quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nos jardins de Epicuro

Um dos mais modernos pensadores da antiguidade grega, Epicuro (341-270 a.C.) foi um caso raro de sofisticação filosófica e sabedoria de vida. Na verdade, na Grécia antiga os estudantes mudavam de escola para escola à procura da melhor — mas quando descobriam os jardins de Epicuro, não voltavam a mudar. Ler directamente os seus escritos permite-nos compreender porquê: a sua tranquila racionalidade e sensatez, a sofisticação da sua argumentação, que todavia consegue transmitir de forma simples, são ingredientes que não é fácil encontrar noutros filósofos.

Epicuro defendia uma vida de prazeres simples, mas não simplistas; era materialista e atomista; e procurava mostrar que a ansiedade torna as pessoas miseráveis, não havendo razões para cair nessa armadilha. Hoje em dia, a nova "psicologia positiva", que procura determinar como se pode viver feliz, defende ideias semelhantes — mas hoje é preciso chamar-lhe "a ciência da felicidade", para lhe dar um ar sério. A "Carta a Meneceu" (agora reeditada em Portugal, com o título Carta Sobre a Felicidade) é uma das mais citadas; nela, Epicuro defende que a morte não deve provocar-nos ansiedade precisamente porque depois de mortos nós não existimos e enquanto estivermos vivos, não estamos mortos.

Devemos também a Epicuro uma das primeiras formulações do problema do mal: se os deuses são omnipotentes e bons e sábios, por que razão há tanto mal no mundo? Epicuro defendia que os deuses, se existem, se estão nas tintas para nós e portanto não vale a pena estarmos nós preocupados com eles.

Estritamente materialista, Epicuro destacou-se pela tolerância cognitiva e pela recusa de dogmatismo. Os seus escritos sobre astronomia, por exemplo, ou sobre outros fenómenos físicos, exploram as diferentes teorias da altura, mas sem se comprometer dogmaticamente com nenhuma: argumenta que em muitos casos não se sabe pura e simplesmente como as coisas realmente são.

A filosofia do período helenístico tem conhecido uma profusão de estudos recentes que rejeitam a ideia de que os pontos altos da filosofia grega foram Platão e Aristóteles. Este livrinho é um bom ponto de partida para a aventura de descobrir a imensa riqueza da filosofia grega do período helenístico.

11 comentários:

Anónimo disse...

"Os Jardins de Epicuro" já foram motivo de um polêmico livro de um direitista brasileiro, Olavo Carvalho. Só que em vez de versar sobre a "felicidade", Carvalho busca mostrar como Epicuro traz exatamente o contrário do que apregoa. Daí que seu livro se chame "O Jardim das Aflições" — sem contar que o "jardim" é também tomado como sinônimo de universidade, e daí a crítica aos professores doutores que permeia todo o livro. É interessante também a tematização da leitura de Marx, em sua tese de doutorado, comparando a física de Epicuro, que previa indeterminações, com a de Demócrito, esta plenamente determinista.

Mas, enfim, na época da ansiedade a filosofia acaba por retomar, sem vexar-se, a temática da felicidade. Pierre Hadot, recuperando a filosofia helenística, é pródigo nisso, principalmente ao propor "exercícios espirituais" laicos e ao dizer que toda a idéia de ascese foi copiada pelo cristianismo da filosofia pagã.

Fiquemos então com a ética ontológica epicurista, que nos impinge a não nos preocuparmos com a morte, já que enquanto somos, ela não é, e quando ela for, já não seremos mais.

Abraços.

João Marques disse...

Não há dúvida que Epicuro tinha razão, mais vale viver a nossa primeira e única vida do que esperar a segunda ou terceira de alguém que, manifestamente, parece ter tido mais sorte que o comum dos mortais.

Graça disse...

"A filosofia do período helenístico tem conhecido uma profusão de estudos recentes que rejeitam a ideia de que os pontos altos da filosofia grega foram Platão e Aristóteles."


Esta afirmação tem também um fundamento arqueológico-artístico. Epicuro foi extremamente popular na época romana, como o atestam as 29 esculturas que o representam sob a forma de herma (derivadas de um original do Séc. III a.C.). Cícero conta-nos mesmo (De Finibus, V, 1, 3) que era comum os seus seguidores usarem anéis gravados com o seu busto. Outras vezes, o seu busto era gravado nas gemas e pastas vítreas que adornavam os anéis (e temos exemplos na glíptica romana de Portugal...).

O mesmo aconteceu com Sócrates (contrariamente a Platão e a Aristóteles, raramente representados).

Victor Gonçalves disse...

Bela elegia primaveril. Ah se o ser humano fosse tão ingénuo tua seria um jardim onde cultivaríamos a bela amizade através de uma logofilia sem a necessidade da performance dialéctica.

Talvez seja essa falha de carácter (ausência do optimismo sem porquê) que me leva a preferir a hybris (ou hubris) trágica. Mas espero que seja apenas uma imperfeição minha.

Parabéns pelo belo e profundo blog.

:: rui :: disse...

Ciência da felicidade?! Ciência do sucesso? Ciência do bem-estar!! Tantas ciências existem para tentar por meios próprios conseguir um bem-estar.. e no entanto, cada vez mais vemos que precisamos de mais controlo sobre nós próprios, mais segurança, mais vigilância pois realmente não parece que estejamos a conseguir controlar por nós mesmos os rampantes números de violência que nos cercam ou mesmo que cometemos mais e mais. Afinal de contas, será que estas ciências todas funcionam ou será mais um fenómeno associado a idolatria, ou seja, nós somos idolos de nós mesmos, procurando desenvolver entendimentos que façam corresponder a ideias materialistas do universo, e que entanto, não passam de "wishful thinking" sobre a verdadeira felicidade. Se realmente fossem boas ideias, então porque razão o controlo aumenta, a vigilancia aperta, a avaliação assusta, tudo para o bem-estar do povo... eu diria que estamos a querer enfiar-nos numa prisão. Um novo império romano acerca-nos a cada dia que passa. A União Europeia está a tomar-nos de assalto sobre as nossas liberdades. Pensem criticamente!

Perspectiva sabe onde se encontra a resposta.

Nando disse...

Caro Perspectiva:

Não sou biológo, mas físico; e, enquanto físico, gostaria de conseguir explicar tudo ou, melhor, descrever matematicamente. Mas sei que há algo em que a ciência ainda está a dar os primeiros passos: o estudo da consciência e a sua relação com o substracto físico.

Se quiser, pode ir por aí (muitos vão), invocar a alma, etc. Mas não pegue na informação, por favor: um monte de blocos coloridos lançados ao calhas sobre o chão pode soletrar uma palavra, mas a informação não é uma "coisa" que lá está: a informação exige um receptor que assim a percepcione, não um "escritor" que a redija. Daí a sua grande confusão entre entropia de informação e entropia da matéria -- essa, sim, uma medida da desordem (simplisticamente) de um sistema.

Nando disse...

Pois. E uma respostazinha aqui ao je?

Unknown disse...

o perspectiva está on fire com o seu deus mais a bíblia... será que nunca leu que os trechos da bíblia que chegaram até hoje são meras reproduções de uma original jogada política do Constatino há tantos anos atrás com o objectivo de melhor "domesticar" a população epocalmente sob o seu domínio?...

Alcides disse...

Ao meu caro Jorge;
É dificil encarar a realidade e por isso nos cercamos de verdades prontas. Se observares bem em Epicuro o dilema humano continua o mesmo, seja deuses ou Deus,só mudam os nomes.Como disse o comentarista anterior a mim, cuidado com o que foi modificado pela igreja durante seculos. Náo deixe que padronizem sua fé. Como disse Epicuro,vale aceitar o mito se te torna feliz, mas busque a liberdade, pois as instituições sabem que nós humanos passamos e em nome da piedade miram o lucro. Salomão, grande plagiador do pensamento grego (como Rei teve acesso a Sócrates e outros) pregou o epicurismo, através da Moderação em Eclesiastes. Busque oconhecimento cientifico e ai vai uma boa leitura: As Origens do Cristianismo; é critico e ao mesmo tempo construtivo para a própria fé. A ciencia procura a verdade, não o radicalismo e o ateismo, mas, a liberdade.

carolus augustus lusitanus disse...

Alcides: a ciência procura a liberdade? Só se for a ciência política... Isto parece um tiro em H2O.

A ciência procura a verdade? Até pode ser... mas para quem ou para quê? Meditem sobre os ensinamentos dos sábios de todas as épocas e lugares (não dos especuladores do saber transitório) e, sobretudo, reflitam com o sábio que existem em cada um de vós... e vereis que, afinal, andáveis à procura de uma coisa que não existe no mundo materilaista e quantificável exterior, mas no âmago de cada um.

Anónimo disse...

Adriana disse

Estou começando estudar filosofia e estou pesquisando Epicuro.
Me identifico com ele pois gosto dos jardins para estudar.Ainda não tenho base suficiente para opinar, mas gostei do blog.

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