sexta-feira, 31 de agosto de 2018
MITOS SOBRE O CANCRO
Um artigo na "Sábado" desta semana desmonta vários mitos que circulam sobre causas de cancro. A revista falou comigo sobre as radiações dos telemóveis, wifi e forno de microonda. Pode ler aqui:
https://www.pressreader.com/portugal/s%C3%A1bado/20180830/282492889566066
https://www.pressreader.com/portugal/s%C3%A1bado/20180830/282492889566066
"A ARTE DE CRIAR PAIXÃO PELA CIÊNCIA"
Este é o título do meu próximo livro, a publicar brevemente pela editora Guerra e Paz, numa parceria com a Sociedade Portuguesa de Autores (colecção "Fio da memória). Trata-se de uma longa entrevista que me foi feita por José Jorge Letria, presidente da SPA.
Publico um pequeno extracto de uma resposta minha:
"A ciência é, mais do que um corpo de conhecimentos, um método que deve começar a ser transmitido o mais cedo possível. Ver, mexer, agarrar, examinar, interrogar o mundo, fazer perguntas ao mundo, perguntar o como e o porquê das coisas é a atitude mais natural desta vida. A nossa vida não passa de uma relação com o mundo. Acima de tudo, e em última análise, a ciência procura responder a essa pergunta que, às vezes, nós exteriorizamos, mas que os antigos gregos já fizeram há muitos séculos: «Quem somos nós?» Nós somos parte do mundo, não nos serve de muito o dualismo, a ideia de que há o mundo e de que há o homem, pois o homem é inegavelmente parte do mundo. E, cada vez mais, a ciência – daí o imparável crescimento das ciências sociais e humanas – consegue saber mais quem nós somos.
A pergunta «Quem somos nós?» irá perseguir-nos sempre, enquanto existirmos e espero bem que a nossa espécie vá existir muito tempo, pois somos a única no Universo, tanto quanto sabemos, que o consegue conhecer. Quem somos nós? Para o saber, as ciências sociais e humanas têm de dialogar com as ciências naturais e exactas. Por outras palavras, o saber tem de ser um saber a arte de fazer pontes 153 alargado e um saber em diálogo permanente. Não há saber verdadeiro se não for alargado em diálogo permanente. Só assim é possível haver humanidade. Portanto, quando falo – no meu livro mais recente."
Publico um pequeno extracto de uma resposta minha:
"A ciência é, mais do que um corpo de conhecimentos, um método que deve começar a ser transmitido o mais cedo possível. Ver, mexer, agarrar, examinar, interrogar o mundo, fazer perguntas ao mundo, perguntar o como e o porquê das coisas é a atitude mais natural desta vida. A nossa vida não passa de uma relação com o mundo. Acima de tudo, e em última análise, a ciência procura responder a essa pergunta que, às vezes, nós exteriorizamos, mas que os antigos gregos já fizeram há muitos séculos: «Quem somos nós?» Nós somos parte do mundo, não nos serve de muito o dualismo, a ideia de que há o mundo e de que há o homem, pois o homem é inegavelmente parte do mundo. E, cada vez mais, a ciência – daí o imparável crescimento das ciências sociais e humanas – consegue saber mais quem nós somos.
A pergunta «Quem somos nós?» irá perseguir-nos sempre, enquanto existirmos e espero bem que a nossa espécie vá existir muito tempo, pois somos a única no Universo, tanto quanto sabemos, que o consegue conhecer. Quem somos nós? Para o saber, as ciências sociais e humanas têm de dialogar com as ciências naturais e exactas. Por outras palavras, o saber tem de ser um saber a arte de fazer pontes 153 alargado e um saber em diálogo permanente. Não há saber verdadeiro se não for alargado em diálogo permanente. Só assim é possível haver humanidade. Portanto, quando falo – no meu livro mais recente."
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
O ABUSO DAS EXPLICAÇÕES PARTICULARES
Artigo recebido do psiquiatra Nuno Pereira:
As explicações particulares constituem
serviços pagos de apoio extraescolar com o objetivo de melhorar o desempenho dos
alunos. O recurso transitório a explicações individuais ou em pequenos grupos pode
ser vantajoso, quer como recuperação para alunos com dificuldades, quer como
reforço para bons alunos, permitindo acelerar a aprendizagem. Os primeiros
procuram acompanhar o ritmo da turma e os segundos aspiram à excelência. Dada a
competitividade na sociedade, são as classes médias e altas que mais se valem
das explicações para seguir estudos superiores. No entanto, manter explicações ao
longo da escolaridade obrigatória prejudica por um lado os alunos, porque lhes
cria dependência e limita o tempo livre, e por outro lado as famílias, porque
sobrecarrega o orçamento doméstico.
Em primeiro lugar, os alunos, habituando-se
a dispor sempre da ajuda dos explicadores, desvalorizam as aulas oficiais e não
desenvolvem o estudo autónomo. Os explicadores para obterem resultados rápidos
apresentam o conteúdo curricular já pronto e treinam para os testes. Os
explicandos limitam-se a assimilar a matéria “mastigada”, o que lhes permite
uma progressão mais célere. Ficam porém privados de aprenderem de modo autónomo
não só a recolher e organizar informações, transformando-as em conhecimentos,
como também a aplicar estes últimos. Já sem falar nos “explicadores” que
praticamente resolvem os trabalhos para casa dos alunos, o que falseia o mérito
individual. Tudo isto pode trazer consequências funestas na universidade e
mesmo na vida profissional, em que mais se exige competência autorregulatória. Em
segundo lugar, a sobrecarga das explicações e deslocações gera fadiga, reduz o
tempo de socialização e afeta o convívio familiar. Pior ainda se se resumem a meras
aulas extras para oferecer mais do mesmo. Em terceiro lugar, o custo das
explicações é insuportável para muitas famílias, o que motiva desigualdades
sobretudo no acesso ao ensino superior. Seja como for, mesmo que acabem com os
exames na escolaridade obrigatória (como defendem alguns), haverá sempre provas
de ingresso com a consequente seriação, caso os candidatos superem as vagas
subordinadas à capacidade de formação no curso pretendido.
Em suma, as explicações privadas – sinais
de insuficiência da escola - podem ser úteis se episódicas, mas prejudiciais se
duradouras. Porém, o ideal é o domínio de todo o processo de
ensino/aprendizagem exercido pelo professor no âmbito da própria disciplina com
a progressiva autonomização dos seus alunos, sem que estes necessitem de
duplicar as lições.
Nuno Pereira (psiquiatra)
quarta-feira, 29 de agosto de 2018
Hulot ou a "introspecção profunda" que precisamos de fazer sobre o mundo, sobre nós
Antes de ser ministro da Ecologia de França, Nicolas Hulot foi um ambientalista activo e convicto. Teve programas na televisão nessa área e criou uma fundação com o seu nome (Fondation pour la Nature et l’Homme).
Tal fundação, cujo objectivo é modificar comportamentos individuais e colectivos no sentido de preservar o nosso planeta, numa ligação a outras iniciativas, como a Plate-Forme Française de L´Education à la Citoyenneté et à la Solidarité Internationale, tem ganho protagonismo na área da educação, com destaque para a educação escolar.
São muitas as ligações, iniciativas, documentos, etc. que disponibiliza para uso, nomeadamente, de professores.
Hulot demitiu-se ontem ou anteontem, em directo, quando estava a ser entrevistado num programa de rádio. Disse:
Recomendada, com insistência, por instâncias internacionais que se infiltram nos sistemas de ensino, ditando a sua orientação, é substancialmente apoiada por empresas e por associações e fundações, muitas delas dependentes de empresas ou com ligação a elas. E, claro, com ligação às mais variadas instâncias de poder.
Quando se desbrava o caminho do currículo (e se começam a abrir links, que vão dar a links, que vão dar a links... e a analisar o teor e a substância da intervenção pedagógica, incluindo os seus patrocinadores), isto é mais do que evidente, ficando a desconfiança (para não dizer a certeza) de que a educação ambiental serve sobretudo para "tapar os olhos" a toda uma sociedade, para que não se veja a realidade tal como ela é: manipulada por aqueles criam problemas ou que permitam que se mantenham, com o fito de obter alguma coisa que os beneficia. Mas não é só isso, é um pouco mais: para dar a ideia de que estão muitíssimo empenhados, a trabalhar altruísta e duramente para debelar (todos) os problemas do mundo.
E, neste jogo de bastidores, o mundo vai perecendo.
Talvez Hulot tivesse percebido, de forma inequívoca, que a sua mobilização e intervenção na comunicação social, em organismos não governamentais e outros, na educação não escolar e escolar, e, mesmo, como responsável máximo de uma pasta ministerial específica não conduzia àquilo de que está convencido e ao que prometeu.
Assim, restou-lhe uma demissão abrupta e nada convencional para destacar o seu apelo à “introspecção profunda" que há a fazer sobre o estado do mundo e o seu desgoverno.
Tal fundação, cujo objectivo é modificar comportamentos individuais e colectivos no sentido de preservar o nosso planeta, numa ligação a outras iniciativas, como a Plate-Forme Française de L´Education à la Citoyenneté et à la Solidarité Internationale, tem ganho protagonismo na área da educação, com destaque para a educação escolar.
São muitas as ligações, iniciativas, documentos, etc. que disponibiliza para uso, nomeadamente, de professores.
Hulot demitiu-se ontem ou anteontem, em directo, quando estava a ser entrevistado num programa de rádio. Disse:
“Não quero continuar a mentir a mim próprio. Não quero dar a ilusão de que a minha presença no Governo significa que estamos a avançar”.
Reconheceu que o seu país dá "pequenos passos" para face às alterações climáticas, o que é "muito mais do que outros países" fazem, mas esses "pequenos passos não são suficientes". E há recuos (graves, pelo que deu a entender) decorrentes de pressões diversas e fortes, que se traduzem em cedências inaceitáveis.
Explicou que, por isso mesmo, o Governo não foi até onde havia prometido em matéria de proibição de pesticidas, de protecção da biodiversidade, de paragem da exploração e utilização de hidrocarbonetos...Admitindo que Hulot foi sincero - talvez tivesse sido - as suas palavras conduzem à interrogação do sentido e da eficácia da dita "Educação ambiental", que consta nos currículos escolares.
Recomendada, com insistência, por instâncias internacionais que se infiltram nos sistemas de ensino, ditando a sua orientação, é substancialmente apoiada por empresas e por associações e fundações, muitas delas dependentes de empresas ou com ligação a elas. E, claro, com ligação às mais variadas instâncias de poder.
Quando se desbrava o caminho do currículo (e se começam a abrir links, que vão dar a links, que vão dar a links... e a analisar o teor e a substância da intervenção pedagógica, incluindo os seus patrocinadores), isto é mais do que evidente, ficando a desconfiança (para não dizer a certeza) de que a educação ambiental serve sobretudo para "tapar os olhos" a toda uma sociedade, para que não se veja a realidade tal como ela é: manipulada por aqueles criam problemas ou que permitam que se mantenham, com o fito de obter alguma coisa que os beneficia. Mas não é só isso, é um pouco mais: para dar a ideia de que estão muitíssimo empenhados, a trabalhar altruísta e duramente para debelar (todos) os problemas do mundo.
E, neste jogo de bastidores, o mundo vai perecendo.
Talvez Hulot tivesse percebido, de forma inequívoca, que a sua mobilização e intervenção na comunicação social, em organismos não governamentais e outros, na educação não escolar e escolar, e, mesmo, como responsável máximo de uma pasta ministerial específica não conduzia àquilo de que está convencido e ao que prometeu.
Assim, restou-lhe uma demissão abrupta e nada convencional para destacar o seu apelo à “introspecção profunda" que há a fazer sobre o estado do mundo e o seu desgoverno.
terça-feira, 28 de agosto de 2018
"A escola de amanhã"
Jean-Michel Blanquer, um jurista de formação é, desde há pouco mais de um ano, Ministro da Educação Nacional de França. Tem sido notícia em Portugal sobretudo por causa de proibições (dos métodos globais de aprendizagem da leitura, do uso de telemóveis no espaço escolar...) e de reforços (da laicidade da escola pública, das humanidades...)
Antes de assumir esta pasta governamental, teve cargos de direcção relevantes em instituições educativas e foi director e professor, de modo que as políticas de ensino não lhe são estranhas.
Em 2016 publicou um pequeno livro (L’École de demain: Propositions pour une Éducation nationale rénovée, Paris, Odile Jacob), que só agora li. Não é um livro extraordinário, mas tem algo na introdução que é extraordinário.
Começo pela estrutura, a qual se encontra bem arrumada.
São seis capítulos, quatro dedicados a outros tantos patamares de escolaridade, um dedicado à carreira docente e o último dedicado à organização do sistema educativo.
Em todos eles faz uma análise em seis tópicos: O que nos ensina a experiência; O que nos ensina a comparação internacional; O que nos ensina a ciência; O que é preciso fazer; Medidas-chave.
O conteúdo não é, no entanto, surpreendente: pouca profundidade de análise e um óbvio pragmatismo. Interessante, contudo, por estas mesmas razões, mostra uma reflexão política sobre a educação e aponta a sua orientação. Distancia-se também do discurso "politica e social e (sobretudo) economicamente correcto", além de que reafirma, com especial ênfase na Conclusão, os valores essenciais da escola pública francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Mas é na Introdução - intitulada O grande equilíbrio - que me detenho.
O Ministro começa por citar a famosa frase de Montaigne, cujo sentido Kant retomaria: "Tratar a maneira de elevar e educar as crianças parece ser a coisa o mais importante e mais difícil de toda a ciência humana" (Ensaios, Livro 1, Capítulo XXV).
Denota, assim, a consciência da dimensão e responsabilidade que tem em mãos e, é nesse espírito, que inicia o seu texto dizendo que a França (e eu acrescento, qualquer país) não pode fugir às inquietações do mundo actual, entre as quais se contam o progresso tecnológico, os riscos do declínio económico e de implosão da sociedade...
Impõe-se, portanto, elaborar um projecto escolar assente numa filosofia clara e numa visão histórica, ambas concorrendo para que o futuro assente no passado e no presente. É isto que se me afigura extraordinário: um político escrever que a base da educação, melhor da construção da educação, deve ser esta dupla: filosofia e história
Ora, trata-se de uma dupla em tudo contrária ao mercantilismo da educação formal ao serviço de uma certa economia, que está longe de constituir benefício para todos.
Foi também com surpresa que vi ser convocada uma terceira base para tal projecto, de ordem científica e que se situa na área da psicopedagogia: os estudos sobre a cognição. Quando esta palavra desaparece do vocabulário das instâncias supranacionais e nacionais, em favor de palavras de sentido fluído, retomá-la é, devo dizer, de alguma coragem. Destaca, ainda, a necessidade de reintroduzir áreas do conhecimento que têm sido afastadas do currículo ou menorizadas: as artes estão entre elas.
Não deixando de ter em conta as orientações da OCDE e as comparações entre países proporcionada por provas internacionais (como o poderia fazer sendo político e ministro?), a mensagem em que insiste é que não será possível construir um futuro para a educação na ausência ou descuido destas três bases.
Antes de assumir esta pasta governamental, teve cargos de direcção relevantes em instituições educativas e foi director e professor, de modo que as políticas de ensino não lhe são estranhas.
Em 2016 publicou um pequeno livro (L’École de demain: Propositions pour une Éducation nationale rénovée, Paris, Odile Jacob), que só agora li. Não é um livro extraordinário, mas tem algo na introdução que é extraordinário.
Começo pela estrutura, a qual se encontra bem arrumada.
São seis capítulos, quatro dedicados a outros tantos patamares de escolaridade, um dedicado à carreira docente e o último dedicado à organização do sistema educativo.
Em todos eles faz uma análise em seis tópicos: O que nos ensina a experiência; O que nos ensina a comparação internacional; O que nos ensina a ciência; O que é preciso fazer; Medidas-chave.
O conteúdo não é, no entanto, surpreendente: pouca profundidade de análise e um óbvio pragmatismo. Interessante, contudo, por estas mesmas razões, mostra uma reflexão política sobre a educação e aponta a sua orientação. Distancia-se também do discurso "politica e social e (sobretudo) economicamente correcto", além de que reafirma, com especial ênfase na Conclusão, os valores essenciais da escola pública francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Mas é na Introdução - intitulada O grande equilíbrio - que me detenho.
O Ministro começa por citar a famosa frase de Montaigne, cujo sentido Kant retomaria: "Tratar a maneira de elevar e educar as crianças parece ser a coisa o mais importante e mais difícil de toda a ciência humana" (Ensaios, Livro 1, Capítulo XXV).
Denota, assim, a consciência da dimensão e responsabilidade que tem em mãos e, é nesse espírito, que inicia o seu texto dizendo que a França (e eu acrescento, qualquer país) não pode fugir às inquietações do mundo actual, entre as quais se contam o progresso tecnológico, os riscos do declínio económico e de implosão da sociedade...
Impõe-se, portanto, elaborar um projecto escolar assente numa filosofia clara e numa visão histórica, ambas concorrendo para que o futuro assente no passado e no presente. É isto que se me afigura extraordinário: um político escrever que a base da educação, melhor da construção da educação, deve ser esta dupla: filosofia e história
Ora, trata-se de uma dupla em tudo contrária ao mercantilismo da educação formal ao serviço de uma certa economia, que está longe de constituir benefício para todos.
Foi também com surpresa que vi ser convocada uma terceira base para tal projecto, de ordem científica e que se situa na área da psicopedagogia: os estudos sobre a cognição. Quando esta palavra desaparece do vocabulário das instâncias supranacionais e nacionais, em favor de palavras de sentido fluído, retomá-la é, devo dizer, de alguma coragem. Destaca, ainda, a necessidade de reintroduzir áreas do conhecimento que têm sido afastadas do currículo ou menorizadas: as artes estão entre elas.
Não deixando de ter em conta as orientações da OCDE e as comparações entre países proporcionada por provas internacionais (como o poderia fazer sendo político e ministro?), a mensagem em que insiste é que não será possível construir um futuro para a educação na ausência ou descuido destas três bases.
sexta-feira, 24 de agosto de 2018
SOBRE OS IMPOSTOS (NO MÊS EM QUE HÁ PAGAMENTOS DE IRS)
Diálogo fictícipo entre Colbert e Mazarino durante o reinado de Luís XIV em "Le Diable Rouge", uma peça de teatro do francês Antoine Rault:
" • Colbert: Para encontrar dinheiro, há um momento em que enganar [o contribuinte] já não é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é que é possível continuar a gastar quando já se está endividado até ao pescoço…
• Mazarino: Se se é um simples mortal, claro está, quando se está coberto de dívidas, vai-se parar à prisão. Mas o Estado… o Estado, esse, é diferente!!! Não se pode mandar o Estado para a prisão. Então, ele continua a endividar-se… Todos os Estados o fazem!
• Colbert: Ah sim? O Senhor acha isso mesmo ? Contudo, precisamos de dinheiro. E como é que havemos de o obter se já criámos todos os impostos imagináveis?
• Mazarino: Criam-se outros.
• Colbert: Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.
• Mazarino: Sim, é impossível.
• Colbert: E então os ricos?
• Mazarino: Os ricos também não. Eles não gastariam mais. Um rico que gasta faz viver centenas de pobres.
• Colbert: Então como havemos de fazer?
• Mazarino: Colbert! Tu pensas como um queijo, como um penico de um doente! Há uma quantidade enorme de gente entre os ricos e os pobres: os que trabalham sonhando em vir a enriquecer e temendo ficarem pobres. É a esses que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Esses, quanto mais lhes tirarmos mais eles trabalharão para compensarem o que lhes tirámos. É um reservatório inesgotável. "
" • Colbert: Para encontrar dinheiro, há um momento em que enganar [o contribuinte] já não é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é que é possível continuar a gastar quando já se está endividado até ao pescoço…
• Mazarino: Se se é um simples mortal, claro está, quando se está coberto de dívidas, vai-se parar à prisão. Mas o Estado… o Estado, esse, é diferente!!! Não se pode mandar o Estado para a prisão. Então, ele continua a endividar-se… Todos os Estados o fazem!
• Colbert: Ah sim? O Senhor acha isso mesmo ? Contudo, precisamos de dinheiro. E como é que havemos de o obter se já criámos todos os impostos imagináveis?
• Mazarino: Criam-se outros.
• Colbert: Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.
• Mazarino: Sim, é impossível.
• Colbert: E então os ricos?
• Mazarino: Os ricos também não. Eles não gastariam mais. Um rico que gasta faz viver centenas de pobres.
• Colbert: Então como havemos de fazer?
• Mazarino: Colbert! Tu pensas como um queijo, como um penico de um doente! Há uma quantidade enorme de gente entre os ricos e os pobres: os que trabalham sonhando em vir a enriquecer e temendo ficarem pobres. É a esses que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Esses, quanto mais lhes tirarmos mais eles trabalharão para compensarem o que lhes tirámos. É um reservatório inesgotável. "
quarta-feira, 22 de agosto de 2018
Poesia
Alguns poemas que escrevi depois de ler Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen e o poeta sírio Adonis:
1
Sê
paciente; aguarda que o sonho
Apareça
no brancor, dispa-se
De
um mar que nunca será medonho,
E
cubra-se de um sol nunca flor.
A Eugénio de Andrade
2
A
tua cintura cobriu-se de escuma
E
nela caiu atónito o olhar
Julgando
ser o início de outro mar.
A Eugénio de Andrade
3
Na
tua face rebentaram vinhas-virgens
E
águas azuis ergueram-se sedentas
E
agarraram-se a elas com vertigens.
A Eugénio de Andrade
4
Através
do chamamento da mão
Meu
coração passou como um barco
Que
sem ti está sempre a despedir-se
E a
palpar o medo e a escuridão.
A Sophia de Mello Breyner Andresen
5
É o
pôr do sol da tua face que eu busco
Através
do vento glacial e da pústula
Para
incender a amargura do crepúsculo.
A Sophia de Mello Breyner Andresen
6
Quando eu
morrer quero ao morro voltar,
Pra ver as
nuvens que não vi passar.
A Sophia de Mello Breyner Andresen
7
Na
aurora, a aurora segunda,
O
poente a arder
Na
escuma.
A Adonis
"Os Maias" podem continuar a ser lidos na escola? Sim podem!
Na continuação do texto anterior Há muito que a leitura de "Os Maias" deixou de ser obrigatória na escola
Thomas De Koninck, 2003, 11.
Os sistemas de ensino, como instâncias dos Estados (situação recentes na história da educação ocidental), instituem currículos alargados à escala nacional (e, em certos casos, regional), sendo substancialmente marcados pela orientação política, mais totalitária ou mais democrática.
Mesmo no caso de prevalecer a segunda, as decisões quanto à aprendizagem, patentes nesses currículos, nem sempre traduzem o que se tem por ideal em termos das finalidades últimas da educação escolar.
A questão, que assume a forma de dilema, é se os professores, quando vêem que tais decisões se afastam desse ideal (que não é uno mas diverso), devem ou não encontrar um compromisso entre ambos. De modo concreto: devem cumprir à letra o currículo, mesmo com a consciência de que ele é pobre, desvirtua e, eventualmente, enviesa o conhecimento, ou devem enriquecê-lo da forma que se afigurar mais conveniente.
Por múltiplas razões, que aqui omito, a opção não é fácil, mas a questão não pode desaparecer do seu horizonte, sob pena de se tornarem funcionários e se afastaram da sua vocação profissional, que é, sem dúvida, intelectual.
Este raciocínio é (também) válido para a polémica que surgiu em Julho e se prologou por Agosto sobre a leitura d´"Os Maias" no ensino secundário.
Nos três documentos curriculares vigentes para a disciplina de Português (Programa, Metas curriculares e Aprendizagens Essenciais) não está, de facto, determinado que as escolas têm de escolher a obra e, caso a escolham, que a sua leitura tem de ser integral; mas também não está determinado o contrário. Recupero a informação do último "post":
Este cenário apela, portanto para a decisão que os professores, individual e colegialmente, terão de tomar. Decisão que não pode deixar de ser apoiada no ideal de educação que assumem.
As reformas educativas fazem-se e, logo se seguida, desfazem-se, ao sabor da formação dos Governos, mas esse ideal tem de ser mais duradouro e substancial. É ele, afinal, que confere sentido à profissão docente.
"O principal obstáculo às reformas da educação -
são sempre anunciadas e empreendidas
com mais pompa do que sucesso
nos países ocidentais favorecidos (...)."
nos países ocidentais favorecidos (...)."
Thomas De Koninck, 2003, 11.
Os sistemas de ensino, como instâncias dos Estados (situação recentes na história da educação ocidental), instituem currículos alargados à escala nacional (e, em certos casos, regional), sendo substancialmente marcados pela orientação política, mais totalitária ou mais democrática.
Mesmo no caso de prevalecer a segunda, as decisões quanto à aprendizagem, patentes nesses currículos, nem sempre traduzem o que se tem por ideal em termos das finalidades últimas da educação escolar.
A questão, que assume a forma de dilema, é se os professores, quando vêem que tais decisões se afastam desse ideal (que não é uno mas diverso), devem ou não encontrar um compromisso entre ambos. De modo concreto: devem cumprir à letra o currículo, mesmo com a consciência de que ele é pobre, desvirtua e, eventualmente, enviesa o conhecimento, ou devem enriquecê-lo da forma que se afigurar mais conveniente.
Por múltiplas razões, que aqui omito, a opção não é fácil, mas a questão não pode desaparecer do seu horizonte, sob pena de se tornarem funcionários e se afastaram da sua vocação profissional, que é, sem dúvida, intelectual.
Este raciocínio é (também) válido para a polémica que surgiu em Julho e se prologou por Agosto sobre a leitura d´"Os Maias" no ensino secundário.
Nos três documentos curriculares vigentes para a disciplina de Português (Programa, Metas curriculares e Aprendizagens Essenciais) não está, de facto, determinado que as escolas têm de escolher a obra e, caso a escolham, que a sua leitura tem de ser integral; mas também não está determinado o contrário. Recupero a informação do último "post":
Programa e Metas Curriculares: leitura integral de um, de entre dois, romances do autor: “Os Maias” ou “A Ilustre Casa de Ramires”.
Aprendizagens Essenciais: leccionação de “um romance” de EçaAssim, à luz do que se encontra estabelecido pela tutela, o livro em causa continua a poder ser leccionado, como pode ser leccionado outro livro de Eça de Queirós. E a leitura do livro escolhido pode ser integral.
Este cenário apela, portanto para a decisão que os professores, individual e colegialmente, terão de tomar. Decisão que não pode deixar de ser apoiada no ideal de educação que assumem.
As reformas educativas fazem-se e, logo se seguida, desfazem-se, ao sabor da formação dos Governos, mas esse ideal tem de ser mais duradouro e substancial. É ele, afinal, que confere sentido à profissão docente.
domingo, 19 de agosto de 2018
Há muito que a leitura de "Os Maias" deixou de ser obrigatória na escola
"... os jovens entre os 12 e 18 anos
usam a Língua Portuguesa de forma pragmática
usam a Língua Portuguesa de forma pragmática
e recorrem apenas a cerca de 1500 palavras para se expressarem (...).
Ora, para ler os livros de Eça de Queiroz,
é necessário dominar 20.000 a 30.000 palavras (…).
A leitura de obras obrigatórias na escola,
apesar do carácter aparentemente sacrificador,
têm um efeito altamente disciplinador da memória,
do conhecimento, da história, da estrutura das narrativas..."
Miguel Real (ver aqui)
Com a publicação das “Aprendizagem Essenciais” para a disciplina de Português do Ensino Secundário, “Os Maias”, talvez a obra mais conhecida de Eça de Queirós, deixa de ser de leitura obrigatória no 11.º ano.
1. Trata-se, como consta em alguns desses artigos, de uma ideia errada pois há mais de quinze anos que a tutela não determina esta leitura como obrigatória. Para sustentar esta afirmação consultei os documentos curriculares mais recentes para esta disciplina:
No Programa de Português para os Cursos Científico-Humanísticos e Tecnológicos homologado em 2002 (para 11.º e 12.º anos) (ver aqui):
- não há qualquer referência à obra, ainda que haja quatro referências ao autor (páginas 14, 42, 58 e 73);
- indica-se como conteúdo para o 11.º ano, no âmbito dos “textos narrativos e descritivos”, a “leitura integral” de um romance de Eça de Queirós, sendo isto mesmo reiterado numa tabela em que constam os aspectos a ter em conta na análise da obra escolhida (categorias do texto narrativo, contexto ideológico e sociológico, valores e atitudes culturais, características da prosa queirosiana).
No Programa e Metas Curriculares de Português para o mesmo âmbito de ensino, homologado em 2014 e em vigor (ver aqui):
- indica-se, em duas passagens (páginas 20 e 35), a leitura integral de um, de entre dois, romances do autor: “Os Maias” ou “A Ilustre Casa de Ramires”.
No documento Aprendizagens Essenciais, recentemente homologado (ver aqui):
- indica-se a leccionação de “um romance” de Eça (página 8), na perspectiva de que o aluno deve ser capaz de “interpretar obras literárias de autores marcantes entre os séculos XVII e XIX” e Eça é um dos autor mencionado na lista apresentada. Não é explícito, mas presume-se, que a leitura seja integral.
2. Nesses artigos que li encontrei duas opiniões: uma a favor de que "Os Maias” sejam de leitura obrigatória ou fortemente recomendada; outra contra a imposição de livros concretos por parte do Ministério da Educação, cabendo tal escolha às escolas, aos professores e aos alunos.
Nada de novo numa antinomia recorrente, cujo debate nunca chegou a lado algum.
Não sendo especialista em literatura, sou sensível à posição de quem sabe (como Carlos Reis, Helena Buescu e António Carlos Cortez) e diz que a obra em causa, dada a sua especificidade a diversos níveis, deve ser lida na escola.
Acrescento que sendo necessária alguma diversidade no currículo escolar, antes de mais há que assegurar alguma uniformidade, de modo a conseguir-se um quadro de referências civilizacionais comuns. Esse quadro tem de ser elaborado com o maior conhecimento e discernimento, à margem de toda e qualquer ideologia que conduza ao doutrinamento, afastando a educação.
3. Dando-se o caso de, em algumas escolas, haver professores que muito compreensivelmente persistam na escolha d´"Os Maias", a obra será, de facto, lida por uma maioria ou por uma minoria de alunos? Todos aqueles que a lerem, conseguirão compreender o seu conteúdo? Conseguirão apreciá-la, frui-la?
Não disponho de dados concretos, apoio-me numa observação casuística e, devo dizer que, com base nela, a minha resposta não é animadora. Penso, de facto, que serão raros os alunos que lêem a obra na sua totalidade, quanto muito passarão os olhos por ela. E porquê? Parece-me haver duas explicações que estão, de resto, interligadas:
- uma explicação é que os alunos não são devida e adequadamente chamados para a literatura ao longo da escolaridade. Ler é uma tarefa de grande complexidade que requer, entre outros requisitos, continuidade e progressividade. Pouco tendo lido (em livros, não em manuais) até ao secundário, quando se lhe diz "lê!" e se lhes indica um livro com centenas de páginas, com um vocabulário que não entendem, é normal que tenham dificuldade em pegar-lhe, e que, caso o façam, desanimem. São muitas as dificuldades com que se confrontam, desde o vocabulário à fluência de leitura, passando pela experiência da interioridade.
- outra explicação é que os alunos sabem perfeitamente que não é preciso ler esta obra (ou qualquer outra) para passarem de ano e, até, para terem notas aceitáveis, fim último que, como sociedade, lhe damos a entender que é o da escola. Além disso, pomos ao seu dispor resumos e resumos de resumos e todas as análises "exigidas" nos documentos curriculares, mais as interpretações possíveis... Tudo disponível em cadernos fininhos, em sites onde encontram slides animados, e, se não quiserem ou não souberem ler, mensagens em áudio para descarregarem no tablet ou no telemóvel...
4. Aprender é uma tarefa que requer esforço dos alunos e, por isso mesmo, não pode dispensar o acompanhamento dos professores. Nesse acompanhamento, se queremos que muitos mais leiam livros e o façam de modo compreensivo e com envolvimento, temos de começar cedo e de o fazer bem.
Talvez aqui a analogia com a prática de um desporto seja aceitável: não podemos esperar que alguém corra a maratona se não se preparou sequer para correr e, mais, não vê qualquer sentido nisso.
NOTA: Este texto tem continuação aqui.
Talvez aqui a analogia com a prática de um desporto seja aceitável: não podemos esperar que alguém corra a maratona se não se preparou sequer para correr e, mais, não vê qualquer sentido nisso.
NOTA: Este texto tem continuação aqui.
sábado, 18 de agosto de 2018
A MATEMÁTICA É UMA ESCADA
Na revisão que estou a fazer do livro "Évora, anos 30 e 40", deparei com esta frase do meu professor de Matemática que me apeteceu reproduzir no seu contexto.
"Bom aluno em Ciências Naturais, cheguei ao final do 7.º ano (o actual 11.º). Aí, como nos tempos que correm, a razia no exame de Matemática foi quase total e nessa quase totalidade estava eu.
E a causa destas razias foi e é, sem dúvida, nas mais das vezes, a falta de qualidade do professor.
Na repetição desta disciplina apanhei o Dr. João Seruca, com quem o insucesso escolar nada queria, ao contrário do que tinha sido o seu antecessor. Com o novo professor passei a gostar de Matemática e fui, pela primeira vez, bom aluno nesta disciplina. Com ele comecei a consertar e a repor todos os degraus, dos mais baixos aos mais altos, que me faltavam para poder subir, sem tropeçar, a este maravilhoso edifício do saber racional.
– A Matemática, - disse-me um dia – é uma escada, sobes um degrau de cada vez. E se, em cada degrau, assentares bem os pés, podes subir até onde quiseres".
A. Galopim de Carvalho
Max Tegmark: «Há uma grande pressão econômica para tornar os humanos obsoletos»
Entrevista de Max Tegmark ao El país - Brasil sobre inteligência artificial
Em seu livro Life
3.0, o professor do MIT apresenta argumentos para um debate global
que evite um desastre com a chegada da Inteligência Artificial
que evite um desastre com a chegada da Inteligência Artificial
Quando o rei Midas pediu a Dionísio que transformasse em
ouro tudo o que tocasse, cometeu uma falha de programação. Não pensava que o
deus seria tão literal ao lhe conceder o desejo, e só se tornou consciente de
seu erro quando viu sua filha transformada em uma estátua metálica. Max Tegmark
(Estocolmo, 1967) acredita que a Inteligência Artificial pode apresentar riscos
e oportunidades similares para a humanidade. O professor do MIT e diretor do
Future of Life Institute, em Cambridge (EUA), estima que o advento de uma
Inteligência Artificial geral (IAG) que supere a humana é questão de décadas.
Em sua visão do futuro, poderíamos acabar vivendo numa civilização idílica,
onde robôs superinteligentes fariam nosso trabalho, criariam curas para todas
as nossas doenças e desenvolveriam sistemas para ordenhar a energia descomunal
dos buracos negros. Entretanto, se não formos capazes de lhe transmitir nossos
objetivos com precisão, também é possível que essa nova inteligência dominante
não se interesse por nossa sobrevivência, ou mesmo que assuma um objetivo
absurdo como transformar em clipes metálicos todos os átomos do Universo,
inclusive os que formam nossos corpos.
Para evitar o apocalipse, Tegmark considera que a comunidade
global deve se envolver num debate para orientar o desenvolvimento da
Inteligência Artificial em nosso benefício. Essa discussão deverá encarar
problemas concretos, como a gestão das desigualdades geradas pela automatização
do trabalho, mas também um intenso esforço filosófico que triunfe onde estamos
há séculos fracassando e permita definir de comum acordo o que é bom para toda
a humanidade, para depois inculcar isso nas máquinas.
Estes e outros temas relativos à discussão, que Tegmark
considera ser a mais importante para o futuro da humanidade, são analisados por
ele em seu livro Life 3.0 (“vida 3.0”), que tem por subtítulo “o ser humano na
era da Inteligência Artificial”. Trata-se de um ambicioso ensaio, recomendado
por gurus como Elon Musk, em que o cosmólogo sueco busca se antecipar ao que pode
acontecer durante os próximos milênios.
Pergunta. Os humanos, em particular durante os últimos dois
ou três séculos, tivemos muito sucesso em compreender o mundo físico, graças ao
avanço de disciplinas como a física e a química, mas não parece que tenhamos
sido tão eficazes de entender a nós mesmos, descobrindo como sermos felizes ou
chegando a acordos sobre como fazer um mundo melhor para todos. Como vamos
manejar os objetivos da IAG sem antes alcançar acordos sobre esses assuntos? Se
você olhar as motivações das companhias que estão desenvolvendo a IA, a
principal é ganhar dinheiro
Resposta. Acho que nosso futuro pode ser muito interessante
se ganharmos a corrida entre o poder crescente da tecnologia e a sabedoria com
que se administra essa tecnologia. Para isso, temos que mudar as estratégias.
Nossa estratégia habitual consistia em aprender com nossos erros. Inventamos o
fogo, pisamos na bola umas quantas vezes, e depois inventamos o extintor;
inventamos o carro, voltamos a pisar na bola várias vezes, e inventamos o cinto
de segurança e o airbag. Mas com uma tecnologia tão poderosa como as armas
atômicas e a Inteligência Artificial sobre-humana não vamos poder aprender com
nossos erros. Precisamos ser proativos.
É muito importante que não deixemos as discussões sobre o
futuro da IA para um grupo de freaks da tecnologia, como eu, e sim que
incluamos psicólogos, sociólogos e economistas para que participem do diálogo.
Porque, se o objetivo é a felicidade humana, temos que estudar o que significa
ser feliz. Se não fizermos isso, as decisões sobre o futuro da humanidade serão
tomadas por alguns freaks da tecnologia, algumas companhias tecnológicas e
alguns Governos, que não necessariamente serão os mais bem qualificados para
tomarem essas decisões para toda a humanidade.
P. A ideologia ou a visão de mundo das pessoas que
desenvolverem a Inteligência Artificial geral definirá o comportamento dessa
inteligência?
O Governo espanhol
recusou-se a aderir a outros países na ONU para proibir as armas letais autônomas
R. Muitos dos líderes tecnológicos que estão construindo a
IA são muito idealistas. Querem que isto seja algo bom para toda a humanidade.
Mas se você olhar as motivações das companhias que estão desenvolvendo a IA, a
principal é ganhar dinheiro. Você sempre ganhará mais dinheiro se substituir
humanos por máquinas que possam fazer os mesmos produtos mais baratos. Não
ganha mais dinheiro desenhando uma IA que seja mais bondosa. Há uma grande
pressão econômica para tornar os humanos obsoletos. A segunda grande motivação
entre os cientistas é a curiosidade. Queremos ver como se pode fazer uma
Inteligência Artificial apenas para ver como funciona, às vezes sem pensar
muito nas consequências. Conseguimos construir armas atômicas porque havia
gente com curiosidade por saber como os núcleos atômicos funcionavam. E depois
de inventá-las, muitos daqueles cientistas desejaram não tê-las feito, mas já
era tarde demais, porque àquela altura já havia outros interesses controlando
esse conhecimento.
P. No livro, você parece dar como fato consumado que a IA
facilitará a eliminação da pobreza e do sofrimento. Com a tecnologia e as
condições econômicas atuais, já temos a possibilidade de evitar uma grande
quantidade de sofrimento, mas não o evitamos porque não nos interessa o
suficiente, ou não interessa às pessoas com o poder necessário para tal. Como
podemos evitar que isso aconteça quando tivermos os benefícios da Inteligência
Artificial?
R. Em primeiro lugar, a própria tecnologia pode ser muito
útil de muitas maneiras. A cada ano morre em acidentes de tráfego muita gente
que provavelmente não morreria se andasse em carros autônomos. E há mais gente
na América, dez vezes mais, que morre em acidentes hospitalares. Muitas dessas
pessoas poderiam se salvar se o IA se fosse usada para diagnosticar melhor ou
para criar melhores remédios. Todos os problemas que não fomos capazes de
resolver devido à nossa limitada inteligência são algo que a IA poderia
resolver. Mas isso não é suficiente. Como você diz, temos atualmente muitos problemas
que sabemos exatamente como resolver, como o fato de haver crianças que vivem
em países ricos e não estão bem alimentadas. Não é um problema tecnológico, é
um problema de falta de vontade política. Isto mostra como é importante que as
pessoas participem desta discussão e que selecionemos as prioridades corretas.
Na Espanha, por exemplo, o Governo se recusou a se somar à Áustria e muitos
outros países na ONU num esforço para proibir as armas letais autônomas. A
Espanha apoiou a proibição das armas biológicas, algo que os cientistas dessa
área apoiavam, mas não fez o mesmo para apoiar os especialistas em IA. Isto é
algo que as pessoas podem fazer: incentivar seus políticos a confrontarem estes
assuntos e nos assegurarmos de que guiamos a tecnologia na direção adequada.
Nos próximos três anos começará uma nova corrida armamentista, com armas letais autônomas
P. A conversa que você propõe em Life 3.0 sobre a
Inteligência Artificial no fundo é muito parecida com a que deveríamos ter
sobre política em geral, sobre como convivemos entre nós ou como compartilhamos
os recursos. Como acha que a mudança na situação tecnológica vai alterar o
debate público?
R. Acredito que vai tornar as coisas mais drásticas. As
mudanças produzidas pela ciência estão se acelerando, todo tipo de trabalho
desaparecerá cada vez mais rápido. Muitos riem de quem votou em Trump ou a
favor do Brexit, mas sua raiva é muito real, e os economistas lhe dirão que as
razões pelas quais esta gente está irritada, por serem mais pobres do que eram
seus pais, são reais. E enquanto não se fizer nada para resolver esses
problemas reais seu aborrecimento aumentará.
A Inteligência Artificial pode gerar uma quantidade enorme
de nova riqueza, não se trata de um jogo de soma zero. Se nos convencermos de
que haverá suficientes impostos para proporcionar serviços sociais e uma renda
básica, todo mundo estará feliz ao invés de irritado. Há gente a favor da renda
básica universal, mas é possível que haja melhores formas de resolver o
problema. Se os governos forem dar dinheiro às pessoas só para lhes ajudar,
também pode dá-lo para que as pessoas trabalhem como enfermeiras ou como
professoras, o tipo de trabalho que se sabe que dá um propósito à vida da
gente, conexões sociais...
Não podemos voltar aos critérios de distribuição do Egito
dos faraós, onde tudo estava nas mãos de um punhado de indivíduos, mas se uma
só companhia puder desenvolver uma Inteligência Artificial geral, é só questão
de tempo para que essa companhia possua quase tudo. Se as pessoas que acumularem
esse poder não quiserem compartilhá-lo, o futuro será complicado.
P. Se não fizermos nada, qual seriam as principais ameaça
provocadas pelo desenvolvimento da IA?
R. Nos próximos três anos começaremos uma nova corrida
armamentista com armas letais autônomas. Serão fabricadas de forma maciça pelas
superpotências, e em pouco tempo organizações como o Estado Islâmico poderão
tê-las. Serão as AK-47 do futuro, salvo que neste caso são máquinas perfeitas
para perpetrar assassinatos anônimos. Em 10 anos, se não fizermos nada, veremos
mais desigualdade econômica. E, por último, há muita polêmica sobre o tempo
necessário para criar uma Inteligência Artificial geral, mas mais da metade dos
pesquisadores de IA acredita que isso acontecerá em décadas. Em 40 anos nos
arriscamos a perder completamente o controle do planeta para as mãos de um
pequeno grupo de gente que desenvolver a IA. Esse é o cenário catastrófico.
Para evitá-lo, precisamos que as pessoas participem do diálogo.
Daniel Mediavilla 2018-8-14
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/07/tecnologia/1533664021_662128.html
sexta-feira, 17 de agosto de 2018
NOVO LIVRO DO “POETA DO ESPAÇO”
Artigo primeiramente publicado na imprensa regional portuguesa.
Hubert Reeves,
astrofísico nascido em 1932 na cidade de Montreal, no Canadá, tem-se destacado
como um dos mais prolíficos e populares divulgadores de astronomia e
astrofísica a nível mundial. Com mais de uma dezena de livros de divulgação
científica publicados em diversos países, que alcançaram muito sucesso, Reeves
destaca-se pela sua escrita translúcida e acessível, mas que mantém o rigor
científico, escrita pautada com um estilo poético que o caracteriza e que, por
isso, é por muitos considerado como o “Poeta do Espaço”.
Entre nós, as obras de
Hubert Reeves têm sido publicadas pela editora Gradiva, principalmente na sua
prestigiada colecção “Ciência Aberta”. O primeiro, “Um pouco mais de Azul”,
publicado em 1983, foi logo o número 2 desta colecção. O leitor encontra na
“Ciência Aberta” os outros títulos deste autor, cuja leitura continua sempre
interessante e actual.
E, neste último mês de
Julho, foi publicado o mais recente livro deste cativante astrofísico: tem por
título “O Banco do Tempo que Passa – Meditações Cósmicas”, e é o número 228 da
colecção “Ciência Aberta” da Gradiva.
Com tradução de Tiago
Marques e revisão científica de Carlos Fiolhais, este novo livro de Hubert
Reeves é destinado a todos os que se questionam sobre a natureza do Universo,
sobre as questões imemoriais e primordiais da Humanidade, sobre as novas questões
que o conhecimento científico tem feito desabrochar, sobre as questões que
ainda não têm resposta e que nos inquietam. Como escreve Hubert Reeves no
Preâmbulo, “este livro destina-se a todos os que se interrogam sobre o grande
mistério da realidade na qual o nascimento nos pôs a viver durante algum
tempo”. É um livro para todos.
Ao longo de 336 páginas,
Hubert Reeves partilha connosco as suas reflexões e a sua visão do Universo em
que coabitamos e convida-nos a participar nesta aventura Humana que é a de sermos
capazes de nos interrogar sobre a nossa própria existência, sobre as nossas
origens e o nosso destino.
Com uma liberdade de
pensamento genuína e livre de preconceitos, mantendo uma consciência lúcida
sobre a incompletude do conhecimento científico e o papel crucial da dúvida, do
erro e da incerteza na ciência, com uma humildade que advém da consciência da
ainda muita ignorância que detemos sobre como o Universo “funciona”, Reeves
reflecte connosco sobre a existência de Deus, sobre a necessidade de humanizar
a Humanidade, sobre as alterações climáticas, sobre a evolução do Universo
desde o Big Bang até ao aparecimento da consciência neste planeta azul, sobre o
papel do acaso na evolução e no aumento da complexidade do Universo, entre
muitos outros assuntos com que todos somos confrontados ao longo da nossa
viagem pela vida.
Carlos Fiolhais escreve
que este “é o livro dos livros de Reeves: uma súmula dos seus pensamentos sobre
o Universo e sobre nós próprios”. E é, de facto, um privilégio podermos partilhar
com o Hubert Reeves o seu conhecimento e cultura, o seu fascínio pela música e
outras formas de arte que são, segundo o astrofísico, as expressões mais
maravilhosas da evolução da vida no nosso planeta.
Sentemo-nos com Hubert
Reeves neste seu “Banco do Tempo que Passa” e enriqueçamo-nos com os diálogos
que ele estabelece com o leitor. Um livro para ler e reler ao acaso da nossa
liberdade de escolha e interesse.
António Piedade
quarta-feira, 15 de agosto de 2018
"Ciência e Literatura" no IV Festival Literário de Ovar
No próximo dia 16 de Setembro, pelas 15 h, estarei à conversa sobre "ciência e literatura" com a poeta, crítica literária e ensaísta Maria João Cantinho no IV Festival Literário de Ovar, uma iniciativa da Câmara Municipal de Ovar.
O coordenador do Festival, Carlos Nuno Granja, apresenta-o assim;
"A quarta edição do Festival Literário de Ovar (FLO4) vem revelar a consolidação de um evento com cariz alternativo no panorama nacional dos eventos literários. A sua proximidade com os
leitores, num ambiente informal e descontraído, em que a leitura realizada vai ao encontro
dos interesses comuns de todos os participantes. O seu ambiente informal e a envolvência
descontraída facilitam um convívio mais generalizado, de grande proximidade entre os
escritores e os leitores. Este evento busca a promoção e a consolidação da leitura, afirmando a
importância da literacia na construção de uma identidade e do pensamento livre em constante
reflexão, algo que só os livros nos pode conceder.
A continuidade da aposta na cultura e num evento literário dão corpo a uma visão mais
abrangente da atualidade e da constante evolução dos nossos tempos. A literacia, a nossa
literatura deixou um legado único no mundo. Somos um país de poetas, de gente que sempre
soube mostrar os sentimentos pelas palavras.
Assim, deixamos o convite para que participem no FLO4, que assistam às conversas, que
acompanhem as diversas atividades. Serão quatro dias de grande amizade, com os livros, entre
os livros, para todos."
O coordenador do Festival, Carlos Nuno Granja, apresenta-o assim;
"A quarta edição do Festival Literário de Ovar (FLO4) vem revelar a consolidação de um evento com cariz alternativo no panorama nacional dos eventos literários. A sua proximidade com os
leitores, num ambiente informal e descontraído, em que a leitura realizada vai ao encontro
dos interesses comuns de todos os participantes. O seu ambiente informal e a envolvência
descontraída facilitam um convívio mais generalizado, de grande proximidade entre os
escritores e os leitores. Este evento busca a promoção e a consolidação da leitura, afirmando a
importância da literacia na construção de uma identidade e do pensamento livre em constante
reflexão, algo que só os livros nos pode conceder.
A continuidade da aposta na cultura e num evento literário dão corpo a uma visão mais
abrangente da atualidade e da constante evolução dos nossos tempos. A literacia, a nossa
literatura deixou um legado único no mundo. Somos um país de poetas, de gente que sempre
soube mostrar os sentimentos pelas palavras.
Assim, deixamos o convite para que participem no FLO4, que assistam às conversas, que
acompanhem as diversas atividades. Serão quatro dias de grande amizade, com os livros, entre
os livros, para todos."
Por que caem as pontes?
A propósito da queda da ponte em Génova, Itália, transcrevo aqui o meu artigo relativo à queda da ponte de entre os Rios que saiu no meu livro "A coisa mais preciosa que temos (Gradiva, 2002; está esgotado):
Desde
que o homem existe sobre a Terra que vê os objectos caírem para a superfície do
planeta, atraídos sem dó nem piedade pela força da gravidade. Mas só desde há
cerca de trezentos anos, com os trabalhos de Galileu e Newton, é que se
conseguiu, em primeiro lugar, descrever os movimentos de queda e, em segundo
lugar, compreender as causas desses movimentos.
Também
desde que o homem existe sobre a Terra que faz edifícios e pontes de modo que
eles não caiam logo. A tecnologia da construção que permitiu as pontes romanas
ou as catedrais da Idade Média foi de base empírica. Construía-se e, se a
construção não caísse, então... ficava de pé. Experimentava-se tal como se faz
ao provar um produto culinário. O conto de Alexandre Herculano sobre a abóbada
da Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha é elucidativo: o arquitecto Afonso
Domingues teria permanecido debaixo da abóbada para se certificar da respectiva
segurança. Segundo um estudioso das catedrais góticas, as construções que não caem
nos primeiros cinco minutos não cairão nos seguintes quinhentos anos... Talvez
seja verdade para edifícios de pedra fundados em rocha firme. Mas há excepções,
como a Torre de Pisa, erguida no século XVI e emblematicamente associada a
Galileu, que não caiu nos primeiros cinco minutos mas, que devido a
inconsistências do solo, tem vindo a cair desde então. Não fora a tecnologia
moderna que hoje a segura e cairia rapidamente.
A
tecnologia de fazer e manter edifícios e pontes – a Engenharia Civil – conheceu
forte expansão nos séculos XVIII e XIX pelo simples facto de se ter percebido
que a mecânica de Galileu e Newton, com as mais-valias introduzidas por outros
cientistas como Hooke, Cauchy, Young, etc., permitia efectuar cálculos de
forças e, portanto, conhecer antecipadamente a estabilidade estrutural de uma
dada “obra de arte” (curiosa esta expressão usada em Engenharia Civil mesmo
para as obras cuja fealdade é evidente). A física, cuja linguagem natural é a
matemática, permitiu prever não só se uma obra teria a devida segurança mas
também escolher os materiais mais adequados para a construir e a melhor maneira
de ligar a forma com a função (assegurando uma verdadeira vertente estética).
Como disse Franklin Guerra, em “História da Engenharia em Portugal”, edição do
autor de 1995, o Eng. Edgar Cardoso passou de comboio na primeira travessia da
sua ponte de S. João, no Porto, com a mesma segurança com que Afonso Domingues
se teria colocado no centro da sala capitular (manda a verdade dizer que foi o
mestre francês Huguet o provável autor da abóbada onde Herculano decidiu
colocar Domingues, o arquitecto-geral da obra).
No
século XIX, o ferro passou a ser material de construção das pontes,
complementarmente à pedra ou mesmo substituindo-a totalmente. Sintomático da
importação que fizemos da Revolução Industrial chegou cá talvez seja o facto de
terem sido engenheiros franceses (vide o caso de Gustave Eiffel, autor da ponte
de Maria Pia, no Porto) e ingleses que projectaram muitas das pontes
portuguesas erguidas nesse século (a ponte de Entre-os-Rios, em Castelo de
Paiva, que desabou em 2001 não é excepção). Segundo Franklin Guerra:
“Durante todo o
século do ferro, o país vegetou numa quase total dependência em
matérias-primas, equipamentos mecânicos e matéria cinzenta.”
Claro
que avançámos... mas os outros países avançaram ainda mais. Talvez seja também
sintomático das nossas debilidades estruturais o facto daquela que até há pouco
era a maior das nossas pontes – a Ponte 25 de Abril - ter sido erguida, durante
o Estado Novo, por tecnologia norte-americana, incorporando embora uma parcela
nacional. E é também elucidativo o facto de, no desastre ocorrido durante a
construção da ponte Vasco da Gama, terem morrido quase só engenheiros e
operários estrangeiros (os últimos africanos).
A
velha ponte de Maria Pia não caiu, embora tenha sido substituída pela ponte de
São João. As modernas Ponte 25 de Abril e Ponte Vasco da Gama (esta última é a
nossa maior e a segunda maior da Europa) aí estão impecavelmente de pé. Assim
como estão no ar as outras pontes do Eng. Edgar Cardoso. Por que caiu então a
ponte de Entre-os-Rios?
Caiu
porque nada é eterno, nem as pontes. Os materiais corroem. Os defeitos alstram.
As fundações fragilizam. O remédio é estar atento e vigiar, reparar e
substituir. No Porto, a ponte de Maria Pia foi substituída a tempo e, em
Lisboa, a Ponte 25 de Abril tem sido reparada (de resto, tem alternativa na
Ponte Vasco da Gama). O engenheiro J. E. Gordon, autor do interessante livro
”Structures or Why Things Don’t Fall Down”, Penguin, 1978, põe o dedo na
ferida:
“Todas as estruturas acabam quebradas ou destruídas –
tal e qual como as pessoas, que acabam por morrer. O propósito da medicina e da
engenharia é adiar estas ocorrências por um intervalo de tempo decente”.
A
ponte de Entre-os-Rios viveu mais de cinco minutos e menos do que quinhentos
anos: apenas pouco mais de cem anos. Será um tempo de vida decente? Não. Foi
indecente a morte que teve e as mortes que causou. O acidente, como muitos
outros, foi perfeitamente escusado. Não tendo havido defeito óbvio de
construção nem sendo os materiais desadequados de todo, a vigilância e a
reparação da ponte foram pura e simplesmente insuficientes. Não serve dizer que
a ponte foi feita há mais de um século para diligências a cavalo: a ponte de
Maria Pia também não foi feita para os modernos comboios, mas foi primeiro
reparada e depois substituída. Também não serve dizer que há desastres naturais
imprevisíveis (“os actos de Deus”, como se dizia nas antigas apólices de seguro),
pois as cheias do mesmo rio não levaram outras pontes, obviamente mais
preparadas para as intempéries. O que aconteceu era, pelo menos para alguns,
perfeitamente previsível. O fim da velha ponte era tão previsível que havia
planos, infelizmente adiados, para erguer uma nova ponte.
A
queda da ponte é, afinal, um indicador da falta de cultura científica e
tecnológica. Importámos a ciência e a tecnologia mas não as interiorizámos, não
as colocámos de forma consequente ao serviço das nossas vidas. Confiamos demais
na sorte. Ignoramos que a ciência e a tecnologia fazem previsões a respeito do
mundo e que, com isso, podemos acautelar o nosso futuro. Claro que não se faz
isso com absoluta certeza mas sim, o que já chega, com suficiente
probabilidade. O engenheiro J. E. Gordon, muito antes da queda de pontes
portuguesas, tem no livro citado uma secção intitulada “O design do engenheiro
como teologia aplicada”, cuja adequação ao caso da ponte de Entre os Rios é
evidente. Apesar do extracto ser longo, vale a pena trancrever:
“Em quase todos os acidentes temos de distinguir dois
níveis de causas. O primeiro é a razão imediata, técnica ou mecânica para o
acidente; o segundo é a razão humana subjacente. É bem verdade que o design não
é uma coisa muito precisa, que acontecem coisas inesperadas, que ocorrem erros
genuínos, etc., mas na maior parte dos casos a razão ‘real’ de um acidente é um
erro humano que se pode prevenir.
Está hoje na moda supor que o erro é uma das coisas pelas
quais não é justo acusar as pessoas, que, no fim de contas, fazem ‘o seu
melhor’ ou são vítimas da sua educação e do seu ambiente, ou do sistema social,
etc. Mas o erro oculta-se naquilo que não está na moda chamar ‘pecado’ (...)
Muitos poucos acidentes ‘acontecem’ de um modo moralmente neutro. Nove em cada
dez acidentes são causados não por efeitos técnicos mais ou menos abstrusos,
mas pelo velho e relho pecado humano, que às vezes roça a pura malvadez.
(...) São pecados sórdidos como o descuido, a inacção, o
não-pergunto-nem-preciso-de-aprender, o
ninguém-me-pode-dizer-nada-sobre-o-meu-trabalho, o orgulho, a inveja e a
cupidez que matam as pessoas (...) Sob a pressão do orgulho e da inveja, da
cupidez e da rivalidade política, só se atende às miudezas do quotidiano. As
avaliações gerais, o primado da engenharia, acabam por se tornar impossíveis.
As coisas tornam-se imparáveis e deslizam para o desastre à vista de todos.
Assim se cumprem os desígnios de Zeus”.
No
rio Douro não se passou uma tragédia grega mas uma tragédia portuguesa. Passou-se
uma tragédia muito nossa, que tem raízes fundas na nossa história. Se fizermos
uma avaliação geral, reconheceremos tratar-se apenas e infelizmente de parte de
uma tragédia maior que é a ignorância continuada das leis do funcionamento do
mundo.
Prémio Ler+
O Prémio Ler+ tem
por finalidade reconhecer trabalhos realizados em prol do
desenvolvimento e da melhoria das competências de leitura, do fomento do
gosto pela leitura e pela escrita, contribuindo assim para o aumento e
consolidação dos hábitos de leitura dos portugueses.
Instituído
pelo Plano Nacional de Leitura, (PNL2027), o prémio, que se propõe
galardoar pessoas ou entidades que pela sua excelência se destacam
nestes domínios, conta com o patrocínio exclusivo da Fundação La Caixa e
do BPI, no valor de 10.000 euros.
As candidaturas
estão abertas, entre os dias 18 de julho e 30 de setembro, a todos os
que pretendam concorrer ao Prémio Ler+, em conformidade com o regulamento publicado.
Os resultados serão divulgados na conferência anual do PNL, que se realiza no próximo dia 31 outubro.
Na
expectativa de que a 1.ª edição do prémio possa vir a ter uma adesão
alargada, apelamos à participação dos interessados, na convicção de que
são muitos os que reúnem condições e qualificações para se candidatarem.
Contamos
igualmente com a colaboração de todos na divulgação desta iniciativa,
incentivando colegas e amigos a submeter os seus trabalhos ao Prémio
Ler+.
"Ciência, pseudociência e não ciência" no Congresso dos Psicólogos Portugueses
No próximo dia 12 de Setembro, pelas 18 h, estarei no Forum Braga no IV Congresso da Ordem dos Psicólogos Portugueses para uma "psitalk" sobre o tema de cima. O programa do do Congresso está aqui.
Comentários sobre a queda da Universidade de Coimbra no ranking de Xangai
Nem sempre estou de acordo com Fernando Pacheco-Torgal, um engenheiro civil da Universidade do Minho formado na Universidade de Coimbra, que me enche a caixa do correio de emails. Mas desta vez estou. Os comentários dele, que transcrevo abaixo, sobre a resposta do Reitor de Coimbra são acertados:
- Outras universidades nacionais com dimensão menos do que a de Coimbra permanecem no top 500.
- A subida das universidades asiáticas afectará a posição de todas as universidades europeias e não apenas a de Coimbra.
Pacheco-Torgal fala da falta de "Highly cited researchers" in Coimbra nos tempos mais próximos (nem sempre foi assim). Isso deve-se a falta de uma política agressiva de contratações de jovens que se distinguem no seu trabalho científico. A ênfase da administração da Universidade de Coimbra é colocada na burocracia, designadamente nas regras dos concursos em vez de fazer como outras Universidades nacionais que procuram activamente talentos. Só com jovens cientistas de grande talento é possível assegurar uma dinâmica da investigação científica e há vários Departamentos em Coimbra onde não vemos entrarem jovens há muito tempo.
Ainda um outro ponto sobre os rankings. Valem o que valem, mas a Universidade de Coimbra andou a ufanar-se da sua posição dos rankings: ainda recentemente se ufanar com as estrelas do ranking QS, referido em baixo. Agora não pode distanciar-se dos rankings. Quer se queira quer não eles existem e o de Xangai não é dos piores.
Emails de Pacheco-Torgal:
. "Um extenso artigo hoje nas páginas 6 e 7 do jornal Público tenta explicar porque razão a Univ. de Coimbra desceu no ranking Xangai. Tenha-se presente que há um mês atrás, escrevi no email abaixo, que o pagamento que aquela mesma Universidade andou a fazer a uma firma de consultoria para subir no ranking não impediria que a mesma descesse ao invés de subir.
No artigo o Reitor daquela Universidade mostra-se confiante que para o próximo ano o resultado será melhor e tenta explicar que a chatice que agora teve lugar se fica a dever ao tamanho da instituição, pois como os seus competidores tem produtividade similar são favorecidos aqueles de maior dimensão, explicação bizarra pois as universidades de Aveiro e do Minho, que continuam no Top 500 têm menor dimensão que a de Coimbra. Diz também que os resultados se devem à entrada de novas universidades da China mas não diz porque é que esse facto não levou à saída das universidades de Aveiro e do Minho mas somente à saída da Universidade de Coimbra !
Curiosamente o artigo não menciona (talvez a jornalista se tenha esquecido dele) o segundo critério utilizado na ordenação, o número de "Highly Cited Researchers". A universidade melhor classificada neste ranking têm 109 HCR. https://clarivate.com/blog/news/clarivate-analytics-names-worlds-impactful-scientific-researchers-release-2017-highly-cited-researchers-list/ Curiosamente a Universidade de Coimbra não possui nenhum investigador dessa categoria ao contrário do que sucede com as universidades de Aveiro e do Minho e essa é pergunta que interessa fazer. Porque será que a Universidade de Coimbra não têm nenhum HCR ? Pergunta essa porém que o jornal Público preferiu não fazer.
É verdade que não é barato contratar um cientista que tenha um prémio Nobel no currículo (tema que é abordado pelo Reitor da Univ. de Lisboa no mesmo artigo) porém será por certo mais barato contratar um ou dois Highly Cited Researchers ? Talvez fizesse muito mais sentido essa alocação de verba do que andar a pagar a firmas de consultoria, despesa que não impediu a descida no presente ranking da Universidade de Coimbra.
- Outras universidades nacionais com dimensão menos do que a de Coimbra permanecem no top 500.
- A subida das universidades asiáticas afectará a posição de todas as universidades europeias e não apenas a de Coimbra.
Pacheco-Torgal fala da falta de "Highly cited researchers" in Coimbra nos tempos mais próximos (nem sempre foi assim). Isso deve-se a falta de uma política agressiva de contratações de jovens que se distinguem no seu trabalho científico. A ênfase da administração da Universidade de Coimbra é colocada na burocracia, designadamente nas regras dos concursos em vez de fazer como outras Universidades nacionais que procuram activamente talentos. Só com jovens cientistas de grande talento é possível assegurar uma dinâmica da investigação científica e há vários Departamentos em Coimbra onde não vemos entrarem jovens há muito tempo.
Ainda um outro ponto sobre os rankings. Valem o que valem, mas a Universidade de Coimbra andou a ufanar-se da sua posição dos rankings: ainda recentemente se ufanar com as estrelas do ranking QS, referido em baixo. Agora não pode distanciar-se dos rankings. Quer se queira quer não eles existem e o de Xangai não é dos piores.
Emails de Pacheco-Torgal:
. "Um extenso artigo hoje nas páginas 6 e 7 do jornal Público tenta explicar porque razão a Univ. de Coimbra desceu no ranking Xangai. Tenha-se presente que há um mês atrás, escrevi no email abaixo, que o pagamento que aquela mesma Universidade andou a fazer a uma firma de consultoria para subir no ranking não impediria que a mesma descesse ao invés de subir.
No artigo o Reitor daquela Universidade mostra-se confiante que para o próximo ano o resultado será melhor e tenta explicar que a chatice que agora teve lugar se fica a dever ao tamanho da instituição, pois como os seus competidores tem produtividade similar são favorecidos aqueles de maior dimensão, explicação bizarra pois as universidades de Aveiro e do Minho, que continuam no Top 500 têm menor dimensão que a de Coimbra. Diz também que os resultados se devem à entrada de novas universidades da China mas não diz porque é que esse facto não levou à saída das universidades de Aveiro e do Minho mas somente à saída da Universidade de Coimbra !
Curiosamente o artigo não menciona (talvez a jornalista se tenha esquecido dele) o segundo critério utilizado na ordenação, o número de "Highly Cited Researchers". A universidade melhor classificada neste ranking têm 109 HCR. https://clarivate.com/blog/news/clarivate-analytics-names-worlds-impactful-scientific-researchers-release-2017-highly-cited-researchers-list/ Curiosamente a Universidade de Coimbra não possui nenhum investigador dessa categoria ao contrário do que sucede com as universidades de Aveiro e do Minho e essa é pergunta que interessa fazer. Porque será que a Universidade de Coimbra não têm nenhum HCR ? Pergunta essa porém que o jornal Público preferiu não fazer.
É verdade que não é barato contratar um cientista que tenha um prémio Nobel no currículo (tema que é abordado pelo Reitor da Univ. de Lisboa no mesmo artigo) porém será por certo mais barato contratar um ou dois Highly Cited Researchers ? Talvez fizesse muito mais sentido essa alocação de verba do que andar a pagar a firmas de consultoria, despesa que não impediu a descida no presente ranking da Universidade de Coimbra.
De: F. Pacheco Torgal
Enviado: 2 de Julho de 2018 8:34
Assunto: O vice-reitor explica
Enviado: 2 de Julho de 2018 8:34
Assunto: O vice-reitor explica
No Sábado um certo vice-reitor de universidade que prefiro não
identificar, pois que em face da noticia em causa, me envergonho de me
lá ter licenciado no inicio da década de 90, resolveu dizer numa certa
imprensa paga maravilhas do ranking QS (aquele ranking
comentado noutros emails meus) e muito pior do que isso explicar que
aquela universidade é uma das contribuidoras para os lucros da empresa
que elabora tal ranking para assim poder ter direito a uma série de
estrelas. Explica o vice-reitor que o pessoal da firma
que elabora o ranking, gente que sabe de rankings a potes e como bem
subir neles, deu a receita após ter recebido o pagamento (ou depois já
que o artigo não é claro neste detalhe) depois a Universidade aplicou a
receita, voltam os tais especialistas para nova
auditoria e toma lá 5 estrelas, confirmadoras de que se atingiu o
firmamento da qualidade universitária. Note-se que
estas 5 estrelas não garantem que noutros rankings a referida universidade não possa descer em vez de subir, mas isso é pormenor irrelevante pois o ranking da QS é que conta até porque têm estrelas e os outros
não.
Desde logo é caricata a assunção que uma universidade como aquela onde há especialistas de craveira internacional nas mais diversas áreas não sabe qual a receita para se subir num ranking. Sabendo-se também que há rankings de elevada qualidade que fazem o serviço de borla é espantoso que haja quem não se importe de pagar para estar em ranking de baixa qualidade. Talvez seja um caso de dinheiro a mais ou inteligência a menos. Ou o inverso. Se trabalhasse naquela universidade sentir-me-ia enxovalhado pelo acto e quero crer que aqueles que naquela instituição têm desempenho de elevadíssima qualidade não merecem que a sua reputação seja enxovalhada porque associada às estrelas sem brilho daquele ranking.
Acho importante ressalvar que nos comentários acima parti sempre do principio que a verba que a referida universidade pagou à firma que elabora o tal ranking foi verba que não saiu do Orçamento de Estado. Tivesse eu conhecimento ou a profunda convicção que um milésimo de um cêntimo do dinheiro dos meus impostos tivesse sido utilizado no referido pagamento e teria que ampliar ainda mais o meu direito de opinião para ir de encontro ao vertido naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 3017/11.6TBSTR.E1.S1 onde se escreve sobre a crítica contundente, sarcástica, mordaz, com uma carga exageradamente depreciativa ou caricatural e com o uso de expressões agressivas ou virulentas pois este país não merece ter responsáveis universitários que acham que os dinheiros públicos são para ser gastos com tanta falta de inteligência. Se é assim que se gasta o dinheiro nas universidades imagine-se o que se fará noutras instituições públicas onde não existe sequer um milésimo da massa cinzenta !
Para terminar e a custo zero aproveito para dar conselho ao referido vice-reitor para subir nos rankings. Trate de reduzir a endogamia pois é a diversidade que contribui para o impacto como se explica abaixo
Wagner, C. S., & Jonkers, K. (2017). Open countries have strong science. Nature News, 550(7674), 32.
Clauset, A., Larremore, D. B., & Sinatra, R. (2017). Data-driven predictions in the science of science. Science, 355(6324), 477-480.
E no entretanto enquanto não conseguir reduzir a endogamia peça aos professores e investigadores da sua universidade que tentem colaborar com professores e investigadores das melhores universidades do mundo. Como alguns já o fazem é só perguntar-lhes a receita pois estou certo que eles não lhe cobrarão nada por ela."
Fernando Pacheco-Torgal
Desde logo é caricata a assunção que uma universidade como aquela onde há especialistas de craveira internacional nas mais diversas áreas não sabe qual a receita para se subir num ranking. Sabendo-se também que há rankings de elevada qualidade que fazem o serviço de borla é espantoso que haja quem não se importe de pagar para estar em ranking de baixa qualidade. Talvez seja um caso de dinheiro a mais ou inteligência a menos. Ou o inverso. Se trabalhasse naquela universidade sentir-me-ia enxovalhado pelo acto e quero crer que aqueles que naquela instituição têm desempenho de elevadíssima qualidade não merecem que a sua reputação seja enxovalhada porque associada às estrelas sem brilho daquele ranking.
Acho importante ressalvar que nos comentários acima parti sempre do principio que a verba que a referida universidade pagou à firma que elabora o tal ranking foi verba que não saiu do Orçamento de Estado. Tivesse eu conhecimento ou a profunda convicção que um milésimo de um cêntimo do dinheiro dos meus impostos tivesse sido utilizado no referido pagamento e teria que ampliar ainda mais o meu direito de opinião para ir de encontro ao vertido naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 3017/11.6TBSTR.E1.S1 onde se escreve sobre a crítica contundente, sarcástica, mordaz, com uma carga exageradamente depreciativa ou caricatural e com o uso de expressões agressivas ou virulentas pois este país não merece ter responsáveis universitários que acham que os dinheiros públicos são para ser gastos com tanta falta de inteligência. Se é assim que se gasta o dinheiro nas universidades imagine-se o que se fará noutras instituições públicas onde não existe sequer um milésimo da massa cinzenta !
Para terminar e a custo zero aproveito para dar conselho ao referido vice-reitor para subir nos rankings. Trate de reduzir a endogamia pois é a diversidade que contribui para o impacto como se explica abaixo
Wagner, C. S., & Jonkers, K. (2017). Open countries have strong science. Nature News, 550(7674), 32.
Clauset, A., Larremore, D. B., & Sinatra, R. (2017). Data-driven predictions in the science of science. Science, 355(6324), 477-480.
E no entretanto enquanto não conseguir reduzir a endogamia peça aos professores e investigadores da sua universidade que tentem colaborar com professores e investigadores das melhores universidades do mundo. Como alguns já o fazem é só perguntar-lhes a receita pois estou certo que eles não lhe cobrarão nada por ela."
Fernando Pacheco-Torgal
BEN GOLDACRE CONTRA A "CIÊNCIA DA TRETA"
O médico britânico, autor de "Ciência da Treta", virá brevemente a Portugal. Eis aqui o seu TED talk sobre "Combater a Ciência da Treta":
AVIGNON E COIMBRA: UMA COMPARAÇÃO IMPOSSÍVEL
Coimbra é uma cidade mas gerida que continua a dever muito a si própria. Meu artigo de opinião saído há dias no Diário de Coimbra, onde ensaio uma breve comparação com Avignon, que visitei recentemente:
A cidade francesa de Avignon é do tamanho de
Coimbra (tem cerca de 90 000 habitantes) mas, nesta altura do Verão, está cheia
de cultura e turismo. Estive lá há pouco tempo como convidado dos Rencontres Récherche et Création do
Festival de Teatro de Avignon e encontrei muita gente, a maioria jovem, por
todo o lado, incontáveis cartazes de espectáculos (eu nunca vi tanto cartaz,
pendurado em tudo o que era sítio!), música e dança na rua, restaurantes, cafés
e esplanadas a abarrotar, alfarrabistas e feiras ao ar livre, etc. Compare-se
com Coimbra por esta altura e a diferença é flagrante. A cultura em Coimbra pode-se considerar
encerrada para férias e o turismo é reduzidíssimo em relação ao que poderia ser.
Avignon tem uma universidade fundada em 1303,
pouco depois da de Coimbra, que é de 1290 (de facto a Universidade só chegou a
Coimbra em 1308), mas hoje é menor do que a nossa. A cidade é Património
Mundial da UNESCO, devido principalmente ao imponente Palácio dos Papas, que é
o centro da urbe medieval. Foi Capital Europeia da Cultura em 2000. Organiza
desde há 70 anos o festival de teatro mais conhecido do mundo, onde já passaram
alguns dos maiores artistas dramáticos francófonos e não só. Vi uma tragédia de
Séneca no pátio do Palácio dos Papas, onde estavam duas mil pessoas: esgotou
tal como nos outros dias (num deles houve transmissão directa pela TV France
2). Todos os jornais e revistas francesas falaram da encenação inovadora do jovem
Thomas Jolly, que esteve nos Rencontres em
diálogo com outros artistas e com cientistas.
Avignon é governada pelo PS local, mas qualquer
comparação com o PS de Coimbra revela-se impossível. Quer dizer, possível é,
mas não faz muito sentido porque Avignon está bastante à frente. Avignon tem
sido bem governada. A sua estação de comboios bate de longe Coimbra B: basta dizer que não
se passa por cima das linhas. E existe uma outra estação, fora do centro,
servida pelo TGV, que faz uma ligação rápida à capital. Tem um aeroporto perto,
mas o aeroporto internacional de relevo é o de Marselha, a uma hora de comboio,
havendo muitos ao dia a funcionar pontualmente, O site do turismo muito pouco a ver com o nosso. As lojas de souvenirs estão nos antípodas das de
Coimbra.
A ligação do turismo com a cultura existe, em
Avignon como em qualquer cidade do mundo (eu fui lá por causa da cultura!), mas
é óbvio que a cultura está longe de se reduzir ao turismo. Em Coimbra as duas
áreas estão unidas na mesma vereação, cujo discurso se tem centrado no turismo,
relegando a cultura para segundo plano. O mesmo risco se corre agora na
Universidade de Coimbra, quando a “pasta” da Cultura, com a saída de uma
vice-reitora, passou para o vice-reitor com o pelouro do turismo. Tal como a
Câmara de há um tempo a esta parte não tem uma voz cultural relevante, essa
ausência paira agora sobre a Universidade.
Falando da cultura de Coimbra, nesta época
estival durante a qual, em forte contraste com Lisboa e Porto, o turismo não
abunda (não admira: Coimbra não apareceu no filme da Eurovisão, não aparece nos
filmes de promoção da TAP, não aparece na revista que a Visão lançou para estrangeiros), dois bons eventos merecem destaque:
o Festival das Artes na Quinta das Lágrimas, o concerto de Elisabeth Matos com
a Orquestra Clássica do Centro na mata do Buçaco e o Citemor – Festival de
Teatro de Montemor-o-Velho. Todos eles mereciam mais público, que não vem por
insuficiente divulgação. Mas houve também más notícias: a transferência da
Feira das Velharias da Praça Velha para o Terreiro da Erva, que corresponde a
uma certidão de óbito (fui lá aos alfarrábios e vi uma feira deserta e
moribunda) e o fim, inglório, da associação dos Amigos do Conservatório de
Coimbra, que há anos organizava temporadas artísticas muito concorridas (vi
muitos e bons espectáculos na Sala do Conservatório). Foi a Câmara que cometeu o disparate de mudar
a feira de sítio e foi a mesma Câmara que permaneceu muda e queda com a extinção
de uma associação, que era semelhante ás que há em Lisboa e Porto. O que está
bem muda-se?
E a Coimbra - Capital Europeia da Cultura? Terá,
assustada com as temperaturas, ido para banhos? A última vez que ouvi falar
dela foi a propósito da organização, em seu nome, de serenatas de fados em
diversas localidades da região (“À volta do fado”). O discurso oficial, muito
pobre, centrava-se na necessidade de promover o turismo local. A relação entre
cultura e turismo não está bem articulada nalgumas cabeças. Talvez porque lhes
falte a necessária cultura.
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