segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Nick, Harold Bloom e este small world, piccolo mondo

Recebi este "conto de Natal" (o nome é meu, ele dá-lhe outro) do Onésimo Teotónio Almeida e achei-o tão interessante que lhe pedi para o publicar. Aqui vai, para delícia não apenas minha mas de todos os leitores:
É mais uma estória de small world, piccolo mondo, mas com um preâmbulo a ameaçar ser longo e desligado do desenlace. A minha irmã Suzette pôs-me em contacto com um moço que tinha lido um artigo meu sobre Pessoa e gostaria de encontrar-se comigo, até porque pensava fazer pós-graduação na Brown. Uma troca de e-mails com o Nick revelou-o deveras interessante a ponto de eu achar que poderia convidá-lo para almoçarmos juntos.
Foi hoje. Dei-lhe a escolher entre o Brown Faculty Club e a Tasquinha, em East Providence, ele optou de caras pelo restaurante português. Sentámo-nos a desenrolar duas horas e meia de conversa. Eu gostaria de ter gravado, de preferência em vídeo. Vai aqui um condensado.
Descendente de bem antigos portugueses (açorianos e uma costela madeirense) pelos dois lados, nasceu e vive em Fall River, Massachusetts. Há injecções de franco-canadianos, de onde lhe veio o sobrenome “Belmore”, e não me lembro que mais, todavia sente-se todo português, embora não fale a língua muito bem. Foi aluno do Bristol Community College e só fez duas disciplinas de Português, uma com o José Francisco Costa.
Desde cedo tem sido fartamente atribulada a sua história de saúde. Nasceu prematuro - dois meses antes do tempo - com complicações que os médicos foram procurando resolver de improviso, visto não figurarem em nenhum manual. O problema fundamental, gerador dos restantes, era um buraco grande no crânio deixando-lhe o cérebro exposto. Aos poucos conseguiram fechá-lo, mas sem hipóteses de cobertura de cabelo, daí surgindo complexos, sobretudo na escola. Usa agora cabelo colado, que tem de ser substituído todos os meses, no entanto não se nota nada, dá-lhe um ar todo tão normal – o Nick tem 25 anos - que não se imagina o que por trás vai de tribulações. Por um período de sete anos, alternou a sua vida entre a casa da família e vários hospitais, lutando com problemas do coração, sendo acometido de frequentes desmaios por falta de irrigação suficiente do cérebro. Para lutar contra a solidão e o medo, refugiou-se na leitura, que acabou por salvá-lo. Lá em casa, havia um Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Devorou-o e ficou definitivamente preso à literatura. Por mero acaso, um dia descobriu O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, e fez dele o seu guia e conselheiro. Pôs-se a ler tudo o que Bloom recomendava, tornando-se fã de uma plêiade díspare que inclui Dante (A Divina Comédia foi lida já quatro vezes), Shakespeare, Cervantes (Don Quijote foi, em sua opinião, o melhor romance que já leu, e põe em Segundo lugar As Memórias Póstumas de Brás de Cubas, de Machado de Assis), Milton (o seu grande poeta), Proust, Swift, Luis Cernuda, Celan, Hemingway, Pessoa, Kierkegaard, Nietzsche, Emerson. Ah! E os clássicos Lucrécio, Virgílio e Platão. Não é um name dropper, eu é que ia puxando por mais nomes do seu interesse. Mas o Nick tem uma fina memória e interjecta a propósito na conversa citações que guardou deste e daquele autor.
Há cinco anos que os desmaios deixaram de o incomodar. No ano passado terminou o Bristol Community College (dois anos) e concorreu à Brown. Não foi aceite, todavia receberam-no em Tufts, nos arredores de Boston, uma excelente universidade. Está no terceiro ano de Literatura Comparada e vai aprender Latim e Grego. Porque tem melhorado muito as notas, quando terminar a licenciatura tenciona tentar Harvard, Yale, ou Brown para prosseguir estudos em Literatura Comparada.
Tudo isto surgindo na nossa charla com enorme simplicidade e quase a pedir desculpa, porém com muito humor de permeio pois o Nick tem uma prodigiosa capacidade de imitar sotaques de emigrantes etno-americanos: russos, indianos, italianos, mexicanos, micaelenses…
Mas vamos então ao small world, piccolo mondo.
Durante décadas mostrei a Brown a visitantes portugueses, sobretudo nos anos em que em Portugal não se disfrutava de uma data de possibilidades do quotidiano universitário americano. Bibliotecas, por exemplo. Dava-me especial prazer adocicar a visita parando junto aos ficheiros bibliográficos e ir direitinho a uma velha ficha que eu achava deveras ternurenta. Rezava assim:
RAPOZO, Victorino - SANTA GENOVEVA – (lindíssima história em verso cantada pelo cantador dos Arrifes Victorino Rapoza [sic]). Fall River, M. Capeto, 1922. (Harris Collection)
Cito de cor porque a letra e música colaram-se-me ao ouvido.
Ora bem. Ao sondar a ascendência genealógica do Nick, revelou-me ele que um seu trisavô era poeta. Chamava-se… Victorino Rapozo.
Caí de queixo. Não queria acreditar. Confesso: comovi-me mesmo. Verdadinha. Small world, piccolo mondo.
Regressado a casa, vim direitinho ao computador aceder ao catálogo da biblioteca da Brown. Hoje desapareceram as fichas de cartão, mas os seus conteúdos estão todos digitalizados. Em segundos, cheguei lá. Vai aqui a ligação (não fui corrigir a ficha que acima citei de cor):
No seu e-mail de agradecimento, o Nick pergunta se podemos voltar a encontrar-nos durante as férias de Natal para continuarmos a conversa. Já adivinharam a minha resposta.
Onésimo Teotónio Almeida


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