sábado, 31 de dezembro de 2016

Recorde-se, nesta passagem de ano, a noção kantiana de "educação"

Na passagem de um ano que foi, a diversos títulos, sombrio para um outro que se deseja mais luminoso, deixo algumas preciosas palavras de Immanuel Kant (1724 -1804) sobre a educação. 

Tal como outros filósofos que o antecederam, Kant percebeu bem que a educação é a única forma que temos de nos tornarmos e permanecermos humanos. Quando deixa de ser orientada por essa finalidade última que é o pensamento esclarecido, a barbárie rapidamente substitui a humanidade.

Talvez estejamos, mais uma vez, a falhar na resolução desse eterno problema que é a educação, "o maior e mais difícil que pode ser confiado ao homem"... Só assim se compreende o avanço das muitos nuvens cinzentas e algumas bem negras que pairam sobre todos nós.

"O homem é a única criatura que tem de ser educada (...)

Educar é uma arte cujo exercício tem de ser aperfeiçoado através de muitas gerações. Cumulada com os conhecimentos dos que já passaram, cada geração pode sempre levar a cabo, cada vez mais, uma educação que desenvolva proporcionadamente e de modo conforme ao seu fim todas as disposições naturais do homem, e assim conduzir todo o género humano à sua destinação.

O homem deve desenvolver primeiro as suas disposições para o bem; a Providência não as colocou já prontas nele; são meras disposições e sem a nota da moralidade. Tornar-se melhor, cultivar-se e, quando se é mau, produzir em si a moralidade, isso é tarefa do homem.

Mas quando se reflecte maduramente sobre isso, descobre-se que tal é muito difícil. 

Daí que a educação seja o maior e mais difícil problema que pode ser confiado ao homem.

Pois o saber depende da educação, e a educação depende, por seu turno, do saber.

Daí que a educação também só possa avançar a pouco e pouco, e é apenas pelo facto de uma geração transmitir as suas experiências e conhecimentos à seguinte, e esta acrescentar algo por sua vez e passá-lo deste modo à seguinte, que pode emergir um conceito correcto de como educar (...).

O homem pode ser ou meramente adestrado, amestrado, instruído mecanicamente, ou ser realmente esclarecido. Adestra-se cães, cavalos, e também se podem adestrar homens."

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Referência bibliográfica: Kant, I. (1803/2012). Sobre a pedagogia. Lisboa: Edições 70.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ANO NOVO, CONHECIMENTO NOVO

Texto primeiramente publicado na imprensa regional.


A investigação científica e tecnológica produz conhecimento novo todos os anos. Todas as áreas do conhecimento científico avançam, umas mais outras menos, mas todas progridem no sentido de nos apresentarem uma melhor compreensão do Universo. Alguns avanços são, contudo, mais mediáticos, pois colocam em causa, ou melhoram, as teorias até aí estabelecidas e aceites pela comunidade científica internacional.

Neste contexto, no novo ano de 2017 poderemos testemunhar algumas descobertas científicas que serão notícia nos órgãos de comunicação social. E quais serão elas? As revistas Science e Nature todos os anos exercitam previsões de quais serão. Apresento de seguida algumas delas.

Muito da evolução científica das últimas décadas deve-se ao papel desempenhado pelo uso de computadores cada vez mais potentes, que permitem cálculos e tratamentos de dados colossais antes impossíveis. Assim, as investigações sobre o desenvolvimento de computadores quânticos, em que os chips são “substituídos” por átomos, aumentado consideravelmente a capacidade de cálculo, continuarão a ser notícia durante este ano que agora começa.

Em Abril próximo, astrónomos usarão nove telescópios localizados em vários locais do globo terrestre para formar um grande observatório planetário. Um dos objectivos será o de tentar conseguir obter a primeira “fotografia” da região que limita exteriormente um buraco negro. O escolhido é um buraco negro supermassivo situado no centro da Via Láctea.

A teoria da relatividade de Einstein continuará a ser testada e confrontada com novos dados experimentais, aliás como todas as teorias o são, eventualmente provenientes dos observatórios LIGO e VIGO, situados respectivamente nos Estados Unidos e em Itália, centrados na detecção de novas ondas gravitacionais.
A imunooncologia, uma nova estratégia na luta contra o cancro, que tem vindo a ser desenvolvida nos últimos três anos, na qual as células do nosso sistema imunitário são “instruídas” para detectar e destruir as células cancerosas, é uma área da biomedicina que estará na mira do nosso maior interesse.

O avanço nas técnicas de sequenciação de genomas, que as torna cada vez mais rápidas e baratas, permitirá que em 2017 se publiquem muitos estudos sobre os genomas de seres vivos ainda não sequenciados. Com particular destaque estará a compreensão que daí advirá para a interacção entre os microrganismos que vivem no nosso corpo (o nosso microbioma) e a sua influência sobre o nosso estado de saúde. Entre outros, o Projecto do Microbioma Humano, a decorrer nos Estados Unidos, trará muitas novidades nos próximos meses.

Termino esta breve e obviamente incompleta lista (imposta pela limitação de espaço para esta crónica) sublinhado as grandes expectativas que existem com o desenvolvimento e aplicação de técnicas de edição do genoma, principalmente com a designada genericamente por CRISPR. A possibilidade de corrigir “letra a letra” genes que possam estar envolvidos em doenças, para além de levantar várias questões éticas, potencia uma nova revolução na investigação biomédica e tratamento de doenças.

Que 2017 nos traga o melhor da Humanidade!

António Piedade

CIÊNCIA E DEUS

Minhas declarações ao jornal Observador para uma peça sobre a antimatéria: aqui.

EVENTO CIENTÍFICO DO ANO E MEU DESEJO PARA 2017 NO JORNAL I


Acontecimento científico do ano

O evento científico do ano teve a sua origem há 1,3 mil milhões de anos com o choque de dois enormes buracos negros. Foi a descoberta das ondas gravitacionais, propagação de abalos no espaço-tempo que tinha sido prevista por Einstein há cem anos. Não é apenas mais um sucesso de Einstein, é um triunfo de tecnologia muito delicada e, principalmente, a abertura de uma nova janela para o cosmos. Até agora só víamos o céu, agora passámos também a “ouvi-lo”. Vamos saber mais sobre os buracos negros e sobre o Big Bang.

Desejo para 2017

Que a geração brilhante de investigadores portugueses que formámos nas últimas duas décadas encontre emprego científico em Portugal, designadamente nas universidades e politécnicos (que precisam de urgente renovação), e nas empresas (que precisam de visão e modernização). Temos de dar futuro a essa geração do conhecimento porque o futuro do país passa em, grande medida, pelo futuro deles.

Carlos Fiolhais

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Ciência entre Poesia e Metáforas

Texto que escrevi inicialmente para o projeto Ciência na Imprensa Regional.


Vivemos numa época em que a atividade científica é realizada a uma escala global, com milhares de cientistas em inúmeros grupos de investigação e nas mais diversas áreas. Os resultados destas pesquisas são publicados em revistas científicas internacionais, com linguagem quase hermética resultante do elevado grau de especialização, e, portanto, praticamente inacessíveis aos restantes cidadãos. É neste contexto que nos apercebemos da enorme importância que têm os divulgadores de ciência ao selecionar, desmontar e explicar, de modo compreensível a todos, os resultados da investigação internacional.

Vem esta reflexão a propósito do mais recente livro, “Íris Científica 3”, do divulgador de ciência António Piedade. Este é um livro dividido em duas partes, em que o autor, primeiro, olha para fora, falando-nos das pesquisas mais recentes sobre o espaço, para depois olhar para o que se passa no nosso planeta, abordando a investigação laboratorial. As macro e micro escalas encontram espaço neste livro de cerca de 140 páginas. São pequenos textos que nos falam dos mais diversos temas científicos, de um modo fascinado e literário, quase poético. Aliás, não poderia começar de melhor maneira: “Olho o conhecimento com um deslumbramento novo!”. Ou ainda, mais à frente, antes de falar da gama do espetro da luz solar que os nossos olhos são incapazes de captar, escreve: “Abraço o arco-íris com o olhar visível”. Um último exemplo, já no final do livro, após explicar a cor das folhas das árvores nas várias estações, recorrendo à fisiologia das plantas, conclui: “Disfrutemos a beleza da paleta outonal, pois não há outra igual!”.

Este é ainda um livro de desafios, quando, por exemplo, começando por falar da Terra incita-nos a calcular a massa da via láctea. Ou qual a quantidade de cálcio ou sódio existe no nosso corpo, ou ainda o que está a acontecer à mancha vermelha de Júpiter?

Ao mesmo tempo que o autor divulga a investigação realizada, aproveita também para partilhar algumas reflexões, como no caso em que, ao falar da cooperação entre as primeiras células que foi necessária para o desenvolvimento da vida na Terra e ao falar da cooperação entre astrónomos de vários países que permite observações de campos recônditos do cosmos, constata quão importante é a cooperação para a vida assim como para as nossas atividades quotidianas: cooperando alcançamos “aquilo que sozinhos não conseguimos, ou levamos mais tempo a atingir”.

Outro aspeto relevante, e que pode passar despercebido à maioria dos leitores, é como a situação social está a afetar a nossa vida, o que se reflete na nossa maneira de pensar e por conseguinte de comunicar. Como vários investigadores têm notado, o contexto bélico do século XX influenciou a criação de metáforas em bacteriologia e imunologia, com bactérias que atacam, um sistema imunológico que se defende dos invasores e um interior do corpo humano que é um campo de batalha. No presente, António Piedade fala da genética numa linguagem diferente, em que menciona “diálogo” entre cromossomas, interação com um “governo bioquímico que estamos longe de entender bem”, “confrontação democrática”, “tendências”, ou “economia genética”. Sinais dos tempos em que a preocupação com a guerra deu lugar à preocupação com a situação política e económica, criando uma linguagem de pensamento nova.

Os textos de “Íris Científica 3” resultam de crónicas que tem escrito para o projeto Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva. Este livro vem juntar-se aos outros dois anteriores, formando uma coleção que vale a pena acompanhar e, decerto, ser estudada do ponto de vista académico num futuro próximo. 

PROFESSORES DO SUPERIOR QUE DÃO AULAS SEM RECEBER

Foi ontem noticiado pelo JN que Reitores contratam professores para dar aulas sem receber. A polémica surgida ontem já conta com várias reacções:

- Do Presidente do Conselho de Reitores: Reitores dizem que docentes sem salário é "normal e pontual"


- Da Associação de Bolseiros de Investigação Científica: Regulamentos obrigam bolseiros a assegurar trabalho docente sem vencimento 

Obviamente que é tudo uma questão de intensidade, como diria Pinto da Costa. Se um professor de uma universidade vai a outra dar uma aula de 2 horas pontualmente é natural que possa não ser pago. Ou se um qualquer profissional vai dar uma palestra esporadicamente a alunos de um mestrado ou de um programa doutoral. Mas é completamente inaceitável que bolseiros de investigação sejam forçados por regulamentos internos a darem aulas sem qualquer remuneração adicional, quiçá amaciados com a ideia de estarem fortalecer o CV. Certamente poderão incluir no CV que já têm experiência a trabalhar de graça, se se candidatarem a outro trabalho não remunerado.

Este é mais um sinal de que as instituições de ensino superior não só estão viciadas em bolsas e falsas bolsas, como no trabalho gratuito dos bolseiros.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

VIDEO DE NATAL DO PERIMETER INSTITUTE NO CANADÁ

MEU POSTAL DE NATAL 2016


Venho enviar a já tradicional árvore natalícia do Rómulo, lembrando um excerto  do livro "Cosmos" de Carl Sagan  (1934-1996), que morreu fez agora 20 anos:

"O livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis 
(que ainda se chamam “folhas”) impressas em caracteres de pigmentação escura. 
Dá-se uma vista de olhos e ouve-se a voz de outra pessoa - 
talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos. Através dos milénios, 
o autor está a falar, com clareza e em silêncio, dentro da nossa cabeça,
directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das invenções humanas,
ligando das pessoas, cidadãos de épocas distantes que nunca se chegaram a  conhecer. 
Os livros quebram as cadeias do tempo, provam que os seres humanos são capazes 
de exercer a magia." (Lisboa: Gradiva, 2001, p. 281).


Boas Festas e Feliz 2017 com muitos e bons livros!

Carlos Fiolhais

Recentes petições destinadas a influenciar a composição do currículo escolar

Na passada semana dei conta de duas (ou serão três?) petições relativas à educação escolar.

- Uma petição contra o referencial da educação para a saúde (aqui);
(mas se a educação para a saúde - e sexualidade - não estivesse prevista no currículo, haveria certamente uma petição a seu favor).

Este referencial também gerou uma reacção que já tardava a chegar a Portugal (aqui

- Outra petição a favor de uma disciplina de relaxamento e meditação e, na mesma linha, outra a favor de uma diciplina de educação espiritual (aqui). 
(presumo que o sentido seja o mesmo).

Acontece que estas duas vertentes (ou será apenas uma?) já estão nas escolas que as escolheram como opções, por exemplo, no quadro da "oferta de escola" ou as integraram simplesmente nas suas rotinas. E, ao que sei não são poucas.

O que é que tudo isto nos diz? Diz-nos pelo menos duas coisas igualmente preocupantes.

Uma é que enquanto o currículo especificamente escolar "encolhe" e se reduz a um núcleo fundamental/essencial, estas propostas amontoadas na designação de "educações para..." já não ficam aí contidas, espandem-se e multiplicam-se.

Outra é que todos os "grupos de pressão" que possamos imaginar e também pessoas individuais se acham no direito de influenciar e determinar o currículo escolar e, como a própria expressão indica, à força.

O currículo é remotamente visto em função daquilo que a escola deve ser, em benefício dos seus destinatários directos, os alunos; o que dele se pretende, na verdade, é que dê visibilidade a opções, a interesses particulares. 

Nada disto é novo, na verdade, o que será novo são os meios.


PREVISÕES PARA A CIÊNCIA

Meu artigo sobre previsões  no Público de hoje:

Que o futuro é uma caixa de surpresas estamos fartos de saber. Mesmo na ciência, que nos confere algum poder de previsão, as surpresas surgem a toda a hora. Eis, apesar de tudo, algumas previsões para a ciência em 2017.


O CERN, onde em 2012 se encontrou a partícula de Higgs que completou o conjunto de partículas do “modelo padrão”, continuará em busca de partículas novas previstas por teorias para além desse modelo. Se nada surgir podem ficar em causa planos para a construção de um acelerador maior no próprio ou no Japão ou na China, potência emergente na ciência.
CERN

Do espaço vêm sempre novidades. Em 2016 a maior foi a descoberta das ondas gravitacionais. Espera-se a detecção de mais eventos, fazendo luz sobre os objectos mais intrigantes do cosmos - os buracos negros. Ainda do espaço, se em 2016 foi anunciado um planeta semelhante à Terra à volta da estrela mais próxima do Sol, haverá previsivelmente uma “chuva” de novos exoplanetas com os lançamentos pela NASA da sonda TESS e pela ESA da Cheops. Não se sabe o que vai acontecer à NASA, mas há receios em geral quanto ao modo como Trump vai tratar a ciência (para o clima global e para as energias renováveis ninguém espera boas notícias). Pode, porém, haver surpresas: um seu tweet pode ser o tiro de partida para Marte.

Na biomedicina estão a ocorrer desenvolvimentos não menos espectaculares. Se, em 2000, Clinton e Blair anunciaram a primeira sequenciação completa do genoma humano, Obama lançou em 2015 lançou uma iniciativa de “medicina de precisão”, assente na genética, depois de Cameron ter anunciado, em 2014, um programa de sequenciação de cem mil genomas de pessoas com cancro e doenças raras. Estamos no limiar da medicina personalizada: os tratamentos serão à medida de cada um, conforme o seu perfil genético. Em 2013 com a invenção da técnica CRISPR abriram-se possibilidades extraordinárias no controlo do ADN, que estão a levantar questões éticas. Ainda na biomedicina, os estudos do cérebro avançarão para sabermos mais sobre a inteligência, a memória e a consciência.


E a ciência em Portugal? Houve uma mudança em 2015, mas esperava-se que fosse para mais e melhor. Oxalá seja em 2017.

«Frederico Lourenço, a Bíblia, o elogio da poética e o regresso à cultura»

No último Jornal de Letras, Paulo Mendes Pinto, estudioso de Ciência das Religiões, escreve sobre «Frederico Lourenço, a Bíblia, o elogio da poética e o regresso à cultura»


Tal como no chamado Cântico dos Cânticos, ou nas imensas poesias tradicionalmente atribuídas a Salomão e insertas na Bíblia, alguns cantos da Odisseia continuam a despertar em nós o fascínio que despertam os enigmas que nada de estranho nos apresentam, mas que indizivelmente fogem à compreensão que as palavras, quase sempre imediatas, procuram abarcar.

Nesse distante poema homérico, de mais de 2.500 anos de sentidos e leituras, um aedo é chamado a declamar, tal como sucederia nas comuns noites num palácio em que se reuniriam em torno do lume os grandes, os nobres, os guerreiros e os aventureiros, aqueles que tinham novas para transmitir. O aedo, qual metáfora do poder do seu olhar, é cego. Mas fala, declama. É escutado.

E as “novas” poderiam ser plenamente novas ou não. Os mitos nasciam desse afastamento a um tempo concreto mediante a assunção de uma dimensão primordial, organizadora de uma ordem, de um sistema. Ouvir um aedo a declamar a sua poesia era, quer escutar novidades, num tempo onde o Saber era lento na transmissão, quer voltar a entrar dentro de conhecimentos ancestrais, já sabidos, em nada novos, mas constantemente rememorados e revalidados. Sendo apreendida individualmente, a poesia era uma dimensão social e colectiva.

A poesia era verdadeiramente uma linguagem de códigos, de descoberta. Se a prosa descrevia o linear, os tratados, as contas, os registos, a poesia, com o seu ritmo, com a rima e a entoação, quase sempre acompanhada de música, era o campo do que não podia ser apenas ouvido, mas tinha de ser entendido. A poesia era hermenêutica em potência, era abertura à interpretação, era convite a elaborar e a descobrir.

Não será, obviamente por acaso que muitos Textos Sagrados se encontram nessa forma ritmada que faz entrar o leitor e o ouvinte numa dimensão fora da linguagem normal, num quadro de ritmicidade, numa valoração de ritual, de contacto com uma Verdade fora da compreensão imediata.

É este, em meu entender, o ponto de contacto mais interessante entre traduzir Homero e traduzir a Bíblia. Pouco aqui interessa a qualidade das traduções de Frederico Lourenço, mais que aclamadas, validadas e reconhecidas por gente de cultura e académicos; o que de mais importante o recém premiado com o Prémio Pessoa nos trouxe foi, literalmente, a Bíblia de volta.

Muitos foram, ao longo dos séculos, os medos, os receios e os interditos ligados à tradução da Bíblia. Se o mundo influenciado pela Reforma Protestante democratizou a Bíblia, deixando-a influenciar a sua cultura, desenvolvendo rapidamente a alfabetização, por exemplo, nos meios católicos a Bíblia manteve-se até quase hoje um absoluto desconhecido.

Frederico Lourenço, numa tradução não ligada a confissão cristã alguma, municiado essencialmente da sua capacidade de domínio do grego, começou a fazer com o texto bíblico aquilo que fez tão elegantemente com a Ilíada ou a Odisseia.

E fazer o mesmo com estes textos que num olhar religioso são tão diferentes, é assumir que um aspecto fundamental eles apresentam em comum: seja-se religioso, ou não, a Bíblia é um texto fundante do que somos. Ao retirar o monopólio da tradução e da edição da Bíblia ao mundo religioso, Frederico Lourenço fez regressar a Bíblia à cultura, de onde, afinal, nunca deveria ter saído.

Com o trabalho de Frederico Lourenço, passamos a ter mais que uma nova edição da Bíblia, passamos a ter uma edição descomprometida com uma visão religiosa. Não que para a História da Bíblia toda e qualquer ligação religiosa não seja importante, mas hoje, mais que nunca, urge perceber que ela é um património que não se esgota no campo da crença e das afirmações de fé.

E, num passo mais a seguir, ao ter uma tradução que pega no texto coo produtor de cultura, somos todos nós, leitores, chamados a ler, agora fora dos púlpitos onde se apoia a dogmática e a palavra certa. Regressando com a Bíblia aos textos de Homero, aliás, textos em muito contemporâneos dos bíblicos, e geograficamente não muito distantes no que respeita aos locais de redacção, esta nova tradução realizada pelo classicista da Universidade de Coimbra impele-nos à leitura poética do texto, como que declamada, como eram, de facto, para serem lidos quando foram escritos.

É que a poética abre-nos a porta para o único e o irrepetível; cada leitura é uma vivenciação. A grande tentação de reduzir a capacidade de pensamento e de leitura a uma lógica religiosa encontrava-se na uniformização, na normativização, na nivelação. Por esta razão a Bíblia foi tão pouco tida em conta em grande parte da História do Cristianismo: ler a Bíblia, como qualquer outro texto antigo, fornece ferramentas para as mais profundas problemáticas, ou não fosse isso mesmo que fez com que estes textos perdurassem e se tornasse “clássicos”.

É desta forma livre e liberta que o texto bíblico pode ser redescoberto como centro de cultura. É na sua capacidade de inebriamento, fora das regras religiosas, que a sua Sabedoria surge e se espraia no leitor ou, regressando ao aedo de Homero, no ouvinte, anulando a diferença entre o que escreveu, seja poeta, ou não, e o ouvinte, aquele que ouve, trauteia ou repete.

Paulo Mendes Pinto


ANSELMO BORGES SOBRE A TRADUÇÂO DA BÌBLIA DE FREDERICO LOURENÇO

Link para a última coluna do Padre Anselmo Borges no DN, em que ele cita Frederico Lourenço:

Natal. Traduções da Bíblia 
    
Consulte o artigo completo em:
http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/-natal-traducoes-da-biblia-5569751.html

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Circunstâncias "excepcionais" tornadas "normais"

Fotografia de Graeme Robertson for the Guardian publicada aqui.

Foi hoje publicada no The Guardian uma notícia que, de alguma maneira, já seria de esperar: as muitíssimas câmaras de vigilância espalhadas pelas cidades - no caso, Londres - instaladas, primeiro, com o argumento de se poderem identificar deliquentes e, depois, com o argumento de se detectarem ameaças terroristas, são usados para registar - em audio e vídeo - hábitos quotidianos das pessoas comuns.

Refugiando-se na legislação recente que alarga a possibilidade de vigilância em "circunstâncias excepcionais" (quando absolutamente necessário para protecção da população face a ameaças extremas), diversas autoridades britânicas locais usam esses registos para identificar quem:
não cumpre regras ao passear os cães;
- alimenta os pombos de rua;
alega ser pai solteiro;
importuna vizinhos com barulho ou de outros modos;
acumula lixo no quintal ou não respeita a sua separação;
vende álcool e tabaco a menores de idade;
comete fraudes comerciais e falsificações;
- ...


Os responsáveis pela vigilância "de todos a todo o momento" alegam que esses e outros comportamentos não são nada inocentes pois afectam a vida da generalidade das pessoas. Atentando contra os direitos dos consumidores, constituíndo crimes ambientais, e configurando fraudes em termos de benefícios sociais, têm de ser descobertos. provados e punidos.

Quem detectou o "abuso" declara ser "absurdo que as autoridades locais se aproveitem de medidas destinadas a combater o terrorismo em questões tão triviais como o ladrar de um cão ou a venda de bilhetes de teatro".

Este é o futuro, que já é bem o presente.

O Nick, Harold Bloom e este small world, piccolo mondo

Recebi este "conto de Natal" (o nome é meu, ele dá-lhe outro) do Onésimo Teotónio Almeida e achei-o tão interessante que lhe pedi para o publicar. Aqui vai, para delícia não apenas minha mas de todos os leitores:
É mais uma estória de small world, piccolo mondo, mas com um preâmbulo a ameaçar ser longo e desligado do desenlace. A minha irmã Suzette pôs-me em contacto com um moço que tinha lido um artigo meu sobre Pessoa e gostaria de encontrar-se comigo, até porque pensava fazer pós-graduação na Brown. Uma troca de e-mails com o Nick revelou-o deveras interessante a ponto de eu achar que poderia convidá-lo para almoçarmos juntos.
Foi hoje. Dei-lhe a escolher entre o Brown Faculty Club e a Tasquinha, em East Providence, ele optou de caras pelo restaurante português. Sentámo-nos a desenrolar duas horas e meia de conversa. Eu gostaria de ter gravado, de preferência em vídeo. Vai aqui um condensado.
Descendente de bem antigos portugueses (açorianos e uma costela madeirense) pelos dois lados, nasceu e vive em Fall River, Massachusetts. Há injecções de franco-canadianos, de onde lhe veio o sobrenome “Belmore”, e não me lembro que mais, todavia sente-se todo português, embora não fale a língua muito bem. Foi aluno do Bristol Community College e só fez duas disciplinas de Português, uma com o José Francisco Costa.
Desde cedo tem sido fartamente atribulada a sua história de saúde. Nasceu prematuro - dois meses antes do tempo - com complicações que os médicos foram procurando resolver de improviso, visto não figurarem em nenhum manual. O problema fundamental, gerador dos restantes, era um buraco grande no crânio deixando-lhe o cérebro exposto. Aos poucos conseguiram fechá-lo, mas sem hipóteses de cobertura de cabelo, daí surgindo complexos, sobretudo na escola. Usa agora cabelo colado, que tem de ser substituído todos os meses, no entanto não se nota nada, dá-lhe um ar todo tão normal – o Nick tem 25 anos - que não se imagina o que por trás vai de tribulações. Por um período de sete anos, alternou a sua vida entre a casa da família e vários hospitais, lutando com problemas do coração, sendo acometido de frequentes desmaios por falta de irrigação suficiente do cérebro. Para lutar contra a solidão e o medo, refugiou-se na leitura, que acabou por salvá-lo. Lá em casa, havia um Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Devorou-o e ficou definitivamente preso à literatura. Por mero acaso, um dia descobriu O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, e fez dele o seu guia e conselheiro. Pôs-se a ler tudo o que Bloom recomendava, tornando-se fã de uma plêiade díspare que inclui Dante (A Divina Comédia foi lida já quatro vezes), Shakespeare, Cervantes (Don Quijote foi, em sua opinião, o melhor romance que já leu, e põe em Segundo lugar As Memórias Póstumas de Brás de Cubas, de Machado de Assis), Milton (o seu grande poeta), Proust, Swift, Luis Cernuda, Celan, Hemingway, Pessoa, Kierkegaard, Nietzsche, Emerson. Ah! E os clássicos Lucrécio, Virgílio e Platão. Não é um name dropper, eu é que ia puxando por mais nomes do seu interesse. Mas o Nick tem uma fina memória e interjecta a propósito na conversa citações que guardou deste e daquele autor.
Há cinco anos que os desmaios deixaram de o incomodar. No ano passado terminou o Bristol Community College (dois anos) e concorreu à Brown. Não foi aceite, todavia receberam-no em Tufts, nos arredores de Boston, uma excelente universidade. Está no terceiro ano de Literatura Comparada e vai aprender Latim e Grego. Porque tem melhorado muito as notas, quando terminar a licenciatura tenciona tentar Harvard, Yale, ou Brown para prosseguir estudos em Literatura Comparada.
Tudo isto surgindo na nossa charla com enorme simplicidade e quase a pedir desculpa, porém com muito humor de permeio pois o Nick tem uma prodigiosa capacidade de imitar sotaques de emigrantes etno-americanos: russos, indianos, italianos, mexicanos, micaelenses…
Mas vamos então ao small world, piccolo mondo.
Durante décadas mostrei a Brown a visitantes portugueses, sobretudo nos anos em que em Portugal não se disfrutava de uma data de possibilidades do quotidiano universitário americano. Bibliotecas, por exemplo. Dava-me especial prazer adocicar a visita parando junto aos ficheiros bibliográficos e ir direitinho a uma velha ficha que eu achava deveras ternurenta. Rezava assim:
RAPOZO, Victorino - SANTA GENOVEVA – (lindíssima história em verso cantada pelo cantador dos Arrifes Victorino Rapoza [sic]). Fall River, M. Capeto, 1922. (Harris Collection)
Cito de cor porque a letra e música colaram-se-me ao ouvido.
Ora bem. Ao sondar a ascendência genealógica do Nick, revelou-me ele que um seu trisavô era poeta. Chamava-se… Victorino Rapozo.
Caí de queixo. Não queria acreditar. Confesso: comovi-me mesmo. Verdadinha. Small world, piccolo mondo.
Regressado a casa, vim direitinho ao computador aceder ao catálogo da biblioteca da Brown. Hoje desapareceram as fichas de cartão, mas os seus conteúdos estão todos digitalizados. Em segundos, cheguei lá. Vai aqui a ligação (não fui corrigir a ficha que acima citei de cor):
No seu e-mail de agradecimento, o Nick pergunta se podemos voltar a encontrar-nos durante as férias de Natal para continuarmos a conversa. Já adivinharam a minha resposta.
Onésimo Teotónio Almeida


"IN MEMORIAM" DO ORTOPEDISTA MR. DAVID ROUX



Meu artigo de opinião  publicado hoje in Diário as Beiras:

A minha odisseia, como da maioria dos portugueses que se viram impelidos a regressar, depois de 25 de Abril, a este pequeno  torrão de terra, em citação de Pessoa, “onde a terra acaba e o mar começa”, não me permitiu explicar a minha decisão em vir para Portugal, em vez de rumar à África do Sul, a uma personagem de elevadíssima craveira profissional e humanista a quem muito  fiquei  a dever em gratidão, e tal como eu, mas em circunstâncias diferentes, muitos cidadãos de Lourenço Marques que a ele recorriam em consultas ou operações do foro da Ortopedia. Refiro-me a Mr. David Roux de quem tive a triste notícia do seu falecimento (em 1987), através de um documento biográfico, emanado do “Royal College of Surgeons of England”, que traduzo:
“David Roux graduou-se na Universidade de Pretória em 1949 e pouco tempo depois começou a sua formação  em ortopedia, trabalhando principalmente no Hospital Geral debaixo da orientação dos Professores J M Edelstein e G T du Toit. Fez uma breve visita a Londres em 1955 em que passou do inicio ao final do FRCS em apena poucos meses.
Posteriormente passou um ano no Hospital de Cirurgia Especial em Nova Iorque onde trabalhou para o Dr. John Cobb cujo principal interesse era em escoliose e deformidades neuofibromatoses da coluna. No seu regresso à África do Sul criou a primeira unidade de escolioses no Transval onde se deparou com problemas motivados por tuberculose, poliomielite e anormalidades congénitas. O seu trabalho foi lendário mas ainda encontrou tempo para a pesquisa e ensino. Como cirurgião, apesar de da ausência do seu dedo médio da mão, foi o mais dextro, exacto e preciso técnico”.
(Por julgar ser do desconhecimento de grande parte dos leitores, abro um parêntese  para esclarecer que os médicos cirurgiões, membros do prestigiadíssimo “Royal College of Surgeons of England”, não enjeitando a sua herança de barbeiros-cirurgiões, com raízes na Idade Média,  utilizam o tratamento de “mister” em vez de “doctor”).
Como referi no início do meu artigo, perante a perigosa situação que se vivia em Moçambique, no período transição para a respectiva independência, por tencionar rumar para a África  do Sul, passou-me Mr. David Roux  um  certificado (1974) de que cito este pequeno excerto: “Tive uma relação profissional com  ele durante sete anos, através de doentes que lhe enviei para Lourenço Marques. Prestou um excelente serviço e se quiser emigrar para a África do Sul teria prazer em endossar as suas qualidades como um benefício para a África do Sul e em particular para o campo de ginástica correctiva.”.
No meu regresso a Portugal, em concurso púbico  para a leccionar a disciplina de Recuperação e Terapia pelo Movimento, do ISEF da Universidade do Porto, fiquei classificado em 1.º lugar, tendo sido contratado, por despacho do Secretário do Estado do Ensino Superior e Investigação de 21 de Março de 1976.
É, pois, diante da memória de um ser de eleição daqueles que perpassam em nossas vidas, e que pela sua grandeza nos fazem sentir importantes por orbitarmos profissionalmente à sua volta, que eu escrevo este singelo, mas muito sentido texto e me curvo respeitosamente em homenagem póstuma a um cirurgião de inexcedível competência profissional e rigoroso cumprimento do “Juramento de Hipócrates”.  Repouse em paz, meu nobre, meu querido e muito saudoso Amigo, Mr. David Roux.

Rede GPS na Antena 1

A minha participação no programa Dias do Futuro, da Antena 1, a propósito da rede GPS. Foi uma óptima conversa com o jornalista Edgar Canelas. Para ouvir aqui:

http://www.rtp.pt/play/p383/e262860/os-dias-do-futuro

Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990

Manifesto, em subscrição pública, recebi de Ivo Miguel Barroso, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Eu assinei, claro.

Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990

A Língua é um património valioso e um instrumento determinante para a afirmação dos povos e das suas culturas, porque é através dela que exprimem a sua identidade e as suas diferenças. Tal como a espontaneidade da vida e dos costumes de cada povo, a Língua é um elemento vivo, e não pode, por isso, ser prisioneira de imposições do poder político, que limitam a sua criatividade natural.

O “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90), nasceu de uma ideia peregrina do então Primeiro-Ministro, Cavaco Silva, com o duplo objectivo de “unificar” “as duas ortografias oficiais” do Português (sic) - alegadamente para evitar que o Português de Portugal se tornasse uma “língua residual”(!) -, e de “simplificar” a escrita. Na realidade, o que fez foi abrir uma caixa de Pandora e criar um monstro. O AO90 — a que os sucessivos Governos, com uma alegre inconsciência, foram dando execução —, é um fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e económico.

O processo de entrada em vigor do AO90 nos Estados lusófonos começou por ser um golpe político: o AO90 teria de ser ratificado por todos os Estados. Mas Angola e Moçambique, os dois maiores Países de língua portuguesa a seguir ao Brasil, nunca o ratificaram. E, dos restantes países, só três o mandaram “aplicar” obrigatoriamente: Portugal, a partir de 2011-2012, Cabo Verde, a partir de 2014, e o Brasil, a partir de 2016. Os resultados desta trapalhada estão à vista: em Cabo Verde, apenas dois anos depois, o Português vai passar a ser “segunda língua” no ensino, e o Crioulo a língua principal. Um dos grandes objectivos propalados pelo AO90 não era o de evitar que o Português se tornasse numa “língua residual”?

“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Foi o que aconteceu com o AO90: os efeitos que produziu foram exactamente o contrário do que se pretendeu.

Senão vejamos: o princípio que presidiu ao AO90 foi o de que a ortografia deveria ser determinada pelo alegado “critério da pronúncia” (?!), o que gerou aberrações da maior gravidade, de que damos apenas alguns exemplos:

·        Ao pretender eliminar as consoantes “mudas”, o AO90 criou arbitrariamente centenas de lemas (entradas de Dicionário), até aí inexistentes em qualquer das ortografias (portuguesa ou brasileira): “conceção”, por “concepção”; “receção”, por “recepção”, “espetador” por “espectador” — o que criou confusões semânticas, como, por exemplo, “conceção de crédito”, “receção económica ou “espetador de cinema.
·        No entanto, pela mesma lógica, o AO90 deveria começar por cortar a mais “muda” de todas as consoantes: o “h” inicial. O que não fez.
·        Estabeleceu 17 normas que instituem duplas grafias ou facultatividades, assentando num critério que se pretende de acordo com as “pronúncias” (?!): “corrupto” e “corruto”, “ruptura” e “rutura”; “peremptório” e “perentório”.
·        “Óptico” (relativo aos olhos), com a supressão da consoante “muda” “p”, passou a “ótico” (relativo aos ouvidos), o que cria a confusão total entre os Especialistas e o público, que deixam de saber a que órgão do corpo humano nos estamos a referir!
·        Em Portugal, a eliminação sem critério das consoantes “c” e “p”, ditas “mudas”, afasta as ortografias do Português europeu e do Brasil (quando o que se pretendia era aproximá-las), criou desagregações nas famílias de algumas palavras e provoca insólitas incoerências: passou a escrever-se “Egito”, mas “egípcios”; produtos “lácteos”, mas “laticínios”; os “epiléticos” sofrem de “epilepsia”; um “convector” opera de modo “convetivo”; o “interrutor” produz uma “interrupção”.
·        O facto de as facultatividades serem ilimitadas territorialmente (por exemplo, “contacto” e “contato”; “aritmética” e “arimética”) conduz a uma multiplicação gráfica caótica: por exemplo, o Curso universitário de “Electrónica e Electrotecnia” pode ser grafado com 32 combinações diferentes; o que é manifestamente absurdo.
·        A confusão maior surgiu entre a população que se viu obrigada a ter de “aplicar” o AO90”, e passou a cortar “cês” e “pês” a eito, o que levou ao aparecimento de erros, tais como: batérias”, “impatos”, “ténicas”, “fição”; adatação”, atidão”, “abruto”; exeto” (por “excepto”); para além de cortarem outras consoantes, como, por exemplo, o “b” em “ojeção”, ou o “g” em “dianóstico”.
·        No uso de maiúsculas e minúsculas, o caos abunda; “Rua de Santo António” pode escrever-se de quatro formas: também “rua de Santo António”, “rua de santo António” ou “Rua de santo António” (se acrescentarmos as 4 do Brasil, com “Antônio”, dá um total de 8 formas possíveis (!)).
·        O AO90 prescreve ou elimina o uso do hífen de forma totalmente caótica. Vejamos alguns exemplos: “guarda-chuva”, mas “mandachuva”; “cor-de-rosa”, mas “cor de laranja”; zona “infantojuvenil”, mas “materno-infantil”; e aberrações como “cocolateral”, “cocomandante”, “semirreta”,conavegante”, “corréu”, “coutente”.
·        Entre outras arbitrariedades, a supressão do acento agudo cria situações caricatas. A expressão popular: “Alto e pára o baile”, na grafia do AO90 (“Alto e para o baile”) dá origem a leituras contraditórias. A frase “Não me pélo pelo pêlo de quem pára para resistir” fica, com o AO90, escrita deste modo: “Não me pelo pelo pelo de quem para para resistir” — o que é incompreensível, seja qual for o contexto.
·        Em contrapartida, para “compensar” o desaparecimento da consoante "muda" e evitar o “fechamento” da vogal anterior, imposto pelo AO90, na escrita corrente, surgem aberrações espontâneas como a colocação de acentos fora da sílaba tónica:  “correção” escrito “corréção”; “espetaculo” corrigido para “espétaculo” ou mesmo “letivo” que passa a “létivo”!

Em suma, com este caos (orto)gráfico como se poderão “ensinar” as crianças a escrever Português?

Mas há mais: o AO90 não incide sobre os factores de divergência da linguagem escrita entre Portugal e o Brasil, nas quais existem diferenças lexicais (fato – terno; autocarro – ônibus; comboio - trem), sintácticas (tu – você) e semânticas (palavras com sentidos diferentes: camisola, por exemplo, que, no Brasil, significa “camisa de dormir”). Estamos perante diferenças atávicas que caracterizam as duas variantes do Português e que não se alteram por decreto.

O caos na grafia grassa nos vários dicionários, correctores e conversores. Com estas ferramentas discrepantes, os utilizadores da Língua Portuguesa, que já têm dificuldade em “aplicar” o “Acordo”, ficam ainda mais confusos e instáveis. Hoje, ninguém sabe escrever Português com o “Acordo”.

Sejamos claros: a diversidade ortográfica — entre apenas duas variantes do Português: o de Portugal e o do Brasil — nunca foi obstáculo à comunicação entre os diversos povos de Língua portuguesa; como nunca foi razão de empobrecimento, mas, pelo contrário, uma afirmação da pujança da nossa Língua; o que, aliás, faz dela uma das mais escritas e utilizadas do Mundo. O Inglês tem 18 variantes, e não deixa por isso de ser a principal língua internacional; o Francês tem 20 e o Castelhano, 15.

Por outro lado, as “aplicações” do AO90 afastam o Português padrão das principais Línguas internacionais, o que só traz desvantagens em termos etimológicos, de globalização e de aprendizagem dessas línguas estrangeiras, em relação às quais não temos qualquer vantagem em nos afastar. Por exemplo, a palavra “actor”. Em todas as línguas, como a nossa, em que a palavra é de raiz latina, escreve-se “actor” com c ou k (excepto em Italiano, mas em que se escreve com duplo tt, que tem  idêntica função de abrir a vogal “a”).

É caso para dizer que “foi pior a emenda que o soneto”.

Mas o AO90 é também um lamentável exemplo da forma como o Estado abusou do seu poder. A “Nota Explicativa” contém erros crassos, falácias e falsidades. Mais grave, nunca foi promovida qualquer discussão pública sobre o AO90. Em 2005, foram emitidos 25 Pareceres negativos por parte de Especialistas e de entidades consultadas. Porém, esses documentos foram ocultados. Todo o processo do AO90, culminando com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, é um péssimo exemplo de falta de transparência, inadmissível num Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 48.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Por sua vez, o AO90 dividiu a sociedade e as gerações, ao impor uma forma de escrita nas escolas, Universidades e instituições do Estado e da sociedade civil — enquanto a esmagadora maioria dos Portugueses continua a escrever com o Português  pré-AO90.
A maioria dos escritores lusófonos, muitos dos professores, dos tradutores e da Comunidade científica têm manifestado a sua repugnância em acatar o “Acordo”. Mesmo o grande número dos que acatam o AO90, por convicção, pragmatismo, inércia, subserviência, ou porque são obrigados a obedecer-lhe, na realidade, escrevem em Português normal, e limitam-se a deixar que os textos sejam depois adaptados pelos correctores ou revisores.

Finalmente, no domínio jurídico, há vários atropelos que devem ser denunciados. Desde logo, o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, para entrar em vigor, deveria ter sido ratificado por unanimidade, e não apenas por 3 Estados, como sucedeu.

Por outro lado, o AO90 é inconstitucional, porque o Estado não pode programar a cultura e a educação segundo quaisquer directrizes estéticas, políticas ou ideológicas (artigo 43.º, n. 2, da Constituição). E viola também o dever de defesa e de preservação do nosso património cultural (artigo 78.º, n.º 1).

Em suma, o AO90 teve os efeitos exactamente opostos aos que se propunha: não uniu, não unificou, não simplificou. É um fracasso político, linguístico, social, cultural e jurídico. E é também um fracasso económico, pois, ao contrário do que apregoou, não fez vender mais nem facilitou a circulação de livros. Pelo contrário: as vendas caíram. No Brasil, o Português pré-AO90 continua a ser preferido.

A Língua é o instrumento decisivo da formação das crianças e dos jovens. Não podemos permitir que o arbítrio de decisões erradas seja transmitido às gerações futuras, de que somos cuidadores, separando filhos e pais, muitos dos quais escrevem hoje com ortografias diferentes.

Em 18 de Maio de 1991, durante a discussão no Parlamento sobre o “Acordo Ortográfico”, o Deputado Jorge Lemos declarou, profeticamente: “O acordo é inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista, infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de instabilidade e inoportuno. (…) Por isso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, este texto que nos foi distribuído, como sendo o texto do Acordo, só pode ter uma solução: ser rasgado.” E, perante a Assembleia, passou das palavras aos actos — e rasgou-o.

25 anos depois, é mais do que tempo de lhe seguirmos o exemplo.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Novo número da Revista da Ciência Elementar

A Casa das Ciências, no Porto, distribuiu prémios para os melhores recursos e publicou mais um número da sua revista digital, muito útil para professores, estudantes ou simples curiosos da ciência. Ver aqui.

PIMPAMPUM! NA HEMEROTECA DIGITAL

A Hemeroteca de Lisboa está desenvolver um extraordinário trabalho de colocação em linha de publicações históricas. A última é o suplemento infantil do jornal "O Século", como o onomatopaico nome de  "PimPamPum". Lembro-me muito bem de o ler quando era criança... Em baixo informação da Hemeroteca com o conveninente link para o "PimPamPum" até 1940 (eu só li a partir dos anos 60):

No dia 1 de dezembro de 1925, o jornal O Século dava início à publicação de um suplemento semanal, às 3.ªs feiras, dedicado ao público infantil. Tratava-se do PimPamPum!, que fica agora disponível na Hemeroteca Digital, aqui.

I
ntegrando-se numa tendência comum a grande parte dos jornais importantes nessa segunda década do século XX, o PimPamPum tornou-se percursor e em larga medida o modelo e exemplo seguido pelos restantes suplementos infantis. Foi também um fenómeno de longevidade, com 2554 números editados durante 52 anos, pelo que estamos certos que este título evocará infâncias de várias gerações.

As suas páginas, cujo intuito claro era o de educar de forma lúdica, estavam repletas de contos, histórias edificantes, poesias, charadas, bandas desenhadas, jogos e concursos, com amplo recurso à ilustração.

Desde o dia 20 de novembro,
O Século foi despertando o interesse para o novo suplemento, numa série de anúncios de primeira página que pode ver aqui. A campanha de marketing terminou no dia anterior ao lançamento, num artigo que sumaria o projeto, e que transcrevemos: "Cônscio da sua nobre missão de orientador e mentor da sociedade portuguesa, e no louvável desejo de corresponder às necessidades de ordem moral que ela presentemente atravessa, o Século, que sempre caprichou em estar na vanguarda de todo o movimento reformador, acaba de tomar a deliberação de mais uma iniciativa, que muito deve interessar aos pequeninos portugueses. E dessa iniciativa - a organização de um semanário infantil, suplemento do Século - o nosso jornal encarregou duas das melhores mocidades portuguesas, o ilustre poeta Augusto de Santa-Rita, autor de várias obras que o consagra de há muito no nosso meio literário e entre as quais se conta «O Mundo dos meus bonitos», onde há poesias de tal encanto infantil que as crianças já quase popularizaram, e o admirável pintor Eduardo Malta, que em várias exposições tem revelado ser também um notável desenhador. Dirigido, literariamente, pelo primeiro, e, artisticamente, pelo segundo, Pim-Pam-Pum! - que assim se intitula o novo suplemento - fará amanhã a sua aparição, incorporado no Século, de maneira a, devidamente dobrada a folha que lhe compete, ficar constituindo, ele próprio, um jornalzinho cheio de interesse, de vida, de originalidade, meticulosamente seleccionado quanto à matéria que inserirá e impresso a duas cores, para maior brilho da sua apresentação gráfica. Podem, portanto, os pequeninos leitores do nosso jornal contar dora avante com as mil travessuras de Pim, de Pam e de Pum, os endiabrados heróis do nosso suplemento, com as suas lindas histórias, músicas, teatro, horas de ensinamento e horas de recreio."

A cronologia que hoje colocamos em linha - 1925-1940, os primeiros 754 números - corresponde ao período em que o
PimPamPum! foi dirigido por Augusto Santa-Rita. Agradecemos a Guilherme Santa-Rita a cedência de exemplares que nos permitiram a disponibilização integral desta primeira fase da publicação.

Carta aberta pelo tratamento igual aos doutorados no estrangeiro no Concurso de Bolsas de Pós-doutoramento da FCT 2016

Divulgo esta iniciativa. Eu assinei pois a discriminação parece-me arbitrária. Nem percebo sequer a racionalidade da posição da FCT. Qualquer tribunal, português ou europeu, dará decerto razão a quem protestar, o problema é que a justiça em Portugal anda a passo de caracol.

Carta aberta pelo tratamento igual aos doutorados no estrangeiro no Concurso de Bolsas de Pós-doutoramento da FCT 2016

Para: Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Professor Doutor Paulo Ferrão.

1. No contexto do Concurso para a Atribuição de Bolsas de Pós-Doutoramento 2016 da FCT, vimos mostrar a nossa preocupação com as consequências negativas para o sistema científico nacional resultantes da atribuição de uma bonificação a certos doutorados em caso de mobilidade. Com efeito, na sua atual formulação no Guião de Avaliação, esta bonificação desincentiva doutorados por universidades estrangeiras (i.e., também eles em situação de mobilidade) de contribuírem para a ciência em Portugal.
Recordamos que no Guião de Avaliação do dito concurso é conferida uma bonificação de 20% no mérito do candidato em caso de mobilidade:
Será atribuída uma bonificação de valor equivalente a 20% da pontuação atribuída ao critério “currículo pessoal”, aos/às candidatos/as que tenham obtido Doutoramento NUMA UNIVERSIDADE PORTUGUESA e que, simultaneamente, pretendam fazer o pós-doutoramento:
. numa instituição de acolhimento diferente da que lhes conferiu o grau; ou,
. num distrito do território nacional diferente daquele em que se localizava a instituição onde obtiveram o grau de doutor, ainda que a instituição de acolhimento pertença à mesma universidade que lhe conferiu o grau de doutor; ou,
. na mesma instituição onde obtiveram grau de doutor após um percurso profissional ou científico de, pelo menos, 2 anos fora dela.
(maiúsculas nossas)

2. Caso esta bonificação tenha sido formulada com a intenção de incentivar a mobilidade científica, tal como está escrita, nesta avaliação, não será dada a mesma bonificação aos doutorados no estrangeiro que se candidatam com uma instituição de acolhimento portuguesa e, por isso, necessariamente diferente da que lhes conferiu o grau de doutor, o que constitui um importante indicador de mobilidade. Na verdade, se a bonificação não for aplicada a quem se doutorou numa universidade estrangeira, introduz-se uma discriminação injustificável à luz do que são as políticas europeias, amplamente recomendadas na Carta Europeia do Investigador* e no Relatório do Grupo de Reflexão sobre o Futuro da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia**. Neste caso não se tratará de igual modo candidatos em condições semelhantes de mobilidade, o que, em última análise, encerra um princípio protecionista, limitando a entrada no sistema científico português. Ou seja, não se compreende que a bonificação conferida à mobilidade não seja aplicada a quem se doutorou no estrangeiro.

3. É fundamental para o Sistema Científico Nacional manter-se aberto aos investigadores (nacionais ou não) que tenham feito a sua formação avançada noutros países. No entanto, na sua atual formulação, a diretriz discrimina negativamente os doutorados que obtiveram o grau noutras instituições internacionais. No caso concreto de portugueses doutorados no estrangeiro com bolsas financiadas pela FCT e que tencionam fazer pós-doutoramento em Portugal, esta discriminação representa ainda um desaproveitamento do dinheiro público investido em I&D que financiou bolsas de doutoramento. A bonificação atribuída de acordo com o atual critério contribui para desincentivar a participação na comunidade científica e na ciência que se faz em Portugal pelos investigadores doutorados no estrangeiro, impedindo assim a tão necessária internacionalização dos quadros científicos nacionais e de assimilação do que melhor se faz noutras culturas científicas.

4. Em resposta a esta preocupação demonstrada por carta, a Direção da FCT frisou aos investigadores que a interpelaram que este é um ponto do Guião de Avaliação a reformular em futuros concursos, devido à desigualdade criada entre candidatos. Relativamente ao presente Concurso, o vice-presidente da FCT, Doutor Miguel Castanho, sugeriu que os candidatos lesados por esta discriminação seriam compensados pela avaliação da sua internacionalização no mérito do candidato. Esta compensação resulta numa apreciação subjetiva que poderá ou não ser atenuada, e de diferentes maneiras, pelos 40 painéis de avaliação, de acordo com o peso a que cada avaliador dedique à internacionalização do percurso de cada candidato. Para além disso, esta foi apenas uma sugestão, para a qual nenhum compromisso escrito ficou firmado, não sabendo, portanto, o candidato que, como e se esta informação será passada aos avaliadores.

5. Sendo a medida apresentada francamente insatisfatória e insuficiente, alertamos para a discriminação a decorrer neste concurso, e para os efeitos perversos desta política de investimento da ciência em Portugal. Pedimos também uma confirmação formal de que não tomará lugar no futuro, e uma séria reflexão sobre as condições de produção científica em Portugal.

Lisboa, 15 dezembro de 2016

* Acedida através do endereço www.unl.pt/data/investigadores/legislacao_cartaeuropeiainvestigador.pdf
** Relatório datado de 27 de janeiro de 2016, produzido pelo grupo constituído pelo Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior a 10 de dezembro de 2015, do qual fazem parte membros da Direção atual da FCT, acessível em www.portugal.gov.pt/media/18476450/ref-fct-4-relfinalgruporeflexao.pdf

Rita Luís, doutorada pela Universidade Pompeu Fabra, Espanha | Inês Ponte, doutorada pela Universidade de Manchester, Reino Unido | Nuno Pedrosa, doutorado pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França | Raquel Rato, doutorada pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3, França | Inês Espírito Santo, doutorada pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França | Carolina Rito, doutorada pela Goldsmiths University of London, Reino Unido | Patrícia Santos Pedrosa, doutorada pela Universidad Politècnica de Catalunya, Espanha | Beatriz Cantinho, doutorada pela Universidade de Edimburgo, Reino Unido | Joana Serrado, doutorada pela Universidade de Groningen, Holanda | Marta Carneiro, doutorada pela Universidade de Copenhaga, Dinamarca | Lúcia Barão, doutorada pela Universidade de Antuérpia, Bélgica | Frederico Dias Ferreira da Silva, doutorando no European University Institute, Florença, Itália | Inês Beleza Barreiros, doutoranda na New York University, E.U.A. | Sandra Lourenço, doutoranda no Goldsmiths College, Reino Unido | Diogo Alvim, doutorado pela Queen’s University Belfast, Reino Unido