A propósito da queda da ponte em Génova, Itália, transcrevo aqui o meu artigo relativo à queda da ponte de entre os Rios que saiu no meu livro "A coisa mais preciosa que temos (Gradiva, 2002; está esgotado):
Desde
que o homem existe sobre a Terra que vê os objectos caírem para a superfície do
planeta, atraídos sem dó nem piedade pela força da gravidade. Mas só desde há
cerca de trezentos anos, com os trabalhos de Galileu e Newton, é que se
conseguiu, em primeiro lugar, descrever os movimentos de queda e, em segundo
lugar, compreender as causas desses movimentos.
Também
desde que o homem existe sobre a Terra que faz edifícios e pontes de modo que
eles não caiam logo. A tecnologia da construção que permitiu as pontes romanas
ou as catedrais da Idade Média foi de base empírica. Construía-se e, se a
construção não caísse, então... ficava de pé. Experimentava-se tal como se faz
ao provar um produto culinário. O conto de Alexandre Herculano sobre a abóbada
da Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha é elucidativo: o arquitecto Afonso
Domingues teria permanecido debaixo da abóbada para se certificar da respectiva
segurança. Segundo um estudioso das catedrais góticas, as construções que não caem
nos primeiros cinco minutos não cairão nos seguintes quinhentos anos... Talvez
seja verdade para edifícios de pedra fundados em rocha firme. Mas há excepções,
como a Torre de Pisa, erguida no século XVI e emblematicamente associada a
Galileu, que não caiu nos primeiros cinco minutos mas, que devido a
inconsistências do solo, tem vindo a cair desde então. Não fora a tecnologia
moderna que hoje a segura e cairia rapidamente.
A
tecnologia de fazer e manter edifícios e pontes – a Engenharia Civil – conheceu
forte expansão nos séculos XVIII e XIX pelo simples facto de se ter percebido
que a mecânica de Galileu e Newton, com as mais-valias introduzidas por outros
cientistas como Hooke, Cauchy, Young, etc., permitia efectuar cálculos de
forças e, portanto, conhecer antecipadamente a estabilidade estrutural de uma
dada “obra de arte” (curiosa esta expressão usada em Engenharia Civil mesmo
para as obras cuja fealdade é evidente). A física, cuja linguagem natural é a
matemática, permitiu prever não só se uma obra teria a devida segurança mas
também escolher os materiais mais adequados para a construir e a melhor maneira
de ligar a forma com a função (assegurando uma verdadeira vertente estética).
Como disse Franklin Guerra, em “História da Engenharia em Portugal”, edição do
autor de 1995, o Eng. Edgar Cardoso passou de comboio na primeira travessia da
sua ponte de S. João, no Porto, com a mesma segurança com que Afonso Domingues
se teria colocado no centro da sala capitular (manda a verdade dizer que foi o
mestre francês Huguet o provável autor da abóbada onde Herculano decidiu
colocar Domingues, o arquitecto-geral da obra).
No
século XIX, o ferro passou a ser material de construção das pontes,
complementarmente à pedra ou mesmo substituindo-a totalmente. Sintomático da
importação que fizemos da Revolução Industrial chegou cá talvez seja o facto de
terem sido engenheiros franceses (vide o caso de Gustave Eiffel, autor da ponte
de Maria Pia, no Porto) e ingleses que projectaram muitas das pontes
portuguesas erguidas nesse século (a ponte de Entre-os-Rios, em Castelo de
Paiva, que desabou em 2001 não é excepção). Segundo Franklin Guerra:
“Durante todo o
século do ferro, o país vegetou numa quase total dependência em
matérias-primas, equipamentos mecânicos e matéria cinzenta.”
Claro
que avançámos... mas os outros países avançaram ainda mais. Talvez seja também
sintomático das nossas debilidades estruturais o facto daquela que até há pouco
era a maior das nossas pontes – a Ponte 25 de Abril - ter sido erguida, durante
o Estado Novo, por tecnologia norte-americana, incorporando embora uma parcela
nacional. E é também elucidativo o facto de, no desastre ocorrido durante a
construção da ponte Vasco da Gama, terem morrido quase só engenheiros e
operários estrangeiros (os últimos africanos).
A
velha ponte de Maria Pia não caiu, embora tenha sido substituída pela ponte de
São João. As modernas Ponte 25 de Abril e Ponte Vasco da Gama (esta última é a
nossa maior e a segunda maior da Europa) aí estão impecavelmente de pé. Assim
como estão no ar as outras pontes do Eng. Edgar Cardoso. Por que caiu então a
ponte de Entre-os-Rios?
Caiu
porque nada é eterno, nem as pontes. Os materiais corroem. Os defeitos alstram.
As fundações fragilizam. O remédio é estar atento e vigiar, reparar e
substituir. No Porto, a ponte de Maria Pia foi substituída a tempo e, em
Lisboa, a Ponte 25 de Abril tem sido reparada (de resto, tem alternativa na
Ponte Vasco da Gama). O engenheiro J. E. Gordon, autor do interessante livro
”Structures or Why Things Don’t Fall Down”, Penguin, 1978, põe o dedo na
ferida:
“Todas as estruturas acabam quebradas ou destruídas –
tal e qual como as pessoas, que acabam por morrer. O propósito da medicina e da
engenharia é adiar estas ocorrências por um intervalo de tempo decente”.
A
ponte de Entre-os-Rios viveu mais de cinco minutos e menos do que quinhentos
anos: apenas pouco mais de cem anos. Será um tempo de vida decente? Não. Foi
indecente a morte que teve e as mortes que causou. O acidente, como muitos
outros, foi perfeitamente escusado. Não tendo havido defeito óbvio de
construção nem sendo os materiais desadequados de todo, a vigilância e a
reparação da ponte foram pura e simplesmente insuficientes. Não serve dizer que
a ponte foi feita há mais de um século para diligências a cavalo: a ponte de
Maria Pia também não foi feita para os modernos comboios, mas foi primeiro
reparada e depois substituída. Também não serve dizer que há desastres naturais
imprevisíveis (“os actos de Deus”, como se dizia nas antigas apólices de seguro),
pois as cheias do mesmo rio não levaram outras pontes, obviamente mais
preparadas para as intempéries. O que aconteceu era, pelo menos para alguns,
perfeitamente previsível. O fim da velha ponte era tão previsível que havia
planos, infelizmente adiados, para erguer uma nova ponte.
A
queda da ponte é, afinal, um indicador da falta de cultura científica e
tecnológica. Importámos a ciência e a tecnologia mas não as interiorizámos, não
as colocámos de forma consequente ao serviço das nossas vidas. Confiamos demais
na sorte. Ignoramos que a ciência e a tecnologia fazem previsões a respeito do
mundo e que, com isso, podemos acautelar o nosso futuro. Claro que não se faz
isso com absoluta certeza mas sim, o que já chega, com suficiente
probabilidade. O engenheiro J. E. Gordon, muito antes da queda de pontes
portuguesas, tem no livro citado uma secção intitulada “O design do engenheiro
como teologia aplicada”, cuja adequação ao caso da ponte de Entre os Rios é
evidente. Apesar do extracto ser longo, vale a pena trancrever:
“Em quase todos os acidentes temos de distinguir dois
níveis de causas. O primeiro é a razão imediata, técnica ou mecânica para o
acidente; o segundo é a razão humana subjacente. É bem verdade que o design não
é uma coisa muito precisa, que acontecem coisas inesperadas, que ocorrem erros
genuínos, etc., mas na maior parte dos casos a razão ‘real’ de um acidente é um
erro humano que se pode prevenir.
Está hoje na moda supor que o erro é uma das coisas pelas
quais não é justo acusar as pessoas, que, no fim de contas, fazem ‘o seu
melhor’ ou são vítimas da sua educação e do seu ambiente, ou do sistema social,
etc. Mas o erro oculta-se naquilo que não está na moda chamar ‘pecado’ (...)
Muitos poucos acidentes ‘acontecem’ de um modo moralmente neutro. Nove em cada
dez acidentes são causados não por efeitos técnicos mais ou menos abstrusos,
mas pelo velho e relho pecado humano, que às vezes roça a pura malvadez.
(...) São pecados sórdidos como o descuido, a inacção, o
não-pergunto-nem-preciso-de-aprender, o
ninguém-me-pode-dizer-nada-sobre-o-meu-trabalho, o orgulho, a inveja e a
cupidez que matam as pessoas (...) Sob a pressão do orgulho e da inveja, da
cupidez e da rivalidade política, só se atende às miudezas do quotidiano. As
avaliações gerais, o primado da engenharia, acabam por se tornar impossíveis.
As coisas tornam-se imparáveis e deslizam para o desastre à vista de todos.
Assim se cumprem os desígnios de Zeus”.
No
rio Douro não se passou uma tragédia grega mas uma tragédia portuguesa. Passou-se
uma tragédia muito nossa, que tem raízes fundas na nossa história. Se fizermos
uma avaliação geral, reconheceremos tratar-se apenas e infelizmente de parte de
uma tragédia maior que é a ignorância continuada das leis do funcionamento do
mundo.
5 comentários:
As pontes caem porque são sempre construídas com materiais mais ou menos perecíveis. Fisicamente, nada dura para sempre!
Há perguntas que têm a sua graça, mas que são pertinentes. Não é suposto, nem admissível que as pontes caiam. Assim sendo, porque caiem? Ou, porque continuam a cair? A resposta óbvia parece ser 'porque não se seguram'. Quanto ao por quê de não se segurarem é 'porque não são seguras'. Mas alguma vez foi segura uma ponte que deixou de o ser'? Até que instante é que uma ponte deixa de ser segura'?
Alguém cuida da segurança das pontes? Quem?
Alguém faz relatórios sobre a segurança das pontes? Quem?
Alguém tem a obrigação de ler esses relatórios? Quem?
Alguém tem a obrigação de emitir 'certificados' ou orientações vinculativas sobre a segurança das pontes? Quem?
E quanto ao seguro, ou seguros? Existem? Quais?
Uma ponte é uma espécie de aeronave que transporta muitos passageiros.
Os acidentes com pontes têm sido em grande número, mas bastava um, como diria (demagogicamente) um responsável político conhecido da praça portuguesa, para borrar a fotografia toda.
Errare humanum est...
Os engenheiros e os operários construtores de pontes são feitos de carne e osso e raciocinam, logo caem dentro do conjunto dos homens que cometem erros.
Nos dias que correm, mesmo entre figuras gradas da intelectualidade bloguista, é frequente encontrar quem confunda "cair" com "caiar".
Porque caem as paredes das casas bem caiadas?
Corrijo, na segunda linha do meu comentário anterior: "assim sendo, porque caem?"
Que caiem as pontes, mas que não caiam!
Caiam, mas caem.
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