sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Vale a pena ler

Título: Escritos sobre uma Vida Ética
Autor: Peter Singer
Tradução de Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes
Edição: Dom Quixote, 2008, 359 pp.

Peter Singer apresenta neste livro uma recolha de artigos, capítulos de livros e uma entrevista, que visam esclarecer o leitor que só conhece o pensamento de Singer superficialmente. Publicado na sequência da imensa polémica que se seguiu à sua contratação pela Universidade de Princeton, este livro aborda os principais temas de reflexão de Singer: a eutanásia, a obrigação de ajudar os mais pobres, o sofrimento dos animais e o vegetarianismo ético. Sempre servido por uma escrita clara, organizada e fluente, este livro permite conhecer melhor o pensamento do autor sem ter de ler os seus diversos livros e artigos que constituem já uma pequena biblioteca de ética aplicada.

A evolução de Darwin


Em 12 de Fevereiro de 2009 comemoram-se os 200 anos do nascimento de Charles Darwin. Talvez nenhum homem tenha tido tão vasta influência em tantas facetas da vida social e intelectual da civilização ocidental como Darwin. A sua obra teve um impacto enorme não só na nossa forma de entender algumas das características mais importantes das Ciências Naturais, como a níveis muito mais profundos e transversais da natureza humana. As suas obras desafiaram tudo o que tinha sido previamente pensado acerca dos seres vivos e da natureza, tornando-se num factor crucial das transformações intelectuais, sociais e religiosas que tiveram lugar no Ocidente durante o século dezanove.
A Fundação Calouste Gulbenkian decidiu, mais uma vez, tomar a dianteira na promoção dos valores que nos devem distinguir como uma sociedade baseada e organizada na cultura e no conhecimento, e promover um conjunto de actividades em torno deste aniversário. A organização duma grande exposição de vocação internacional intitulada "A Evolução de Darwin", será o epicentro dum conjunto doutras iniciativas, incluindo ciclos de conferências, programas de extensão pedagógica às escolas, concursos, etc., que pretendem trazer o nome de Darwin e as suas ideias para um plano de destaque na nossa agenda cultural.
O primeiro passo nesta aventura já foi feito com o lançamento de um weblog.

A origem dos anos bissextos


O dia de hoje, 29 de Fevereiro, ocorre apenas nos anos bissextos, denominação que alguns pensam reflectir o facto de os anos assim chamados terem 366 dias (com dois seis), o que não é verdade, como iremos ver. Este dia «extra» é uma correcção introduzida para acertar o que resulta de as nossas unidades de tempo dia e ano serem referidas aos movimentos da Terra: um dia (um dia solar tem 24 horas, há uma excelente explicação no Bad Astronomy sobre a diferença entre dia solar e dia sideral) é o período de rotação da Terra e um ano, o tempo que a Terra demora na translacção em torno do Sol, não é um número inteiro de dias.

Como Phil Plait explica, há algumas nuances na definição de ano e no cálculo do tempo que a Terra demora a orbitar o Sol. Na Antiguidade, os astrónomos calcularam que a Terra dava a volta ao Sol em 365.25 dias (365 dias mais 6 horas) mas a adição de um dia extra de 4 em 4 anos tentada em Alexandria por Ptolomeu III em 238 a.C. não teve sucesso. Anos de 365 dias transformavam o calendário numa dor de cabeça, agravada no tempo de Júlio César pelo corrupto pontifex maximus, o sacerdote encarregue do calendário para quem a duração do ano reflectia as compensações monetárias dos que queriam manter um determinado cargo mais tempo ou pretendiam abreviar o mandato de um inimigo.

César, com o auxílio do astrónomo grego Sosígenes, reformou o calendário no ano que corresponde ao actual 45 a.C., na altura ano 709 AUC - ab urbe conditia, desde a fundação da Cidade (de Roma). Este calendário, que instituia entre outras coisas um ano bissexto de quatro em quatro anos, passou a ser conhecido por calendário juliano, adoptado pela generalidade da Cristandade em 325 d.C. e ainda usado pela Igreja Ortodoxa.

O problema não terminou aqui já que um ano não é exactamente 365 dias e 6 horas mas sim 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. Embora a diferença possa parecer insignificante, no ano 1582, data em que o Papa Gregório XIII fez outra reforma no calendário, a diferença entre o ano astronómico e o ano sazonal já era suficiente para o pontífice ordenar o «buraco» de dez dias necessário para a corrigir. Assim, ao dia 4 de Outubro desse ano sucedeu o dia 15 de Outubro. Para evitar correcções análogas no futuro, o novo calendário gregoriano, que usamos até hoje, prevê serem bissextos os anos que sejam divisíveis por 400 e os divisíveis por 4 mas não por 100.

O mês que toma o nome do festival de purificação e limpeza denominado Februa (de Februarius que significa purificar) - ou do deus etrusco Februs mais tarde identificado com o deus romano Plutão - foi tornado ainda mais curto pelas manias de grandeza do imperador Augusto que não admitiu que o mês oitavo que tomou o seu nome fosse «inferior» ao mês sétimo que honra o seu tio-avô Júlio César.

Ao dia 29 de Fevereiro estão associadas inúmeras superstições e tradições, algumas delas bastante curiosas, o que não é de espantar dada a forma como o dia extra de Fevereiro foi introduzido. Ao adicionar o dia suplementar, Júlio César escolheu o mês de Fevereiro, o então último mês do ano considerado mês nefasto entre os romanos. Para dar a volta aos seus concidadãos mais supersticiosos, para além de decretar que o primeiro mês do ano passava a ser Janeiro e não Março, em vez de aumentar de 1 dia de quatro em quatro anos a duração do mês, César congeminou um sistema complicado: duplicou o vigésimo quarto dia de Fevereiro, que recebia na época o nome de «dia sexto antes das calendas de Março». Deste modo, o dia suplementar era o bis sextum ante diem calendas martii, que deu origem à actual designação de dia bissexto, designação que se estendeu ao ano.

Lendas urbanas: detergentes cancerígenos


Ontem recebi uma mensagem com assunto «ALERTA importante» que abri por o remetente ser uma pessoa conhecida. Li por alto a mensagem, um chorrilho de sandices que tinha circulado nos Estados Unidos em 1998 e que versava sobre o «Lauril Sulfato de Sódio», supostamente «uma substância altamente cancerigena. (1 caso em 3 adquire)».

A adaptação nacional desta lenda urbana, aparentemente iniciada por vendedores de produtos «alternativos» ou «100% naturais», conseguia a proeza de ser ainda mais cretina que a versão original e por isso nem pensei mais no assunto uma vez que pensei que apenas os erros de português fossem suficientes para não enganar ninguém. Erro meu: a minha caixa de correio está inundada com pedidos de esclarecimento sobre a dita mensagem, alguns, tal como aconteceu à Sofia, de familiares. Li de novo o «Alerta» inicial, que numa leitura mais atenta revelou disparates que escaparam à leitura na diagonal.

Como todas as «boas» lendas urbanas, esta iniciava-se com um argumento de autoridade: a cretinice que se seguia era supostamente da autoria da (inexistente) Faculdade de Ciências de Lisboa. O alerta indicava que os leitores «Devem procurar o nome do composto em inglês: Sodium Laureth Sulfate» aparentemente porque quem o escreveu é tão ignorante que confundiu o lauril éter sulfato de sódio (SLES) com lauril ou dodecil sulfato de sódio (SLS ou SDS), o primeiro muito utilizado em cosmética, o segundo mais utilizado em produtos de limpeza (e em laboratórios de investigação, há pelo menos uns três frascos de SDS no meu).

Reza a mensagem que «Esta substância faz parte da composição da maioria dos champôs pois os fabricantes utilizam-na por ela produzir muita espuma a baixo custo. No entanto o LSS é usado para lavar chão de oficinas (é um desengordurante)».

Estes sais produzem muita espuma porque são moléculas tensioactivas, isto é, baixam a tensão superficial da água. São igualmente moléculas anfifílicas e estas espécies agregam-se em água formando micelas, com as cabeças hidrofílicas para fora e as caudas hidrofóbicas no interior, como se tivéssemos gotas de gasolina dispersas em água. Assim, gorduras e outras substâncias que não sejam solúveis ou miscíveis com a água são dissolvidas no interior das micelas. Soluções de detergentes, qualquer detergente, são bons desengordurantes e é normalmente para esse fim que as utilizamos, seja em detergente da roupa ou do chão, shampoo ou gel de banho.

Ambos os detergentes (biodegradáveis) são derivados do ácido láurico, um ácido gordo saturado que se encontra em vários óleos vegetais - é o principal constituinte do óleo de coco, cerca de 50% -, e no leite humano (onde constitui cerca de 6% da gordura total). A sua toxicidade é baixissima embora possa ser irritante para membranas mucosas (não convém muito esguichar óleo de coco para os olhos e o mesmo acontece com a espuma obtida com estes sais).

Há uns anos recebi outro pedido de esclarecimento em relação a um composto igualmente identificado como muito cancerígeno. Nessa altura o «vilão» era um aditivo alimentar, o E330, que não passa do ácido cítrico presente em inúmeras frutas, citrinos e, por exemplo, maçãs. Algumas das pessoas que esclareci não ficaram convencidas à primeira porque teimavam que embora o E330 e o ácido cítrico do limão fossem uma e a mesma molécula, a primeira era um «químico» e o sumo de limão era um produto natural.

Para além de não acreditarem nos disparates que todos recebemos por correio electrónico, tal como no caso do esqualeno, esperemos que cada vez mais pessoas se apercebam que o prefixo bio ou o 100% natural no nome de um composto químico não lhe altera as propriedades. A perigosidade quer do SLES quer do SDS não aumenta drasticamente pelo facto de serem obtidos por transformação química de óleos vegetais. Podem irritar peles mais sensíveis por serem bons detergentes, isto é, removerem eficientemente a camada de óleo da pele, mas não são tóxicos muito menos cancerígenos!

OPORTUNIDADES PARA OS NOVOS


Não é nada de novo. Já sabíamos que há muitos licenciados no desemprego. E também sabíamos que há cursos com maior probabilidade de desemprego do que outros. Mas o recente e oportuno relatório sobre A Procura de Emprego dos Diplomados com Habilitação Superior divulgado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ilumina o problema fornecendo dados quantitativos – são cerca de 40 000 os diplomados inscritos nos vários Centros de Emprego – e qualitativos – quais são os cursos que fornecem mais desempregados.

O número alto de desempregados com licenciatura, fruto em larga medida do insuficiente crescimento económico, não nos deve enganar: precisamos ainda de mais licenciados. A nossa proporção de pessoas com formação superior é menos de metade da que existe na Europa desenvolvida. Aliás, o grande drama nacional é a falta de suficiente qualificação dos portugueses, isto é, o desempenho claramente insuficiente do nosso sistema escolar a todos os níveis. Estão equivocados os que preconizam a redução na formação superior por ela não ser hoje garantia de emprego imediato: as pessoas com mais habilitações estão mais bem protegidas do ponto de vista profissional.

Vou ser claro: as universidades, descontadas alguns cursos especiais, não são escolas de formação profissional e o diploma de licenciatura ou de mestrado ou de doutoramento não é uma chave que abra logo a porta de um posto de trabalho. Uma universidade não é uma escola de hotelaria que forma cozinheiros (profissão muito necessária e pela qual tenho a maior admiração a respeito) que vão logo cozinhar para o hotel. Uma universidade é um sítio onde se transmitem conhecimentos ao mais alto nível assim como as atitudes para os receber e criar. A criação de conhecimentos é essencial à sua transmissão. Sem ela transmitir-se-ão conhecimentos em segunda ou terceira mão, requentados, que pouco valem em comparação com conhecimentos novos. É bom que as universidades olhem para a empregabilidade dos seus cursos – deviam olhar mais! – mas essa visão não pode ser única nem míope na organização dos cursos. Um cidadão deve ter a possibilidade de fazer Estudos Clássicos ou Filosofia, mesmo que, olhando para o mercado de trabalho, veja que os especialistas em grego e em epistemologia não têm pleno emprego nas respectivas áreas.

Outro equívoco frequente neste contexto é o das “habilitações a mais”. Muitos empregadores recusam candidatos por estes terem “habilitações a mais”. Ora a expressão vai entre aspas porque não sei o que são habilitações a mais. Acho que as habilitações nunca são a mais. Se uma pessoa estudou mais, o saber que tem a mais em nada a pode diminuir. A questão deve ser outra: se a pessoa é ou não capaz de desempenhar bem as funções em causa. Eu não me importaria nada de falar sobre Sófocles com o motorista de táxi ou sobre Popper com a rapariga da caixa do supermercado. De facto, essa situação, descontado o exagero, já acontece nos países mais desenvolvidos. Os cidadãos que executam essas funções nesses países - e há táxis e supermercados em todo o lado – têm em geral habilitações superiores às da média dos seus congéneres portugueses. A produtividade e a cidadania são maiores. Já é tempo de acabar com o país “contentinho” com os seus fracos níveis de qualificação.

Cada desempregado é, bem sei, um drama pessoal. E é um drama social, pois a formação que teve não está a ser aproveitada. Há, entre nós, um problema dramático com recém-licenciados em busca de prometidas oportunidades, em particular ao fim de certos cursos. O relatório acima mencionado é esclarecedor sobre o desemprego nalguns cursos de papel e lápis (Psicologia, Serviço Social, Direito e Economia estão no topo dos cursos que fornecem mais desempregados, embora também haja cursos de outro tipo como Enfermagem e Design). Alguns desses jovens terão de procurar e estar preparados para aceitar empregos noutras áreas. Por outro lado, as respectivas escolas terão de fazer todas as adaptações que se revelem necessárias. Mas há outras responsabilidades, bem maiores que as das escolas. Houve alguém que prometeu 150 000 novos postos de trabalho. Quem foi?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Amizades críticas… mas de longe da escola

O Processo de Avaliação do Desempenho do Pessoal Docente, recentemente passado a letra de lei (Decreto Regulamentar n.º 2/2008 de 10 de Janeiro), estabelece duas dimensões, que se pretendem complementares: a auto-avaliação e a avaliação por colegas da mesma escola. Ora, esta determinação que, numa primeira abordagem, parece razoável, tem desencadeado inúmeras considerações por parte de especialistas em avaliação do ensino.

Restringindo-me, de momento, à avaliação do professor por colegas da mesma escola, retomo, na sequência no meu post anterior, a análise realizada por Christopher Day, salientando que, ao contrário do que alguns discursos políticos querem fazer crer, esta dimensão está longe de ser sempre pacífica e profícua.

Na verdade, encerra perigos e limitações várias, tanto mais acentuadas quanto as intenções de desenvolvimento profissional e de classificação se misturam, como é o caso do processo acima referido, e quando esta última intenção se afigura como central nesse mesmo processo.

“(…) Smith (1984) revela que os adultos aprendem quando lhe são dadas oportunidades para uma reflexão orientada e contínua, como base ‘numa experiência vivida’. Sugere que os adultos (e os professores) aprendem ao fazer e beneficiam mais com as situações que combinam a acção com a reflexão. Elliott (1984) comenta a ‘falta de uma reserva preciosa de conhecimento profissional auto-gerado’, identificando como causa o isolamento tradicional da prática profissional dos professores; por outro lado, o relatório ILEA (1984) revela que ‘um respeito bem intencionado pela autonomia profissional pode fazer com que alguns professores se tornem prisioneiros nas suas salas de aulas’. A mensagem parece clara: a avaliação e o desenvolvimento profissional devem contribuir para um menor isolamento do professor e libertar mais tempo para reflectir sobre a acção (….)

Um dos meios para obstar ao isolamento passa pelo encorajamento activo de amizades críticas, que podem ser definidas como uma espécie de sociedades nas quais se entra voluntariamente, baseadas numa relação entre iguais e enraizadas numa tarefa comum ou num interesse partilhado. Podem ser um meio para estabelecer laços com um ou mais colegas com vista a encarar em conjunto os processos de aprendizagem e de mudança, de modo a que as ideias, percepções, valores e compreensões possam ser partilhadas (…).

As amizades críticas podem servir para diminuir o isolamento e para aumentar as possibilidades de uma reflexão partilhada, confrontando o pensamento e a prática. A reflexão por si só não conduz necessariamente a uma auto-confrontação e esta, por sua vez, pode precisar de um apoio especializado, para ser traduzida numa nova acção. Se se estiver sozinho, as ‘apenas se verá o que se está pronto para ver e se aprenderá aquilo que se tiver consciência de que já se sabe’ (Thompson, 1984). Em termos da avaliação da prática na sala de aula, por exemplo, um amigo crítico pode estabelecer e manter um diálogo interessante e estimulante, através do qual são criadas situações em que o professor será obrigado a reflectir sistematicamente sobre a prática.

Quando os resultados deste tipo de interacção são positivos, os padrões de ensino tornam-se mais eficazes. Mas o processo irá igualmente gerar informação vária que poderá ser utilizada pelos professores como parte de uma entrevista de avaliação e como um meio de apoio às visitas (ou inspecções) das autoridades educativas.

Vantagens dos amigos críticos (de dentro ou de fora da escola)
Desde que sejam competentes e de confiança podem:

1. diminuir a carga de energia e de tempo para observação, permitindo aos professores continuarem a ensinar e manterem a sua actividade pedagógica, aliviando-os muitas vezes do fardo de recolher e analisar os seus próprios dados;
2. serem utilizados contra preconceitos de um auto-relatório e apoiar os professores em processos mais demorados de auto-avalição;
3. proporcionar, quando necessário, comparações com práticas de sala de aula noutros locais;
4. movimentar-se livremente e ver as crianças a trabalhar em situações diferentes;
5. centrar a atenção numa questão ou numa área de interesses estabelecida;
6. providenciar diálogos críticos depois das aulas;
7. actuar como um recurso do professor em certos momentos.

Desvantagens dos amigos críticos
Se os amigos críticos não forem competentes ou não forem de confiança, então:

1. a não ser que sejam um visitante regular, as suas interpretações podem estar fora do contexto (os observadores têm os seus próprios preconceitos);
2. as crianças podem estar menos receptivas a pessoas exteriores:
3. a menos que com o tempo se tornem uma presença regular na sala de aula, as crianças e o professor poderão reagir de modo incaracterístico.
Além disso:
4. o resultado é moroso – o observador e o professor têm de passar algum tempo juntos, antes e depois do trabalho observado, para negociar e preencher o contrato;
5. é difícil encontrar bons observadores! (…)

O convite deverá ser deixado ao critério de cada professor, quer a sua opção seja um colega da escola ou alguém de fora (por exemplo, um docente de uma instituição de ensino superior). No entanto, talvez valha a pena mencionar que uma pesquisa indicou que ‘é preferível, do ponto de vista do utilizador, aprender com um nosso igual suficientemente longe de casa para que o pedido de ajuda não seja interpretado como uma auto-acusação; a comparação e comparações injustas sejam reduzidas; as ideias possam ser apresentadas sem quaisquer problemas; as ideias possam ser apropriadas pelo professor (Hopkins, 1986).

Qualquer que seja a escolha, são os seguintes os elementos de uma cooperação eficaz:
1. vontade de partilhar;
2. reconhecimento de que a cooperação envolve ‘revelação’ e ‘receptividade’ ao feedback;
3. reconhecimento de que a revelação e o feedback implicam estar-se preparado para a mudança;
4. reconhecimento de que a mudança é por vezes ameaçadora e difícil (requer tempo, energia e novas capacidades), mas é gratificante;
5. reconhecimento de que as pessoas podem estar disponíveis para partilhar apenas dentro de certos limites.

Documento citado:
Day, C. (1992). Avaliação do desenvolvimento profissional dos professores. In A. Estrela & A. Nóvoa. Avaliação em educação: novas perspectivas, Lisboa: Educa, 89-104.

Imagem retirada de:
http://cache01.stormap.sapo.pt/fotostore02/fotos//87/44/a0/48007_00238psb.jpg

“Mas, há uma questão que continua sem resposta”

Uma infinidade de considerações poderia ser feita ao programa Prós e Contras – transmitido pela RTP 1 na passada segunda-feira, dia 25 de Fevereiro –, dedicado a questões fundamentais da e na actualidade educativa, tão abundante de conteúdo e polémica ele foi.
É impossível, portanto, analisá-lo no seu todo, num modesto texto de blogue. Mas, neste espaço, pode pensar-se nele, em relação a aspectos particulares e muitos concretos, como, por exemplo, a essência do novo modelo de avaliação do desempenho do pessoal docente.

Ora, a este propósito, lembrei-me de uma leitura que fiz há muito: trata-se de um artigo escrito por Christopher Day, professor da Universidade de Nottingham, publicado entre nós, em 1992, que três anos antes havia saído na revista Westminster Studies in Education (vol. 12). Um pouco antigo, portanto, esse documento, ou extraordinariamente actual?

Partilho uma passagem do mesmo com o leitor, pois considero que ela elucida alguma coisa do que se foi dito.

“O desenvolvimento de esquemas de avaliação nas escolas proporcionará novas oportunidades para aferir em que medida dois objectivos centrais – a responsabilização e o desenvolvimento profissional – podem ser concretizados. É certo que as ‘autoridades educativas’ têm sublinhado, sobretudo, o segundo aspecto, através da valorização: das dinâmicas de participação e de consultadoria na avaliação; da auto-avaliação como ponto de partida; do controlo do processo pelos professores; da formação dos ‘avaliados’ e dos’ avaliadores’ (…), para a observação da sala de aula e para a realização de entrevistas; dos efeitos positivos, em termos de apoio à ‘descoberta do potencial humano que procuram revelar e desenvolver’ (NDCSMT, 1989). As associações de professores também têm salientado que a avaliação não deveria ser vista como ‘mais uma tarefa’, mas sim como uma estratégia ‘incorporada e integrada no modo como as escolas, enquanto instituições dinâmicas, desenvolvem os seus recursos humanos’ (NDCSMT, 1989). Trata-se, no fundo, de sugerir que a avaliação só tem sentido ‘quando a escola está habituada a olhar criticamente para as suas práticas e quando o pessoal docente tem uma percepção saudável do seu estatuto’ (DES, 1985).
No entanto, apesar do sucesso aparente do trabalho realizado no âmbito dos esquemas-piloto de avaliação dos professores, ainda existe uma certa suspeita e cepticismo no seio do corpo docente, onde se vive um clima de ‘mudança legislada’ e não de ‘mudança negociada’ (…)
As prioridades da formação contínua e do desenvolvimento profissional – durante tanto tempo uma questão da competência individual de cada professor – são cada vez mais prescritas pelo governo, através da definição de mecanismos de apoio e de financiamento (…)
Por outro lado, as mudanças na percentagem de fundos atribuídos ao governo e às ‘autoridades educativas locais’ deixam antever uma menor possibilidade de atender aos pedidos formulados pelas escolas a partir de uma identificação das necessidades de formação dos seus profissionais.
O maior controlo do currículo a nível nacional, bem como os ‘novos’ poderes concedidos aos directores das escolas, nomeadamente na supervisão da acção docente e do desenvolvimento curricular, podem contribuir para que os professores olhem para a avaliação do seu trabalho como mais um factor de depreciação pessoal e de declínio do profissionalismo docente (…)
É neste clima que o debate sobre a avaliação dos professores deve ser enquadrado e que devem ser entendidas as referências à participação, à responsabilização e à formação como base do desenvolvimento profissional (…)
Mas há uma questão que continua sem resposta: será que estas dinâmicas vão ser utilizadas para promover o desenvolvimento do pessoal docente no seu sentido mais amplo ou para acentuar lógicas de responsabilização, isto é, ‘de prestação de contas a um órgão que tem autoridade para modificar esse desempenho através de uma sanção ou de uma recompensa’ (Kogan, 1986)?”
A recente retórica da avaliação, a nível do governo (…), põe a tónica no desenvolvimento profissional, rejeitando a ideia que se está ‘a por em causa o profissionalismo dos professores e a contribuir para que se tornem em trabalhadores educacionais sem qualquer controlo sobre o conteúdo do seu trabalho’ (Hartley & Broaffoot, 1985). Se na verdade a avaliação dos professores não deve ser vista como um ataque ao profissionalismo docente, mas sim como uma estratégia de estímulo ao seu desenvolvimento profissional, então é preciso que a prática concreta das escolas seja coerente com essa orientação.”

Documento citado:
Day, C. (1992). Avaliação do desenvolvimento profissional dos professores. In A. Estrela & A. Nóvoa. Avaliação em educação: novas perspectivas, Lisboa: Educa, 89-104.

Imagem retirada de:
http://www.irishmethodist.org/serve/education/teacher.jpg

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Limites da Ciência

(Clique na imagem para ampliar)

Na próxima sexta-feira pelas 17 horas no anfiteatro do Complexo Interdisciplinar do Instituto Superior Técnico, os nossos leitores que assim o desejarem podem assistir à lição de jubilação de Luís Alcácer, que nos honrou com vários posts convidados.

A aula, como o resumo que transcrevemos indica, abordará um tema recorrente no De Rerum Natura:

«Observada de dentro, isto é, na perspectiva dos cientistas, a ciência não tem limites. Os limites, demarcações, barreiras e constrangimentos surgem, quando a ciência é vista de fora.

Na medida em que a ciência e a sua filha natural, a tecnologia, são actividades com impacto sócio-económico-cultural, serão necessariamente condicionadas pela política e pela economia, e, pela cultura e pela ética. O papel dos media na relação entre sociedade e ciência é essencial. Infelizmente, os media confundem a imagem da ciência com a da tecnologia e o pouco de positivo que deixam transparecer da ciência é apenas o seu aspecto mágico.

Na perspectiva dos cientistas, os limites da ciência têm que ver com a condição do homem enquanto dialogante com a natureza. As demarcações da ciência são fractais - quanto mais se aprofunda um tema científico mais questões se levantam. A natureza da vida e sua origem, a consciência e o funcionamento do cérebro, e ainda questões mais fundamentais como alguns conceitos da teoria quântica são evidência de que não será por falta de assunto que a ciência chegará ao fim, nos tempos mais próximos.»

Anedotas de judeus que o meu pai me contou

Três anedotas do livro de A. Rotenberg “Anedotas de judeus que o meu pai me contou”, Esfera do Caos, 2008.

O valor de uma mulher

– Quanto darias pela minha mulher? – pergunta Moisés a Jacob.
– Pela tua mulher? Nada.
– É tua.

A Deus o que é de Deus

Um rabino, um pastor protestante e um padre católico, reúnem-se ecumenicamente, seguindo uma tradição local. Falam de Deus, dos seus paroquianos e da difícil tarefa que se propuseram na terra.
Comentam também a sua vida quotidiana.
– O que fazer com as contribuições dos fiéis?
– Eu – diz o padre –, resolvi o assunto desta forma: traço um círculo no chão, pego no dinheiro das esmolas e atiro-o para o círculo. O que fica dentro do círculo é para Deus, o que fica de fora, para as minhas necessidades.
– Eu – acrescenta o pastor protestante – faço algo semelhante. Traço um risco no chão e atiro o dinheiro. O que for para além do sinal é para Deus; o que não for, é para mim. E você, rabino?
– Eu? Eu resolvo directamente com Deus. Junto todo o dinheiro e atiro-o em direcção ao céu. O que Deus quer, guarda-o; o que não quer, deixa cair ao chão e fica para mim.


Alguns filhos de Deus têm asas

Durante a Grande Guerra, os soldados russos lutam ferozmente nas suas trincheiras contra o inimigo. De pé, com a espingarda sempre em actividade, procuram um alvo na trincheira que está a uma curta distância, em frente deles.
O sargento passeia-se satisfeito com o patriotismo e a lealdade dos seus subordinados, até que de repente descobre que Moisés, o único soldado judeu do batalhão, aponta a espingarda para cima e dirige para lá as balas.
– Imbecil – grita-lhe –, tens de atirar em frente.
– Como em frente? Não vê que em frente há homens?

ANEDOTAS JUDAICAS


O homem é o único animal que ri, apesar de haver alguns boatos sobre o riso da hiena. Tenha o hábito de rir diariamente (julgo, aliás, que é um dos hábitos mais saudáveis) mas já não me ria tanto há muito tempo.

Comecei logo por me rir com uma anedota do prefácio de Esther Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e colunista do jornal “Público” :

Quando os nazis perguntam a um judeu alemão quem são os responsáveis pela guerra, este responde calmamente: 'Os judeus e os ciclistas'. 'Porquê os ciclistas?', questionam intrigados os nazis. 'E porquê os judeus?' Remata o judeu.”

Continuei a rir com o prefácio do autor, Abrasha Rotenberg, um economista judeu originário da Ucrânia que, na sua diáspora individual, foi parar à Argentina onde chegou a subdirector do jornal “La Opinión”. A edição original, em espanhol, é de há 25 anos. Escreve ele a propósito desse facto:

“Shakespeare esteve perdido da memória europeia durante mais de 200 anos até que os franceses a recuperaram para benefício do teatro contemporâneo e de toda a humanidade, o que se assemelha a um milagre. O meu livro renasce 25 anos depois da sua publicação graças à extraordinária sagacidade desta editora portuguesa e não duvido que terá a mesma popularidade que os do meu colega William. Pergunto-me se este breve quarto de século de ausência reflecte uma diferença qualitativa a meu favor ao comparar o tempo em que se eclipsou a minha obra com o tempo que demorou a reviver a de Shakespeare.”

E continuei a rir pelo livro fora, que é um livro de anedotas, no sentido mais sério do termo (já agora o judeu Sigmund Freud tem um livro muito sério sobre a anedota, “A anedota e a sua relação com o inconsciente”, 1905). Se o não soubéssemos já, ficaríamos a saber que os judeus são um povo invulgar a avaliar simplesmente por este livro, ”Anedotas de judeus que o meu pai me contou”, acabando de sair na editora Esfera do Caos (com boas capas duras e com o benefício de as primeiras 25 páginas, quase um terço do livro, estarem disponíveis livremente na Internet, o que só pode encorajar a compra).

Já tem sido muito discutida a capacidade aparentemente invulgar do povo judeu. Por que é que tem dado tantos nomes notáveis à humanidade, desde Jesus Cristo a Karl Marx (no prefácio vem que os judeus, apesar de terem Cristo e Marx, não ficaram nem cristãos nem marxistas)? Só na ciência e na filosofia, deram no século XX cérebros como Albert Einstein, Niels Bohr, Robert Oppenheimer, John von Neumann, Carl Sagan, Benoît Mandelbrot, Ludwig Wittgenstein e Karl Popper. Para não falar na letras e nas artes em geral onde deram mentes como Franz Kafka, Primo Levi, Arthur Miller, Norman Mailer, Saul Bellow, Alberto Moravia, Stefan Zweig, Isaac Singer, Marc Chagall, Frida Kahlo, George Gershwin, Yehudi Menuhin e Anton Rubinstein. Estou em crer que, mais do que eventuais factores genéticos, o segredo do sucesso judaico é cultural, residindo em particular na educação que as famílias judaicas dão aos seus filhos. Lembro-me de um conselho que as mães judaicas davam aos filhos durante a última guerra: “entre dois caminhos escolhe sempre um terceiro”. Esta regra pode, em tempo de guerra, assegurar a sobrevivência e em tempo de paz proporcionar caminhos de inovação, que tão necessários são na ciência e filosofia como nas letras e artes.

O humor é uma marca maior da inteligência. Para “entrar” no mundo da inteligência judaica, sugiro, portanto, esta colecção de histórias despretensiosas, a maioria de tradição oral (ninguém mais do que os judeus se interessa pela genealogia), que o pai de Rotenberg lhe passou. O leitor escusa de procurar uma amostra noutro lado: pode ler o que se segue. Não me admiro que fique a rir. E rirá melhor quem rir no fim!

- Abrasha Rotenberg, “Anedotas de judeus que o meu pai me contou”, Esfera do Caos, Lisboa, 2008.

A FÍSICA DA COMUNICAÇÃO

O "Jornal das Letras" pediu-me uma autobiografia, que acaba de sair, com o título dado pelo jornal. Trancrevo-a aqui, não sem repetir o que lhes disse: que não se devia pedir uma biografia ao próprio, porque este nunca se conhece bem a si mesmo, sendo elevado o risco de não sair nada de jeito.

O próprio é a pessoa menos indicada para contar a sua história. Da primeira parte da minha história, talvez a mais importante, nem sequer me lembro bem. Não posso ser eu a contá-la, terão de ser os meus pais. Uma jornalista perguntou-me, para um inquérito, quando tinha sido o meu primeiro beijo e eu respondi que foi, logo à nascença, da minha mãe. Ela disse-me e eu vejo escrito no BI que nasci a 12 de Junho de 1956 na freguesia de São Sebastião da Pedreira, Lisboa. Nada de especial, portanto, é um sítio onde nasce muita gente: uma verdadeira fábrica de portugueses. Nascer em Lisboa na véspera de Santo António podia ter dado para me chamar António, mas não deu. Eu sou Carlos Manuel, embora não use o Manuel, que é comum aos meus dois irmãos.

Passei a infância num dos sítios mais bonitos de Lisboa: Belém. Terei aprendido a andar no Jardim do Ultramar, onde a minha mãe me levava. Desenhei o Tejo e a outra banda em papel vegetal no vidro da minha janela. Lembro-me de entrar, aos seis anos, para a Escola da Voz do Operário. Já sabia ler, pois tinha aprendido nos jornais, como “O Primeiro de Janeiro”, com o Príncipe Valente, e “O Século”, com o suplemento “Pim-Pam-Pum”. Ficou-me da infância o gosto pela leitura de jornais.

A 2ª classe já foi na Escola dos Olivais em Coimbra, pois entretanto os meus pais tinham-se mudado com armas e bagagens para a Lusa Atenas. Foi nessa escola que fiz o exame da 4ª classe. E foi no Liceu Normal de D. João III, hoje Escola Secundária José Falcão, que fiz o exame de admissão aos liceus. Conheci o que era um liceu no tempo de Salazar, com um reitor pequenino mas aguerrido (a quem chamavam devido ao seu tamanho “pulga escaramuça”) e a Mocidade Portuguesa, embora a finar-se. Tive muito bons professores, pois aquele liceu primava por isso mesmo. Nessa época frequentava a Biblioteca Municipal, por cima dos claustros de Santa Cruz, na Baixa, onde encontrei interessantes livros de divulgação da ciência, que se podiam trazer para casa e que, tanto ou mais que a escola, me despertaram para a ciência. As notas eram boas, nalguns casos muito boas. Só tive uma vez negativa, a Desenho, pois não me entendi com a geometria descritiva. Mas, curiosamente, tinha jeito para desenho e até pintava. Um dos meus quadros foi premiado num concurso artístico internacional promovido pela União Internacional de Caminhos de Ferro e até fui entrevistado pelo “Diário Popular”. Ainda no liceu fui chefe de redacção do jornal “O Estudante”, que então se fazia a “stencil”. Lembro-me de um dia ter “cravado” um subsísio para o jornal ao Ministro da Educação, Veiga Simão, de visita ao liceu. Fiquei surpreso, pois ele ajudou logo! Nessa altura comecei a colaborar nos jornais, coordenando uma página no “Correio de Coimbra”.

Havia exame de admissão à Universidade, mas dispensei dele no final do 7º ano de ciências. As minhas notas eram melhores a filosofia do que a física, mas escolhi a física – e desde cedo física teórica – devido ao interesse que as leituras me suscitaram pela física moderna. Entrei na Universidade de Coimbra em 1973, a tempo de assistir ao 25 de Abril de 1974, que veio interromper uma aula de Análise Matemática. O meu curso de Física na Universidade de Coimbra, que demorou cinco anos, não foi muito afectado pela revolução em curso, pois tinha excelentes mestres e arranjava tempo para tudo. Pratiquei espeleologia, tendo explorado quase todas as grutas da região, e joguei xadrez na Associação Académica. Fiz também uma revista dos estudantes da Faculdade, “O Mocho”, onde desenhava um cartune. Éramos quatro alunos no ramo científico de Física e estamos hoje, todos doutorados, dispersos pelo mundo. Este ano vamo-nos juntar, nos 30 anos do final de curso, sentados diante de um leitão.

Concluído o curso, não foi preciso procurar emprego, pois já era monitor e deram-me logo a assinar um contrato de assistente. Estive só um ano a dar aulas na Universidade, pois proporcionou-se a oportunidade de ir para a Alemanha (a de cá, pois nessa época havia duas) fazer o doutoramento. Em 1979, depois de um curso intensivo de língua, entrei como aluno de pós-graduação na Universidade Goethe em Frankfurt am Main, no coração da Alemanha. Os três anos do doutoramento, possíveis graças a uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foram-me muito úteis. Não aprendi apenas física teórica (a minha tese foi sobre cisão nuclear), mas muito mais coisas da vida, no convívio com bons amigos, alguns deles emigrantes. Foi nas bibliotecas alemãs – a biblioteca geral da Universidade era também a da cidade – que pude ler muita literatura, mergulhando na cultura alemã. De Frankfurt, através da assinatura de “O Jornal”, assisti ao curso político de Portugal no início dos anos 80, quando caiu o avião de Sá Carneiro. Foi lá que comecei a receber, também por assinatura, o “Jornal das Letras”. Ainda guardo o primeiro número, mas devido a falta de espaço tive de me desfazer da colecção completa. Doutorei-me em 1982, tendo então regressado a Coimbra.

Com 26 anos, fechava-se um ciclo da minha vida. Demorei mais a contar esses 20 anos de formação inicial pois nada seria sem eles. Ainda hoje, nos momentos difíceis, lembro-me que tenho de estar preparado para tudo, pois passei todos esses anos na escola. A escola é uma das maiores invenções da humanidade! Sinto-me hoje, passados outros 26 anos (que passaram mais depressa), acima de tudo professor. Gosto de o ser, de fazer aos outros o que me fizeram a mim. Já tive muitos alunos que gostei de ter, incluindo vários de mestrado e doutoramento. A minha carreira de professor foi feita em Coimbra até chegar, no ano 2000, a catedrático, embora tenha dado aulas noutros lados do país e do mundo. Beneficiei de duas sabáticas numa das cidades mais interessantes que conheço, Nova Orleães, nos EUA. Mas sou também investigador, o que para mim é inseparável de ser professor. Da física nuclear passei para a física da matéria condensada, tendo-me dedicado ao estudo de nanosistemas com métodos computacionais. Ajudei a fundar em Coimbra o Centro de Física Computacional e a reunir aí meios informáticos. Temos agora o supercomputador “Milipeia”, com mais de 500 processadores, aberto à comunidade científica.

Gosto de comunicar e, por isso, escrevo livros de ciência. Tudo começou no feliz encontro que tive quando regressei da Alemanha com Guilherme Valente, o director da editora Gradiva, que então nascia. Depois de algumas traduções, aventurei-me a escrever em 1991 “Física Divertida” que, para meu espanto, foi um êxito, com mais de 20000 exemplares vendidos e edições no Brasil, Espanha e Itália. Esteve no topo do “top ten” de “O Jornal”. Orgulho-me de ter contribuído, com outros títulos, para essa editora (no ano passado saiu novo livro: “Nova Física Divertida”). E de ter promovido a colecção infantil “Ciência a Brincar”, na Bizâncio. E de ter uma série de manuais escolares na Texto Editores.

Desde há três anos estou à frente da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a segunda biblioteca do país, que inclui a Biblioteca Joanina. É um mundo maravilhoso o das bibliotecas, onde me perco a pesquisar história da ciência. Tenho em curso esforços para alargar o catálogo único de toda a Universidade e de digitalizar, colocando na Internet o que não tiver direitos de autor, em particular os notáveis fundos de livros antigos. Mas desta última parte ainda é cedo para contar a história.

Quando estava na Alemanha não havia Internet, mas acho, como Salvador Dali, que “não nos devemos preocupar em ser modernos, é a única coisa que não podemos evitar”. Não consegui evitar: criei um portal de ensino das ciências e difusão de cultura científica ( www.mocho.pt ) e agora tenho um blog, com bons amigos, que em menos de um ano já recebeu meio milhão de visitas ( dererummundi.blogspot.com ). Continuo a gostar de jornais, onde escrevo a pedido de várias famílias: neste momento, tenho crónicas quinzenais no “Público”, “Sol” e “O Primeiro de Janeiro”. Os próximos 26 anos? Ainda tenho muito que fazer.

A CÂMARA DE COIMBRA E A COINCINERAÇÂO


Ao fim de muitos anos de controvérsia, a Cimpor, apoiada em decisões não só do governo (que recorreu, lembre-se, a uma Comissão Científica independente) mas também dos tribunais, anunciou o início dos testes de co-incineração de resíduos industriais perigosos na cimenteira de Souselas. Pode-se concordar ou não, mas as decisões dos tribunais num estado de direito têm de ser acatadas. A Câmara Municipal de Coimbra continua, porém, a teimar em sentido contrário, sem juntar qualquer argumento substantivo. Agora, em desespero de causa, veio a público dizer que não acreditava. Que não, que não podia ser porque colocou uns sinais de trânsito a proibir a passagem de resíduos. Que não, que não podia ser porque não tinha sido informada do processo. E acrescentou, ameaçando com mais um processo em tribunal, que tudo não passava de um "golpe político", de uma maquiavélica ficção. Chama-se a isto a recusa da realidade, ou, se se quiser, confundir os desejos com a realidade. Não há nada de mais anti-científico!

A Avaliação dos Professores

A habitual opinião de Rui Baptista sobre questões educativas:

“Não gosto da democracia, quando os que nos governam não são os mais competentes.
Sócrates (“Diálogos de Platão”)

Existe um declarado braço-de-ferro no sistema educativo português que o programa da RTP 1 “Prós & Contras” de 25 de Fevereiro de 2008 veio mostrar e até agudizar. Para esta situação muito tem contribuído por um lado a teimosia da ministra da Educação e por outro as sucessivas manifestações sindicais de rua, por vezes à porta das escolas e na presença dos alunos, pautadas por um comportamento cívico pouco próprio. Aliás, a forma de estar de ambos os litigantes numa discussão nada clarificadora sobre a avaliação dos professores está bem caricaturada num alusivo “cartoon”: “Parece que os professores não estão contentes com as novas medidas da ministra da Educação. E o que dizem os sindicatos? Uns que tem 1,50 m e outros 1,60 m”.

Neste clima de guerrilha permanente, noticiava “O Primeiro de Janeiro”, no passado dia 20 de Fevereiro, medidas de intimidação por parte da Fenprof: “Mas, se a política não mudar, os professores ameaçam tornar a vida do Governo muito difícil no que resta da legislatura”. É certo que a situação de prepotência inviabiliza qualquer diálogo. Mas não é menos certo que se deve excluir a utopia de o sistema educativo possuir apenas bons profissionais nos quadros docentes ou, mesmo até, como exagerou Mário Nogueira da Fenprof, no referido programa televisivo, ao querer passar a sua mensagem sindical de excelência docente, “de haver professores mais excelentes e professores menos excelentes” . Quando a fartura é muita, o pobre desconfia!

Debrucemo-nos sobre a realidade dos factos. Até ao recente congelamento das carreiras docentes, o acesso dos professores licenciados ao 10.º escalão era feito num processo avaliativo similar aquele que João Lobo Antunes teve num dos seus livros como uma “calha que permitia deslizar sem atrito”. Ou seja, o acesso dos professores ao respectivo escalão de topo dependia dos anos de serviço e da frequência de acções de formação meramente presenciais, por vezes em temáticas nada relacionadas com as disciplinas ministradas. Não considerando os casos de indivíduos que entretanto faleceram ou desistiram da docência, tratava-se, portanto, de um processo de avaliação laxista: a percentagem dos que chegavam ao 10.º escalão devia andar perto dos 100 por cento. Seria vantajoso que o ministério da Educação publicasse o valor exacto dessa percentagem.

Assim tornar-se-ia possível confrontar esta percentagem de êxito docente com a percentagem de fracasso de alunos, isto é, que não completaram os seus estudos, apesar das recentes medidas governamentais relativas às “Novas Oportunidades” e outras, como, por exemplo, o acesso ao ensino superior de maiores de 23 anos, em que o simples BI substitui o diploma do 12.º ano de escolaridade.

Tentemos, agora, encontrar paralelos entre o panorama educacional português da actualidade e o descrito neste texto de Arthur Schopennauer (1778-1860):

“O que em sociedade desagrada aos grandes espíritos é a igualdade de direitos e, portanto, de pretensões, em face da desigualdade de capacidades, de realizações (sociais) dos outros. A chamada boa sociedade admite méritos de todo o tipo, menos os intelectuais: estes chegam a ser contrabando. Ela obriga-nos a demonstrar uma paciência sem limites com qualquer insensatez, loucura, absurdo, obtusidade. Por outro lado, os méritos pessoais devem mendigar perdão ou ocultar-se, pois a superioridade intelectual, sem interferência nenhuma da vontade, fere pela sua mera existência. Eis porque a sociedade, chamada boa, não tem só a desvantagem de pôr-nos em contacto com homens que não podemos louvar nem amar, mas também a de não permitir que sejamos nós mesmos, tal qual é conveniente à nossa natureza. Antes nos obriga, por conta do uníssono com os demais, a encolhermo-nos ou mesmo a desfigurarmo-nos” (in “Aforismos para a Sabedoria da Vida”).

O ambiente de polémica que se vive na avaliação dos professores não pode ser desbloqueado convenientemente por partes desavindas postas a público em intervenções televisivas em que o coração fala mais alto do que a razão, como aconteceu no programa “Prós & Contras”. Exige uma arbitragem das forças litigantes, por exemplo através de uma comissão a funcionar com plena independência do poder político e de interesses corporativos. E mesmo com capacidade para intervir com bases científicas sólidas em tão melindroso e complexo assunto (vide, in “De Rerum Natura”, de 20 de Fevereiro de 2008, o oportuno e lúcido texto de Helena Damião, “A excelência é rara). Daqui a pergunta: terá sido solução do problema a criação (tardia) do Conselho Científico para a Avaliação dos Professores, ainda por cima constituído por uma única pessoa: a sua presidente? Não, de forma alguma, tratou-se simplesmente de pôr o carro à frente dos bois!

Como bem refere César Cantú, “a democracia fundada sobre a igualdade absoluta é a mais absoluta tirania”. Sem nos encolhermos ou nos desfigurarmos, há que denunciar uma tirania que iguala desiguais, pondo em causa a própria honorabilidade de uma profissão que vê o seu prestígio atacado pela tutela, afinal a grande responsável pelo descalabro educativo.

“O tempora! o mores!”
No reinado de D. José, o Marquês de Pombal manifestou o seu grande apreço pelos professores ao ordenar que no teatro pudessem ocupar os primeiros lugares da plateia que, por norma, se destinavam à nobreza. A actual ministra da Educação arruma-os nas galerias!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO

Minhas respostas a perguntas sobre ciência e desenvolvimento do jornal "A Cabra" dos estudantes da Universidade de Coimbra:

- Até que ponto é que a ciência está desenvolvida nos países em vias de desenvolvimento?

Nos países em vias de desenvolvimento a ciência não está tão desenvolvida como nos países desenvolvidos. Aliás, o investimento na ciência é uma condição de desenvolvimento. Os países mais ricos são os que mais apostam na ciência. A relação entre ciência e sociedade é bilateral: quem tem mais ciência tem mais riqueza e quem tem mais riqueza tem ainda mais ciência. De facto a sociedade é muito desigual e a ciência nem sempre tem servido para diminuir as diferenças, antes pelo contrário. Há um ciclo na riqueza difícil de quebrar: a história mostra que os mais ricos enriquecem muito mais do que os mais pobres, embora estes também progridam. É responsabilidade dos países mais ricos ajudar a quebrar o ciclo, contribuindo para o maior desenvolvimento dos que mais precisam.

- Qual a finalidade da ciência nesses países?

A ciência é um empreendimento à escala internacional. A física é só uma, visa compreender o Universo, que é só um: Não há, por exemplo, uma física para ricos e uma física para pobres. Há uma tendência nos países menos desenvolvidos para apostar mais nas aplicações da ciência, que podem eventualmente gerar riqueza mais rapidamente, do que na ciência propriamente dita. Ora essa atitude pode ser um erro. Por vezes as aplicações aparecem na ciência onde menos se espera. Poderá estar bem que se atenda prioritariamente em certas circunstâncias a certas aplicações da ciência, mas sem esquecer nunca a ciência fundamental.

- Que apoios institucionais existem por parte dos países ditos desenvolvidos?

Os países mais ricos têm programas de ajuda ao desenvolvimento, que incluem, como não podia deixar de ser, a ciência e a tecnologia. E há, de facto, vários programas nos países mais ricos para ajuda à ciência no Terceiro Mundo. Em Portugal, eu gostaria de ver mais iniciativas de apoio à ciência e tecnologia nos países africanos de expressão portuguesa.

- E que apoios existem por parte das empresas? De que programas é que tem conhecimento?

Muitas empresas, nomeadamente multinacionais, têm programas de investigação muito intensos nas respectivas áreas, com laboratórios espalhados pelo mundo, embora raramente esses laboratórios estejam no Terceiro Mundo. É o caso das empresas de informática (como a IBM, a Microsoft, etc.), de empresas farmacêuticas, de cosméticos, químicas, de produtos alimentares, etc. Há que reconhecer que as empresas não estão tão activas no apoio ao desenvolvimento de quem precisa como na obtenção de lucros. Mas é conhecido o caso de Bill e Linda Gates, da Microsoft, que criaram uma fundação que está aplicar parte da sua imensa riqueza ao auxílio a populações muito necessidades, levando-lhe por exemplo inovações na área da saúde.

- E de organizações a nível internacional?

A Organização das Nações Unidas, ONU, incluindo a UNESCO (organização das Nações Unidas para a Educação, Cultura e Ciência), tem programas activos de apoio a países do Terceiro Mundo, com programas na área da ciência e tecnologia. E há diversas associações que fazem o mesmo, por vezes em cooperação com a ONU. Estou-me a lembrar, da Academy of Sciences for the Development World, cujo nome antigo era Third World Academy of Sciences (TWAS), uma organização sedeada em Trieste, Itália, que foi fundada por Abdul Salam, um paquistanês Prémio Nobel da Física. Em Trieste e ligado a TWAS há um Centro Internacional de Física Teórica que recebe gente de países menos desenvolvidos e de cuja acção Portugal também tem beneficiado. Uma outra associação internacional para apoio ao desenvolvimento usando a ciência e a tecnologia é a International Association of Science and Technology for Development (IASTED). Na minha área da física, grandes associações como a Sociedade Europeia de Física e a Sociedade Americana de Física têm secções que procuram promover a ajuda ao desenvolvimento. Mas receio que haja muito, mas mesmo muito, ainda por fazer neste campo..

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Desconcerto curricular no ensino da música

Na sequência do texto do Carlos, intitulado “Desconcerto educativo”, afixado no De Rerum Natura no passado dia 15 de Fevereiro, e para que se perceba qual o lugar da música no Ensino Básico, bem como a sua substância, aqui sistematizo, praticamente transcrevendo, o que é prescrito nos documentos que estabelecem o currículo nesse nível de ensino em Portugal: Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro; Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais datado de 2001; Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.

“A música é um elemento importante na construção de outros olhares e sentidos em relação ao saber e às competências, sempre individuais e transitórias, porque se situa entre pólos aparentemente opostos e contraditórios, entre razão e intuição, racionalidade e emoção, simplicidade e complexidade, entre passado, presente e futuro.
(Currículo Nacional do Ensino Básico, página 165).

Com a citação acima destacada, constante no Currículo Nacional do Ensino Básico, inicia-se a explicação do que é a Literacia Musical, uma competência global que os alunos devem adquirir, ao longo dos nove anos que compõem o dito nível de ensino. Segue-se o esclarecimento da relação entre as competências musicais mais específicas e as competências gerais, uma vez que toda a aprendizagem deve acontecer “numa rede de dependências e interdependências”. Um esquema complexo, que ocupa uma página inteira desse documento, do qual omito a maior parte da informação, sistematiza a ligação da música – ou, como se refere, da(s) música(s) - com as Línguas, a Matemática; as Ciências Humanas e Sociais, as Ciências Físicas e Naturais, as Tecnologias, a Expressão e Educação Físico-Motora, e as outras Artes.

Vejamos, então:

1. O lugar da Música no Currículo do Ensino Básico

O Ensino Básico é composto por três ciclos. O plano curricular de cada um desses ciclos inclui duas dimensões: “Áreas curriculares” (que estão divididas em “Áreas Curriculares Disciplinares” e “Áreas Curriculares Não Disciplinares”) e “Actividades de Enriquecimento Curricular”. Estas dimensões devem ter presente e orientar-se por um aspecto que lhes é transversal: a Educação para a Cidadania.

No 1.º ciclo, com a duração de quatro anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as “Áreas Curriculares Disciplinares de Frequência Obrigatória” (Língua Portuguesa, a Matemática, o Estudo do Meio, as Expressões Artísticas e Físico-Motoras) e uma “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
As “Actividades de Enriquecimento Curricular” podem incluir a Expressão Musical.

No 2.º ciclo, com a duração de dois anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as áreas de Línguas e Estudos Sociais (Língua Portuguesa, uma Língua Estrangeira; História e Geografia de Portugal) de Matemática e Ciências (Matemática e Ciências da Natureza) de Educação Artística e Tecnológica (Educação Visual e Tecnológica e Educação Musical) e de Educação Física. Nestas Áreas inclui-se, ainda, a “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.

No 3.º ciclo, com a duração de três anos, as “Áreas curriculares disciplinares” incluem a Língua Portuguesa, duas Línguas Estrangeiras, Ciências Humanas e Sociais (História e Geografia), Matemática, Ciências Físicas e Naturais (Ciências Naturais e Físico-Químicas), Educação Física, Introdução às Tecnologias da Informação e da Comunicação, e Educação Artística (Educação Visual e Outra Componente por oferta da escola, que pode ser Educação Musical.
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado, a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.

Fazendo o raciocínio do fim para o princípio, e não me desviando daquilo que está estabelecido nos documentos macro-curriculares vigentes, é possível afirmar que a Música não tem um lugar bem definido nem estável no currículo do Ensino Básico, pois no 1.º ciclo pode situar-se nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” que são “actividades de carácter facultativo” (Decreto-Lei n.º 209/2002)., no 2.º ciclo situa-se nas “Áreas Curriculares Disciplinares” e no 3.º ciclo, apesar de se situar nestas áreas, pode ou não ser disponibilizada pela escola.

Por outro lado, tendo em conta as múltiplas componentes do currículo, o lugar da Música é ínfimo no Currículo do Ensino Básico.

2. A substância do ensino da Música no Currículo do Ensino Básico

Para se compreender este aspecto é importante saber quais são as competências que os alunos devem adquirir com a aprendizagem da música.

São três as competências centrais referidas: “ouvir, interpretar e compor”. Essas competências articulam-se, no esquema acima reproduzido, com “quatro grande organizadores”: interpretação e comunicação; percepção sonora e musical; cultura musical nos contextos; e criação e experimentação (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 170).
Tais “organizadores” são especificados em competências que os alunos devem demonstrar no final do nível de Ensino em causa, as quais, por sua vez, remetem para “tipos de situações de aprendizagem” que se lhes deve apresentar em cada ciclo.

Noutro esquema, mais complexo do que este, com setas que apontam em todos os sentidos, as três competências centrais ligam-se às seguintes proposições: “Interpreta, sozinho e em grupo (canto e instrumento) diferentes géneros e tipologias musicais”; “Adquire diferentes códigos e convenções de leitura, escrita e notação musical”; “Compreende as relações entre a música, outras artes e áreas do conhecimento tendendo à perspectiva sócio-histórica, sócio-técnica e cultural”; “Compreende a música em relação à sociedade, à história, à cultura”; Analisa, descreve, compreende e avalia auditivamente produtos e processos musicais”; e “Improvisa, compõe e faz arranjos a partir de elementos predefinidos ou outros” (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 172).

Em suma: é ambiciosa e complexa a substância do ensino da Música no Currículo Ensino Básico.

3. Conjugando os pontos 1 e 2

A análise dos documentos em apreço – redigidos numa linguagem hermética, confusa e redundante, de que é exemplo a frase com que iniciei este texto – permite inferir que existe uma incongruência, eu diria inultrapassável, entre o lugar recôndito que a música ocupa no currículo do Ensino Básico e as ambições que, no mesmo documento, são explicitadas para a sua aprendizagem.

Assim, uma vez reformados os Conservatórios, e entregue uma boa parte das suas competências às escolas básicas, diminuem as possibilidades de os alunos entre os seis e os quinze anos, ou seja, no período de vida mais adequado para a aprendizagem da música terem acesso, no ensino oficial, ao acompanhamento, à exigência e à dignidade pedagógica que essa aprendizagem requer.

E porquê? Porque as escolas básicas não têm nem se prevê que venham a ter num futuro próximo, condições logísticas para assumirem essa responsabilidade, porque a preparação dos professores que leccionam música tem lacunas graves, porque as condições em que estes professores trabalham são degradantes, porque as turmas têm vinte alunos ou mais, porque as escolas não dispõem de espaços adequados nem de instrumentos musicais… Porque, enfim, no nosso país, apesar da retórica da tutela, a música não foi no passado, nem é no presente encarada como uma área fundamental de aprendizagem formal, ainda que a investigação científica nos diga que é, ainda que a tradição educativa ocidental a justifique, ainda que seja obrigação moral da Escola transmitir a herança civilizacional e cultural às novas gerações.

Uma última nota: não obstante o ensino da música ter sido recentemente integrado nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” do 1.º ciclo de escolaridade, o problema mantém-se, pois, mesmo que todas as condições acima referidas fossem excelentes, não é possível em dois blocos de 45 minutos por semana, levar os alunos, em grupos heterogéneos e alargados, a “ouvir, interpretar e compor música”.

Figura: Chichorro, Aula de Música, Óleo sobre tela, 2002 (Retirada de: http://espacotempo.files.wordpress.com/2006/10/chichorro-aula-de-musica-oleo-sb-tela-100x81-2002.jpg).

Documentos consultados:
- Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências essenciais. Lisboa: ME/DEB.
- Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro (Organização Curricular do Ensino Básico).
- Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.

Purinas e gota

Carl Wilhelm Scheele, o farmacêutico sueco ligado à descoberta do oxigénio, descobriu uma lista enorme de novos compostos, entre eles a primeira purina isolada. A partir de cálculos urinários (calculus vesicae), Scheele isolou em 1776 o ácido úrico que utilizou para sintetizar murexida, o corante púrpura que tomou o nome do molusco que tingiu as elites da Antiguidade. William Prout, o cientista britânico que formulou a hipótese de Prout e foi homenageado por Ernest Rutherford quando este nomeou o protão, renovou o interesse pela murexida com um artigo de 1818 na Philosophical Transactions em que sugere que o corante poderia ser utilizado na «arte de tingir». A murexida, obtida primeiro a partir de excrementos de jibóias e depois de excrementos de pássaros, foi utilizada comercialmente para esse fim até à síntese da mauveína.

O ácido úrico necessário à síntese da murexida é a forma como a maioria dos pássaros e répteis excreta compostos azotados resultantes do metabolismo de proteínas. Nos mamíferos, é formado por degradação das purinas, metade das bases do ADN. As purinas sofrem um processo de degradação em hipoxantina e esta em xantina. Por sua vez, por acção da enzima xantina oxidase, a xantina é convertida em acido úrico. A maioria dos mamíferos dispõe de uma enzima hepática, a uricase, que converte o ácido úrico em alantoína e é este composto solúvel em água que excretam na urina. Mas algures durante a evolução dos primatas, perdeu-se esta enzima e o ácido úrico é o nosso produto final do metabolismo das purinas, o que pode causar problemas como o que permitiu Scheele o isolamento deste composto pouco solúvel em água.

De facto, a concentação normal de uratos no nosso organismo está próxima do limite da solubilidade dos uratos à temperatura normal do corpo humano. A solubilidade dos sais de ácido úrico diminui com a temperatura e estes depositam-se com facilidade nas articulações periféricas, joelhos, tornozelos, calcanhares ou dedos do pé, nos quais a temperatura é mais baixa, provocando inflamações. Quando o ácido úrico apresenta uma concentração superior ao limite de solubilidade no plasma sanguíneo à temperatura corporal, pode ocorrer deposição de sais de urato em qualquer tecido do organismo. Em situações de hiperuricémia, podem surgir, para além de cálculos, processos inflamatório como gota, artrite e nefrite.

A gota, que na maioria das vezes se manifesta inicialmente no hálux (dedo grande do pé), situação abundantemente representada e caricaturada, como ilustrado pelo cartoon de James Gillray que é quase obrigatório em livros de texto que tratam da gota, é uma doença muito bem documentada e é tão desafiadora quanto o metabolismo das purinas.

O incómodo causado pela doença, que Benjamin Franklin ilustra no seu diálogo com a gota, é relatado desde a Antiguidade, por exemplo, é mencionada por Aulus Cornelius Celsus no seu tratado De Medicina, uma das melhores fontes do conhecimento médico de Alexandria. Galeno considerava que a gota era uma descarga desiquilibrada nas articulações dos quatro humores.

Até há relativamente pouco tempo, a gota era considerada uma doença dos excessos, e apontava-se o dedo ao consumo de muita comida requintada e bebidas generosas como o vinho do Porto. As purinas constituem exactamente 50% das bases presentes no ADN pelo que todos os alimentos de origem vegetal e animal são fontes de purinas. Um estudo de 2004 (artigo em formato pdf) sugere que as fontes vegetais de purinas estão associadas a um menor risco de desenvolvimento de gota. Embora algumas pessoas possam apresentar problemas de síntese excessiva de purinas ou na excrecção dos seus metabolitos, parece existir uma correlação entre a gota e determinados tipos de alimentos.

Cerca de 90% dos que desenvolvem gota primária são homens e as mulheres com gota normalmente desenvolvem-na a partir dos sessenta anos pelo que não necessito contemplar, pelo menos tão cedo, a submissão à dieta pobre em purinas prescrita em 1954 (artigo em formato pdf) ou evitar os meus pratos favoritos, alguns omnipresentes na dieta nacional como o bacalhau ou as sardinhas.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Puberdade precoce, alterações climáticas e excesso de peso

Ontem teve lugar na sala Camille Blanc no Forum Grimaldi no Mónaco, a conferência «The Environment and women’s pathological conditions» («Mudanças Climáticas e Patologias Femininas»), associada à reunião do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

A 2ª conferência do dia foi proferida por Charles Sultan, da unidade de Endocrinologia e Ginecologia Pediátrica da Universidade de Montpellier, e versou sobre «Environment pollution and early puberty in girls» (Poluição ambiental e puberdade precoce em raparigas»). Como o título indica, o médico deixou um alerta sobre o problema que nos últimos tempos tem preocupado pais, educadores, médicos e psicólogos por ser cada vez mais frequente em crianças um pouco por todo o mundo.

A puberdade precoce manifesta-se no desenvolvimento de características sexuais secundárias, como a pilosidade e o aumento dos seios, antes da idade considerada «normal». Embora haja alguma dificuldade em estabelecer limites, normalmente situam-se as fronteiras minímas de «normalidade» nos 8 anos para raparigas e nos nove anos em rapazes. Para além de estar associada a transtornos emocionais, depressão, aumento de agressividade ou baixa auto-estima, a puberdade precoce, normalmente acompanhada de uma menarca igualmente precoce, aumenta o risco de cancros do sistema reprodutivo na idade adulta das mulheres.

Charles Sultan, que editou o livro «Pediatric and Adolescent Gynecology: Evidence-Based Clinical Practice», citou estudos americanos que indicam estarem situadas em 15 e 48%, os índices de meninas brancas e negras, respectivamente, que apresentam os primeiros sinais de puberdade aos oito anos de idade. O médico há muito que atribui este aumento da puberdade precoce a poluição, nomeadamente ao uso de pesticidas, detergentes, hormonas sintéticas, etc.. e ontem voltou a repetir o aviso.

Embora não duvide que alguns poluentes podem ter repercussões no sistema reprodutivo, aliás já citei um agonista dos receptores de estrogénio, o bifenol A, tenho muitas dúvidas que seja de facto a poluição química a principal culpada da puberdade precoce.

A minha filha mais nova fez um trabalho numa das disciplinas da licenciatura em que ela e as colegas visitaram uma série de escolas secundárias, entrevistaram muitas dezenas de alunas e anotaram a idade da menarca e o peso das entrevistadas. Encontraram uma correlação muito significativa entre uma menarca precoce e o excesso de peso. Claro que a correlação poderia ser fortuita ou indicar que uma menarca precoce induz excesso de peso na adolescência e não o contrário. Na altura pesquisei o tema e o que encontrei corroborava que a puberdade e menarca precoces seriam despoletadas pela chegada ao cérebro da informação de que as reservas energéticas na forma de gordura são suficientes para sustentar o início da puberdade e duma eventual reprodução.

Acredita-se que o mensageiro seja a leptina, tendo sido encontrado o primeiro indício deste papel em estudos com ratinhos da estirpe ob/ob («Obese, a new mutation in the house mouse» artigo de 1950 no Journal of Heredity, reservado a assinantes). Estes animais são inférteis, porém a leptina reverte a disfunção sexual e os ratinhos ob/ob são capazes de procriar quando cruzados com a estirpe que não apresenta mutações no gene obeso (ob) . As evidências para este papel têm-se acumulado ao longo dos anos assim como os estudos que indicam claramente a correlação entre excesso de peso na infância e puberdade precoce.

A leptina (do grego leptos que significa magro) é uma proteína secretada por adipócitos que age no sistema nervoso central (SNC) promovendo menor ingestão alimentar. Mas a leptina actua em sistemas fisiológicos independentes do controle de energia, nomeadamente regula uma série complexa de mecanismos neuroendócrinos. A leptina é produzida principalmente no tecido adiposo, embora também o seja igualmente (em pequena quantidades) no epitélio intestinal e na placenta (funcionando aí como um factor de crescimento para o feto, por sinalizar o estado nutricional da mãe).

As medidas indirectas de gordura corpórea (o índice de massa corporal, por exemplo) também estão fortemente relacionadas com a leptina circulante ou seja, a maior parte das pessoas obesas apresenta níveis séricos de leptina proporcionais à sua massa de tecido adiposo o que poderia parecer um contrasenso mas indica uma resistência à leptina em obesos.

Embora não rejeite um possível efeito sinérgico da poluição na epidemia de puberdade precoce que assola o planeta, olhando para a informação disponível que aponta a obesidade infantil como a principal culpada, parece-me deveras forçada esta colagem da puberdade precoce a alterações climáticas. Como refere Christopher Wanjek, «Embora uma Terra mais limpa seja uma boa ideia, a melhor forma de prevenir a puberdade precoce parece ser manter as crianças saudáveis e activas como as crianças deveriam ser».

sábado, 23 de fevereiro de 2008

ADN e evolução

Por razões que nunca percebi, há algumas pessoas que atribuem uma «mágica» especial ao ADN e se recusam a admitir que esta macromolécula, não obstante o que representa em termos biológicos, é uma molécula como todas as outras. Do ponto de vista químico, há algumas propriedades do ADN que são muito interessantes, propriedades essas que resultam essencialmente das características das bases azotadas que o compõem. Arriscando maçar os nossos leitores, antes de passar a essas características, e porque se fala tanto de ADN no De Rerum Natura, vou tentar descrever em termos químicos o ADN.

O ADN é uma molécula polimérica que muitos designam por polímero. Tal como os polímeros, o ADN é uma cadeia longa obtida a partir de unidades mais pequenas, os monómeros, mas o número de unidades nessa cadeia não é variável. Isto é, enquanto numa amostra de um polímero típico encontramos cadeias de dimensões diferentes, as dimensões e sequência (a ordenação das unidades repetitivas) das minhas, por exemplo, cadeias de ADN são iguais em todas as células do meu corpo.

A unidade fundamental do ADN (ácido desoxirribonucleico) é o nucleótido, o qual resulta da reacção entre uma base azotada, um açúcar (a pentose desoxirribose representada) e um grupo fosfato. Os açúcares reagem com o grupo fosfato nas posições 3' e/ou 5' (representadas a verde) por uma reacção denominada reacção de esterificação, em que é eliminada uma molécula de água. A base azotada reage com a posição 1' do açucar (a azul).

As bases azotadas presentes no ADN e ARN, indicadas na tabela seguinte, ligam-se às riboses pelos azotos indicados a azul.

Purinas
Adenina, A
Guanina, G

Pirimidinas
Citosina, C
Timina, T (ADN)
Uracilo, U (ARN)
citosina
timina
uracilo

Os polinucleótidos são obtidos por condensação dos nucleótidos, em que o grupo -OH de um nucleótido reage com o fosfato de outro nucleótido.

A importância das bases azotadas na determinação das características do ADN traduz-se no facto de que muitas vezes nos referimos aos nucleótidos apenas como bases. A estrutura primária do ADN é a sequência de bases começando no terminal 5', por exemplo, o fragmento representado tem estrutura primária 5'-TAG-3'. Por sua vez, a estrutura secundária do ADN é a sua estrutura tridimensional. Para o ADN, a estrutura secundária mais importante consiste numa dupla hélice antiparelela, i.e, 5' a 3' numa cadeia, e 3' a 5' na outra cadeia, mantida por ligações de hidrogénio entre as bases.

As ligações de hidrogénio estabelecidas entre as bases determinam algumas das propriedades que tornaram o ADN a molécula da vida. Numa dupla hélice não é possível o estabelecimento de ligações de hidrogénio entre bases pertencentes à mesma família por razões estereoquímicas. Os pares purina-pirimidina apresentam dimensões semelhantes mas o par A-G é demasiado volumoso e as distâncias entre o par T-C demasiado grandes para o estabelecimento de ligações de hidrogénio. Assim, uma purina liga-se sempre a uma pirimidina. Por outro lado, as ligações de hidrogénio que é possível estabelecer nos pares adenina/citosina e guanina/timina são muito fracas, pelo que a adenina se liga sempre à timina e a guanina à citosina. Estas interacções definem um par de bases.

Assim, só existem dois pares de bases azotadas no ADN em que a principal diferença estrutural entre os dois pares reside no número de ligações de hidrogénio estabelecidas em cada par: duas ligações de hidrogénio no par A-T e três ligações de hidrogénio no par G-C. Esta especificidade nas ligações de hidrogénio entre as bases ajuda a evitar que ocorram mutações no ADN.

Adenina-Timina
Guanina-Citosina


Guanina - Timina

Fala-se muito na informação guardada no ADN. Mas afinal o que é essa informação e como se transmite? A famosa «informação» do ADN não é mais que a sequência das bases que o constituem. Por exemplo, o ADN dito codificante é responsável pela síntese das proteínas que constituem todos os seres. O processo resume-se, basicamente, na transformação da linguagem codificada do ADN (sequência de nucleótidos) para a linguagem das proteínas (sequência de aminoácidos).

O código de transformação corresponde a sequências de três bases, os codões como o representado. Estes codões são os mesmos para todos os seres vivos e, por isso, dizemos que o código genético é universal. O codão TAG em particular (assim como os codões TAA e TGA) não especificam nenhum aminoácido, mas indicam o fim de uma cadeia. O código genético é degenerado, ou seja, há mais de um codão com o mesmo «significado». A alanina, por exemplo, pode ser codificada por GCT, GCC, GCA e GCG. O grau de degenerescência não é igual para todos os aminoácidos e apenas o triptofano é codificado por um único codão, TGG.

Podemos guardar informação de muitas maneiras e os humanos fazem-no desde os tempos em que decoravam as paredes de cavernas. Mas muitas vezes surgem problemas na comunicação da informação guardada. Quem já alguma vez tenha tentado comunicar utilizando um código, por exemplo o código Morse, apercebe-se que é muito mais complicado do que parece à primeira vista, nomeadamente é quase impossível fazê-lo sem erros. Por isso, o código Morse evoluiu e hoje em dia utilizamos códigos desenvolvidos para evitar erros. De igual forma, podemos armazenar informação em moléculas mas temos de ter cuidado na forma como essa informação é «lida» e «transmitida» pra evitar erros. As moléculas replicadoras originais teriam certamente estruturas químicas diferentes das actuais e foram sendo seleccionadas aquelas cuja constituição química precavia o erro.

No processo de cópia do ADN, a dupla hélice abre como um fecho de correr e a especificidade das ligações de hidrogénio entre as bases assegura a minimização do erro. Mas não é apenas a transmissão de informação que interessa manter sem erros: é necessário garantir que a informação guardada não se altera. Por vezes não conseguimos ler ou não lemos correctamente a informação transmitida pelos nossos antepassados das cavernas porque as espécies químicas que a guardavam, corantes e pigmentos, se degradaram com o tempo, devido a uma enorme variedade de processos químicos e fotoquímicos que dependem do pigmento utilizado e dos ambientes a que foram expostos.

Existem na Natureza muitas mais bases azotadas das famílias das encontradas nos ácidos nucleicos - a cafeína, por exemplo, é uma purina -, porque razão foram estas e não outras bases as seleccionadas? A resposta, como iremos ver, reside na prevenção de erros, na transmissão de informação mas especialmente na sua armazenagem, que advém das propriedades químicas únicas das bases presentes no ADN.