não seja representado? O que não somos capazes de imaginar ou de representar, estará acessível ao conhecimento? O nosso acesso à realidade é intermediado por máscaras, umas vezes de ferro, ou de plástico...e outras vezes de gestos, de palavras, de subentendidos, de equívocos...
A maior parte de cada um de nós, boa ou má, é máscara da humanidade que viveu e morreu.
E não há como tirar a máscara, porque debaixo de uma está outra.
Há é como colocar a máscara para salvar os outros.

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...