Com a devida vénia, eis a crónica mais recente do P. Anselmo Borges, professor de Filosofia, no DN:
Têm outro horizonte de compreensão e, por isso, podem
ajudar-nos no discernimento da presente hecatombe. Ambos muito conhecidos. Um é
astrofísico, o outro é filósofo. Do alto do seu saber e da sabedoria que a
idade, 88 e 98 anos, respectivamente, também dá, vale a pena ouvi-los. Foi o
que fiz, pela intermediação de entrevistas que deram, a partir do seu
confinamento.
1. O astrofísico é Hubert Reeves, que conversou com Luciana Leiderfarb para
o Expresso. E que disse?
Constatou o facto: em casa, confinados, por causa de um vírus invisível. “A
única coisa que não é clara para mim é se a poluição e a degradação do planeta
a que estamos a assistir e a que chamamos a ‘sexta extinção’ estão ou não
relacionadas com este vírus.” Embora não seja especialista na matéria, pensa
que “está perto da verdade: a pandemia não foi causada directamente pela sexta
extinção, mas indirectamente, facilitando as condições para o coronavírus se
expandir tão depressa.”
De qualquer modo, somos muito maus a fazer antecipações: “Ninguém sabe do
futuro. É a imprevisibilidade da realidade que quero destacar. A realidade é
difícil de prever, e somos muito maus a fazê-lo.” Mas temos hoje excesso de
poder que nem sempre queremos ou somos capazes de controlar, e aí está o
perigo: “Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra
nuclear ou da sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso
autocontrolo.”
A Natureza foi construindo estruturas. “E uma das suas obras-primas é a
espécie humana. Somos provavelmente o nível mais alto de complexidade que
conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo.” A Humanidade trouxe ao
mundo a cultura — Mozart, Van Gogh, um tipo de criatividade que desapareceria
completamente se o ser humano fosse extinto —, a ciência — nenhuma outra
espécie animal teria chegado à teoria da relatividade de Einstein —, e a
compaixão — temos pulsões destrutivas, mas também temos compaixão, sofremos
quando vemos pessoas a sofrer. “A Humanidade merece ser preservada.” Adverte,
porém, que o ser humano é tremendamente poderoso, o mais poderoso, mas também o
mais complicado e tanto somos capazes do melhor como do pior: tanto podemos
fazer uma sinfonia de Beethoven ou construir a teoria da relatividade como uma
bomba atómica ou a II Guerra Mundial. “Hoje sabe-se que a probabilidade de a
actividade humana ser a principal causa do aquecimento global é de 99%” (Aqui,
acrescento eu: por causa do confinamento, é um facto que, com a diminuição da
intervenção antropogénica, se constata uma forte melhoria do meio ambiente).
Também “sabemos que, se não nos adaptarmos ao ecossistema, em vez de
continuarmos a forçá-lo a adaptar-se a nós, vamos desaparecer.” A nossa
presença na Terra está ameaçada. Portanto, “a nossa responsabilidade agora é
não destruirmos de vez a complexidade do planeta. Garantir que com o nosso
comportamento não eliminamos a Humanidade.”
O aparecimento da vida e, concretamente do ser humano, na gigantesca
história da evolução, continua envolto em mistério. Quais as condições
presentes desde o início para que se desse esta aparição? “Vivemos ainda num
grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o início e agora e sem
fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um depois.” Uma questão
muito debatida entre os cientistas, mas “aqueles que possuem uma crença
religiosa não têm qualquer problema em relação a isso, porque a resposta é
Deus.” Perguntado sobre se acredita em Deus, responde: “Tenho muitas perguntas
sobre Deus. Mas não sei o que Deus é. Para mim, é um assunto importante, mas
relativamente ao qual não cheguei a nenhuma certeza.” Aqui, digo eu: também o
crente não tem certeza, tem fé, com razões, e é razoável acreditar. Sobre se é
possível conciliar ciência e religião, Reeves reconhece que “são duas
actividades diferentes da mente”, que tem dois domínios, sendo um o
conhecimento — “aprender, saber como as coisas são, como funciona o mundo” — e
o outro o do valor. Dá um exemplo: a ciência diz como fazer a bomba atómica,
mas não pode dizer se devemos ou não fazê-la, pois isso já é do domínio do
valor, no qual se inclui a filosofia e a religião.” Enquanto a ciência
pergunta: ‘o que é, como funciona?’, a religião questiona: ‘é bom ou mau?’.
Este é um assunto na ordem do dia, na medida em que, cada vez mais se coloca a
questão da aplicabilidade da ciência e das suas fronteiras éticas.”
À pergunta da jornalista: “O que é que ainda o surpreende? O que é que o
emociona?”, responde: “A amizade, o amor, a música. Ouço música o dia todo. Não
há nada mais elevado. As salas de concerto são as minhas igrejas. É o lugar
onde sinto que existe algo maior do que eu.”
Envolvido pelo espanto, pelo maravilhamento perante o Universo e a sua
história, sabe que a sua vida roça “o seu limite perigoso” e, por isso, não se
deita antes da uma ou duas da madrugada. “Tenho esta ideia de, até onde a saúde
mo permitir, não querer desperdiçar o tempo a dormir.”
2. Edgar Morin é filósofo e sociólogo e continua a surpreender-me, agora
confinado, com mais uma entrevista concedida ao jornalista Francis Lecompte
para o sítio Cnrs. Le journal, que
colocou como título para a conversa que teve: “Edgar Morin: Temos de viver com
a incerteza”.
Uma mensagem principal desta pandemia é que derrubou a nossa sensação de
omnipotência e pôs em causa a relação com a ciência, que se pretendia
omnisciente. Diz Edgar Morin: “O que me impressiona é que grande parte do
público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações
irrefutáveis.” Afinal, observámos que os cientistas convocados pelo poder
político “defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes,
contraditórios, e isso nas medidas a ser adoptadas, nos possíveis novos
remédios para responder à emergência, na validade deste ou daquele medicamento,
na duração dos ensaios clínicos a realizar.” Parece que mesmo entre os
cientistas poucos leram, por exemplo, Karl Popper, que estabeleceu que uma
teoria só é científica se for refutável, portanto, o critério de cientificidade
de uma teoria é a sua refutabilidade, ou Gaston Bachelard, ao colocar o
problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, ao estabelecer, com a
sua teoria dos paradigmas, que “a história das ciências é um processo
descontínuo”.
“O facto de hoje estarmos a falar do
coronavírus era completamente desconhecido há um ano”, afirma Reeves. E Edgar
Morin confirma: nesta crise do coronavírus, o impressionante é que “não temos
ainda nenhuma certeza sobre a própria origem desse vírus nem sobre as suas
diferentes formas, as populações que ataca, os seus graus de nocividade. Nós
estamos igualmente a passar por uma grande incerteza sobre todas as
consequências da epidemia em todos os domínios, sociais, económicas, etc.”.
Aqui, acrescento eu: A China portou-se da pior maneira ao não alertar
atempadamente o mundo e continua a manifestar má consciência ao impedir estudos
e investigações internacionais independentes sobre precisamente a origem da
pandemia.
O paradoxo é este: por um lado, estamos todos à espera de que a ciência,
através de medicamentos, através de uma vacina, nos liberte do pesadelo; por
outro, não sabemos e temos de conviver com a incerteza. Edgar Morin espera que
a presente crise sirva para “revelar como a ciência é uma coisa mais complexa
do que se quer crer. É uma realidade humana que, como a democracia, assenta
sobre os debates de ideias, embora os seus modos de verificação sejam mais
rigorosos.” Temos de aceitar as incertezas e viver com elas, “quando a nossa
civilização nos inculcou a necessidade de certezas cada vez mais numerosas
sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, por vezes frívolas. A chegada deste
vírus deve lembrar-nos que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da
condição humana. Nenhum seguro social que possamos fazer será capaz de nos
garantir que não vamos adoecer ou que seremos felizes. Tentamos cercar-nos com
o máximo de certezas, mas viver é navegar num mar de incertezas, através de
ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.”
O jornalista: “É a sua própria regra de vida?” Edgar Morin: “É sobretudo o
resultado da minha experiência. Assisti a tantos e tantos acontecimentos
imprevistos na minha vida que isso faz parte da minha maneira de ser. Não vivo
na angústia permanente, mas estou à espera de que surjam acontecimentos mais ou
menos catastróficos. Não digo que previ a epidemia actual, mas digo, por
exemplo, que há vários anos que, atendendo à degradação da nossa biosfera, nos
devíamos preparar para catástrofes. Isso faz parte da minha filosofia: ‘Espera
o inesperado’.” Aliás, desde que na década de 60 li Martin Heidegger,
apercebi-me de que vivemos na era planetária e a globalização é um processo que
poderia trazer benefícios e também danos. “Também observo que o desencadeamento
descontrolado do desenvolvimento tecno-económico, animado por uma sede
ilimitada de lucro e favorecido por uma política neoliberal generalizada, se
tornou prejudicial e provoca crises de todos os tipos. A partir desse momento,
estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar as
convulsões.”
Edgar Morin confessa satisfação porque, desde o seu primeiro discurso sobre a crise, o Presidente Macron até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento. Significa que caminhamos para uma mudança económica? Resposta: “O nosso sistema baseado na competitividade e na rentabilidade tem muitas vezes graves consequências nas condições de trabalho. A prática massiva do teletrabalho por causa do confinamento das empresas pode contribuir para mudar o funcionamento das empresas ainda muito hierárquicas ou autoritárias. A crise actual pode acelerar também o regresso à produção local e o abandono de toda a indústria do descartável, dando assim trabalho aos artesãos e ao comércio de proximidade.”
Edgar Morin confessa satisfação porque, desde o seu primeiro discurso sobre a crise, o Presidente Macron até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento. Significa que caminhamos para uma mudança económica? Resposta: “O nosso sistema baseado na competitividade e na rentabilidade tem muitas vezes graves consequências nas condições de trabalho. A prática massiva do teletrabalho por causa do confinamento das empresas pode contribuir para mudar o funcionamento das empresas ainda muito hierárquicas ou autoritárias. A crise actual pode acelerar também o regresso à produção local e o abandono de toda a indústria do descartável, dando assim trabalho aos artesãos e ao comércio de proximidade.”
E vamos passar também para uma mudança política, na qual “as relações entre
o indivíduo e o colectivo se transformam?”
Resposta: “O interesse individual dominava tudo, mas agora as
solidariedades estão a despertar”, e dá o exemplo do mundo hospitalar.
Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou
planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países,
confrontados com os mesmos problemas no que se refere à degradação do meio
ambiente ou ao cinismo económico. Mas, hoje, da Nigéria à Nova Zelândia,
encontramo-nos todos confinados e deveríamos tomar consciência de que os nossos
destinos estão ligados, queiramos ou não. Seria, portanto, o momento para
refrescar o nosso humanismo, pois, enquanto não virmos a Humanidade como uma
comunidade de destino, não poderemos pressionar os governos a agir num sentido
inovador.”
O jornalista: E agora, passando longos períodos de confinamento, o que é
que a Filosofia nos poderia ensinar?
Edgar Morin: “É verdade que para muitos de nós que vivemos uma grande parte
da nossa vida fora de casa este confinamento brusco pode representar um
incómodo terrível. Mas penso que pode ser uma ocasião para reflectir, perguntar
o que, na nossa vida, é frívolo ou inútil. Não digo que a sabedoria é
permanecer toda a vida num quarto, mas, para dar um exemplo: pensando apenas no
nosso modo de consumo e de alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos
de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos
desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro
dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no
nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem
a qualidade da vida.”
3. Fica uma pergunta imensa, mas essencial: Quando terminar a hecatombe,
teremos ao menos aprendido onde está o essencial? Ou voltaremos à vertigem do
ter, esquecendo o ser?
Anselmo Borges
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