terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Livros

Li o primeiro romance durante a passagem pela Escola Secundária, em Cantanhede. Um colega de turma emprestou-me, nessa altura, um romance de Milan Kundera, A Imortalidade. Li e gostei. Depois, em Coimbra, a paixão pelo livro cresceu até aos dias de hoje. Deixo aqui  alguns dos livros que mais me marcaram:

John Steinbeck - As vinhas da Ira

William Faulkner - O Som e a Fúria

                             - Na minha Morte

Isaac Bashevis Singer - Shosha

Ernest Hemingway- O Adeus às Armas

Leon Tolstói- Guerra e Paz

                     - A Morte de Ivan Ilitch

Fiódor Dostoiévski - Crime e Castigo

Chinghiz Aitmatov - Djamila

F. S. Fitzgerald - Terna é a Noite

L. F. Céline – Morte a Crédito

Bruno Schulz – As lojas de Canela

Stephen Crane - Sob a Bandeira da Coragem

James Joyce - Gente de Dublin

Dylan Thomas- Retrato do Artista quando Jovem Cão

Vítor Hugo – Os Homens do Mar

Sándor Márai- As Velas Ardem até ao Fim

Manuel Scorza – Rufam Tambores por Rancas

Tibor Déry - Niki, a História de um Cão

Panait Istrati – Os Cardos de Baragan

Paul Celan- Poemas

Raul Brandão- Húmus

Ferreira de Castro – A Selva

Fernando Assis Pacheco - A Musa Irregular

Dino Buzzati – O Deserto dos Tártaros

Luigi Pirandello – Ele foi Mattia Pascal

Ignazio Silone – A Semente sob a Neve

Alejandra Pizarnik - Poemas

Joseph Roth – Fuga sem Fim

Juan Carlos Onetti – Os Adeuses

                               -  A Vida Breve

G. G. Márquez - Cem Anos de Solidão

Miguel Torga – Poemas

Eugénio de Andrade – Poemas

Boris Pasternak- Doutor Jivago

Thomas Mann – A Montanha Mágica

Heinrich Boll – A Honra Perdida de Katharina Blum

Camilo José Cela- A Colmeia

Anton Tchekhov -  A Gaivota

                            - As Três Irmãs

George Orwell – O Caminho para Wigan Pier

Stendhal – A Cartuxa de Parma

Gustave Flaubert – Madame Bovary

Vergílio Ferreira – Para Sempre

Nabokov – Ada ou Ardor

Knut Hamsun- A Fome

Alain Fournier - O Grande Meaulnes

Cesare Pavese – Poemas

Robert Musil – O Homem sem Qualidades

Fel – José Duro

D.H.Lawrence - O Amante de Lady Chatterley

Virginia Woolf – Mrs. Dalloway

Pablo Neruda – Poemas

Cervantes- Dom Quixote

Henry Miller – Trópico de Câncer

Miklós Radnótti – Poemas

Walt Whitman – As Folhas da Relva

Fernando Pessoa – Poemas

Mikhail Bulgakov- Memórias de um Jovem Médico

Juan Rámon Jiménez- Poemas

Margaret Mitchell – E Tudo o Vento Levou

Áttila Josef  - Poemas

Italo Svevo – Uma Vida

Bohumil Hrabal – Eu que Servi o Rei da Inglaterra

Marcel Proust- Em Busca do Tempo Perdido

Carlos de Oliveira – Finisterra

Yukio Mishima – O Templo Doirado

Joseph Conrad – Lord Jim

Albert Cohen- O Livro de minha Mãe

Samuel Beckett - Teatro

                           – Molloy

André Gide - Os Moedeiros Falsos

Ivo Andríc - A Ponte sobre o Drina

Franz Kafka- O Castelo

Louis Aragon – O Camponês de Paris

Saint Exupéry – Voo Nocturno

René Char- Poemas

François Mauriac- Thérèse Desqueyroux

Alphonse Daudet- Cartas do Meu Moinho

Charlotte Bronte – Jane Eyre

Elias Canetti- Língua Exilada

Émile Cioran- Breviário de Decomposição

Albert Camus – A Peste

Henry James – Daisy Miller

Roger Martin du Gard- Os Thibauht

Jonathan Swift – As Viagens de Gulliver

Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas

António Nobre - Só

Martin Poulter - Wikidata Project

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Um soneto de amor

Um soneto de amor vem, na alva espuma

Ou num corredor de ecos, num olhar.

Escreve-se sem pressas, com a pluma

E o silêncio, e quer ser voz e voar.

 

Quase nas trevas, quase sem luz nenhuma,

Entre paredes se escreve ao luar,

Na gélida vertente de uma duna,

Onde já não se ouve o céu nem o mar.

 

Um soneto de amor teima em ser voz.

Busca o ar de um rosto, num corredor,

Enquanto uma lágrima corre a sós.

 

Teima em ser voo, um soneto de amor,

Sobre a alva espuma e sobre o mar atroz,

Quando é tão pouca terra e tanta a dor.

 

LINKS DO NOVO PODCAST «MAIS LENTO DO QUE A LUZ»

 LINKS DO NOVO PODCAST «MAIS LENTO DO QUE A LUZ» MEU E DO DAVID MARÇAL O PRÓXIMO CONVIDADO SERÁ O FÍSICO MANUEL PAIVA, AUTOR DE «MEMÓRIAS DE UM FÍSICO PORTUGUÊS»

https://spotifyanchor-web.app.link/e/Okmg6YlIsxb
https://podcasts.apple.com/.../mais-lento-do.../id1670165826
https://podcasts.google.com/.../aHR0cHM6Ly9hbmNob3IuZm0vc...

Ep. 1 - Música e Ciência, com João Paulo André

O nosso primeiro convidado é João Paulo André, doutorado na Universidade de Basileia, na Suíça, e professor de Química na Universidade do Minho. Autor do livro “Poções e Paixões – Química e Ópera” (Gradiva), já em 2.ª edição, que a Biblioteca Nacional de Portugal produziu em braille e em versão áudio para invisuais, tem mantido intensa actividade de divulgação da ciência. O seu segundo livro «Irmãs de Prometeu. A Química no Feminino» saiu há pouco (também na Gradiva). Além da sua actividade académica na área da química, destaca-se o seu forte interesse pela música e pela literatura. Tem participado como comentador de ópera na Antena 2.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

ALGUMAS NOVIDADES DA GRADIVA

O Espelho Imaginário, Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço aborda a temática da pintura de prismas diversos e analisa a obra de alguns pintores bem conhecidos, onde se incluem Klee, Velázquez, Picasso ou Vieira da Silva. Além de artistas internacionais, são objecto da sua atenção artistas nacionais de décadas relativamente recentes.

Uma obra de elevada riqueza de análise, que ilustra bem porque é que Eduardo Lourenço é considerado um dos grandes pensadores portugueses. Uma edição publicada do âmbito das comemorações do Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço que decorrerão em 2023.

 "A Física de Partículas em Portugal - Origem e Desenvolvimento", de Gustavo Castelo-Branco, Margarida Nesbitt Rebelo, João Varela.

A adesão de Portugal ao CERN - Laboratório Europeu de Física de Partículas foi um marco na génese da Física de Partículas no nosso país. Os autores desta obra, cuja carreira profissional está ligada ao desenvolvimento da Física de Partículas, esclarecem, com base nas suas experiências pessoais, como se processou a evolução dessa área. Muito se cresceu: se há três ou quatro décadas pouco de falava de investigação científica em Portugal, hoje está longe de ser esse o caso.

Um livro que descreve as experiências dos autores no seu trabalho em Física de Partículas em Portugal desde a génese, mas que vai além disso: contribui com informação rigorosa para uma futura história desta disciplina.

A Teoria de Tudo, Stephen W. Hawking

Grande divulgador de ciência mas também cientista brilhante, Stephen Hawking acredita que os avanços da física teórica devem «poder ser compreendidos pelo grande público, e não apenas por alguns cientistas». Neste livro, propõe-nos a extraordinária aventura da descoberta do cosmos e do nosso lugar nele. Em sete lições, responde à curiosidade de todos aqueles que já olharam fascinados para o firmamento e se perguntaram o que há lá em cima e como foi lá parar.
 
"Introdução à Álgebra Linear", de Ana Paula Santana, João Filipe Queiró.

Pela mão de dois professores com amplos conhecimentos e experiência na área tratada, um livro pensado para servir de texto de apoio às disciplinas que tratam de Álgebra Linear em cursos de Engenharia, Economia, Ciências e Matemática. Com esse objectivo, a apresentação dos assuntos é feita de forma sistemática e rigorosa, mas modular, com conteúdos dirigidos especificamente aos alunos de cadeiras semestrais ou anuais das áreas referidas.

O USO DAS PALAVRAS

Os escritores usam os fonemas,
para se aliviarem de terrores,
para destruírem duras algemas,
para se verem livres de desamores. 
 
As palavras salvam-nos de abismos
e são, para nós, sólidos escudos:
sabem amaciar os cataclismos
e, solícitas, servem os estudos.

Se, às palavras, nós tanto devemos,
se tanto serviço elas nos prestam,
torna-se claro que nós não podemos

dar apoio àqueles que lhes emprestam
usos traiçoeiros, enviesados,
que só apontam a fins desgraçados!

Eugénio Lisboa

A VIDA INTEIRA

Quando li o romance A VIDA INTEIRA,
teria só os meus dezasseis anos,
abriu-se-me, ao futuro, uma clareira,
para mundos de gregos e troianos.

A autora era uma sueca,
Sally Salminen se chamava ela.
Teve, em Estocolmo, vida badameca,
de criada de servir, sem farpela.

Com esse romance, teve ela a glória,
mas nunca mais repetiu a façanha;
porém ficou, para sempre, na memória

de um rapaz pobre, cheio de sanha,
que, em África, vivia como ela,
pobre, à espera de saltar da sela!

Eugénio Lisboa 

Escrevi hoje este soneto, para me resgatar de não ter incluído, na lista de livros que marcaram a minha adolescência africana, este admirável romance: A VIDA INTEIRA (no original, KATRINA), numa tradução saborosa de Tomás Ribeiro Colaço. Escaparam também, imperdoavelmente, estes livros:
A AVENTURA EM BUDAPESTE, de Ferenc Körmendi;
DOIS VIVOS E UM MORTO, de Sigurd Christiansen;
OS DRAMAS DA INTERNACIONAL, de Pierre Zaccone.
E ainda, nada de acanhamentos, dois livros da Condessa de Ségur:
FÉRIAS e
MEMÓRIAS DE UM BURRO.
As dívidas pagam-se e nem todos os livros que nos marcam têm a estatura dos LUSÍADAS.
Para evitar comentários escusados, a minha lista é só de livros que me marcaram muito e não de todos os livros que li, na minha adolescência, até aos dezassete anos.

«A CANÇÃO DA TERRA» DE MAHLER HOJE EM COIMBRA


 

«Ensaios sobre o Dia Seguinte»: Apresentação em Coimbra

MEMÓRIAS DE UM CIENTISTA PORTUGUÊS

Minha recensão do livro com o título de cima de Manuel Paiva (Imprensa Nacional):


Acaba de sair na Imprensa Nacional, na colecção «Comunidades Portuguesas» que divulga escritos da nossa diáspora, um livro muito original da autoria de um físico que, tendo nascido em Portugal (crsesceu na Rua de Vilarinho, em Aldoar, no Porto), acabou por emigrar para a Bélgica, onde foi Director do Laboratório de Física Biomédica da Universidade Livre de Bruxelas, e que hoje, jubilado, divide o seu tempo entre Bruxelas e Estorninhos, uma pequena aldeia na serra algarvia. Tendo adquirido a nacionalidade belga, é o mais português de todos os belgas.

Estou a falar de Memórias de um Cientista, com subtítulo De Estalinegrado à covid-19 ou a luta entre a ciência e as trevas, a autobiografia de Manuel Paiva. O prefácio é de Onésimo Teotónio Almeida, o professor da Universidade Brown e colunista do JL, que tão rápido está de um lado como do outro do Atlântico.  Estalinegrado aparece no título por causa do ano de nascimento do autor, 1943, quando estava a findar a dura e famosa batalha. Curiosamente, o autor tem uma relação com a Rússia, pois, como conta no livro, a sua mulher, que conheceu na Bélgica, é neta de um general que integrou o Estado Maior do czar. A covid-19 tem a ver com o livro pois levou ao isolamento do autor nos Estorninhos, onde o escreveu.

Serei suspeito se recomendar o livro, já que sou amigo do autor (e, já agora, do prefaciador). Mas recomendo-o vivamente, não me importando com a suspeição. Li-o de um fôlego, com imenso prazer. Vale bem a pena conhecer a vida do Manuel desde a infância e juventude portuenses até à sua emigração para a Bélgica, para cursar Física em Bruxelas, tornar-se professor e fazer carreira em Física Médica, com larga investigação no domínio da respiração humana, designadamente nos astronautas (trabalhou com a NASA). Já conhecia, em traços gerais, a sua biografia, não só em virtude da dita amizade, mas também porque li todos os outros seus livros. Este está particularmente bem encadeado, mesclando curiosas histórias familiares com elucidativas histórias profissionais, com alguma divulgação de ciência pelo meio. Bem escrito, não transparece que o autor trocou o português pelo francês, em 1964, quando deu o salto para o país de Tintim. Dotado de uma memória de elefante, o Manuel é um bom contador de histórias. Uma experiência de vida é algo muito pessoal que só é transmissível na medida em que o protagonista faz um esforço de recolecção e quer contar a sua versão do que viveu para conhecimento de contemporâneos e vindouros. O género autobiográfico não é comum entre nós. Mas a Imprensa Nacional publicou há pouco uma excelente autobiografia de Jorge Calado, o químico que é amante de ópera e de fotografia (Mocidade Portuguesa, 2022), embora limitada aos primeiros anos. Um outro magnífico exemplo são as Memórias de Rómulo de Carvalho, que ele escreveu para os tetranetos (Fundação Gulbenkian, 2010).

Este é o sexto livro do autor em português. Elenco-os aqui: o primeiro é Diálogos sobre Portugal (com Mariana Pereira, Livros & Leituras, 1998), uma interessante conversa entre dois cientistas de gerações diferente sobre o seu país; seguiu-se Como Respiram os Astronautas e outras histórias de física biomédica (Gradiva, 2004; 2.ª ed. rev., 2013), uma bem conseguida peça de disseminação científica; depois, o livro para crianças Ciência a Brincar: descobre o céu! (com Constança Providência, Nuno Crato e eu, Bizâncio, 2005);  À Espera de Godinho: quando o futuro existia (com Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa e José Morais, Bizâncio, 2009),  resultado da reunião de quatro lusitanos na capital belga; Portugal e o Espaço (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), um ensaio sobre a entrada de Portugal para a investigação espacial; e Um Inventor em Aldoar e a busca de vida no Universo  (Progresso da Foz, 2019), um primeiro ensaio autobiográfico difícil de encontrar.   

O autor conta nas suas Memórias como nos conhecemos, tornando-nos amigos. Não é apenas sermos ambos físicos, mas também e sobretudo por partilharmos alguns interesses intelectuais, em particular saber o que é a identidade portuguesa. Encontrei Diálogos sobre Portugal numa livraria de Coimbra. Achei-lhe tanto interesse que resolvi escrever uma recensão na Gazeta de Física, que na altura dirigia.  Enviei-a o autor, que mais tarde entrevistaria para a mesma revista. Vivi uma história engraçada associada a esta obra. O autor e o editor convidaram-me para a apresentar na Livraria Lello no Porto. O evento foi anunciado para um fim da tarde nesse extraordinário sítio. Pois, como autor, editor e apresentador eram desconhecidos, à hora marcada só lá estávamos os três. Tudo acabou bem: não houve apresentação, mas comemos um bom bacalhau num restaurante próximo, regado com um tinto do Douro.

Eu haveria de participar num forum de cientistas portugueses a trabalhar no estrangeiro que o Manuel promoveu em Faro e, tendo apreciado a reunião, ofereci-me para organizar o encontro seguinte na Universidade de Coimbra, que ocorreu em 2004. Foi um belo reencontro. Tenho mais histórias com o Manuel. Um dia fomos falar a miúdos de uma escola numa exposição promovida pela Agência Espacial Europeia numa tenda no Terreiro do Paço, em Lisboa.  Fizemos várias experiências que os infantes adoraram e respondemos a todas as questões. Só fiquei um pouco frustrado no dia seguinte, pois, tendo dando in loco uma entrevista ao DN, sugeri um bom título que afinal não saiu: era «No Terreiro do Espaço»...

Manuel é o rapazinho de Aldoar que subiu lá fora, graças à sua dedicação ao trabalho, o que nele passa por uma organização meticulosa. Ele planeia tudo o que faz com enorme antecedência, tal como as agências espaciais. Aborrece-se com a falta de pontualidade dos portugueses e, de um modo geral, com a nossa falta de planificação. Acho que mais portugueses fossem como o Manuel estaríamos muito melhor. Leiam a maravilhosa história da sua vida, onde entram Mário Soares, os intérpretes cubanos de uma conversa crucial entre Khrushchev e Castro e vários astronautas. A expressão «ciência e trevas» no subtítulo remete para o final do livro: a divisa da Universidade Livre de Bruxelas é «A ciência vence as trevas». É todo um resumo de vida.

GALILEU EM PÁDUA

Minha recensão saída no As Artes entre as Letras:


Galileu em Pádua (Gradiva) é o título de um livro de história da ciência que mais parece um romance histórico da autoria do físico italiano Alessandro De Angelis, professor da Universidade de Pádua e da Universidade de Lisboa (Instituto Superior Técnico). 

O subtítulo - Os melhores anos da minha vida - é uma frase que Galileu Galilei usou para designar o período entre 1592 e 1610 em que foi professor na Universidade de Pádua, na época pertencente à República de Veneza. 

Foi um período extraordinário da história da ciência. Pode dizer-se que começou nessa altura a ciência moderna. Galileu escreveu em Pádua c. 1600 o livro Le Meccanhice  (As Mecânicas) em que discute os movimentos na Terra: foi em Pádua que começou as suas experiências de queda de corpos ao longo de planos inclinados que conduziriam à  lei da queda dos graves. E foi também em Pádua que escreveu o seu celebérrimo Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), publicado em Veneza em 1610, onde relata as suas primeiras observações com o telescópio, revelando novos mundos: descobriu montanhas na Lua, manchas no Sol, satélites de Júpiter e fases de Vénus.

De Angelis revela-se um engenhoso criador literário e um sagaz comunicador de ciência. Informou-se bem, consultando toda a documentação existente, sobre os passos de Galileu em Pádua, desde que veio de Pisa e deu a sua primeira aula, quando tinha 28 anos, até à sua última aula, aos 36 anos, antes de rumar para Florença, onde tinha granjeado a protecção dos Medici: por alguma razão tinha chamado aos novos satélites de Júpiter «estrelas mediceias». Inseriu as cartas conhecidas de e para Galileu dessa época e entre elas imaginou a «vida de Galileu» (para usar o título de uma famosa peça de Brecht). O resultado é um livro que se lê com muito agrado, quase um romance, através do qual se pode aprender ciência.

Galileu veio de Pisa, sua terra natal (ali nasceu em 1564) onde já ensinava, e iria depois de Pádua para Florença, onde tinha sido educado entre os dez e os 16 anos, já que o seu pai, Vicenzo Galilei, era músico, alaudista e teórico musical, na corte dos Medici aí sedeada. Galileu cresceu num ambiente musical, sabendo tocar alaúde (um dos seus cinco irmãos foi mesmo músico profissional como o pai). O sábio pisano haveria de morrer em Florença, em 1642, em prisão domiciliária, determinada pela Inquisição após o processo relativo ao heliocentrismo que ocorreu em 1633.

É um Galileu muito humano o que nos é apresentado pelo autor neste livro, muito bem traduzido do original italiano por Bárbara Villalobos. Um Galileu que gosta de se divertir, de comer e de beber, e de frequentar bordéis. Foi em Pádua que Galileu viveu com a veneziana Marina Gamba, a mãe dos seus três filhos (duas filhas, ambas freiras, Virginia e Livia, e um filho, que foi seu herdeiro, Vincenzo como o avô) com quem, no entanto, nunca casou. Os filhos foram, portanto, ilegítimos, embora o herdeiro tinha sido legitimado mais tarde. Galileu deixou Marina quando se deslocou de Pádua para Florença. É um Galileu preocupado com a falta de dinheiro aquele que nos é retratado: as filhas foram enviadas para o convento porque o pai não tinha meios para pagar os dotes se caso casassem.

Um dos melhores amigos de Galileu (o nome próprio, tal como de família, remete para Galileia, a terra bíblica), aparece logo no início do livro: trata-se do matemático e físico veneziano Giovanni Francesco Sagredo, que melhorou o termómetro de Galileu, discutiu com ele possibilidade de fazer um telescópio com um espelho e colaborou com ele em estudos de magnetismo. Em sua homenagem, e numa altura em que Sagredo já tinha falecido (morreu em 1620), Galileu fá-lo personagem do seu livro Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (1632), no qual discute os modelos heliocêntrico e geocêntrico, a obra que haveria de conduzir à acusação que a Igreja fez a Galileu. O nome de Sagredo volta a aparecer em Discursos sobre Duas Novas Ciências, escrito na prisão doméstica e enviado clandestinamente para impressão na Holanda (saiu em 1638), uma das obras-primas da ciência. Tanto no Diálogo como nos Discursos os personagens são três: Simplicio, Sagredo e Salviati, sendo Simplicio o mais ingénuo, Salviati, o mais ousado, e Sagredo o mais moderado. De Angelis é também o autor de uma versão moderna do Discurso sobre Duas Novas Ciências, que tem tradução em inglês.

Um dos pontos altos do livro Galileu em Pádua é a sua descoberta dos primeiros satélites de Júpiter, a que hoje chamamos luas galilaicas. Está relatada na p. 245, datada de «Pádua, casa da Rua dos Vinhais, 7 de Janeiro de 1610».

«Apontando o cannocchiale [o telescópio] para Júpiter, Galileu não conseguiu acreditar no que via. Afastou os olhos esfregou-os, respirou profundamente e depois olhou de novo. Embebeu a pena no tinteiro e escreveu: ‘Esta noite vi Júpiter acompanhado de três planetas, totalmente invisíveis pela sua pequenez, e a sua configuração não ocupava mais que cerca de um grau em longitude. Três planetas pequenos, mas brilhantes’ […]»  

Esta é uma transcrição do Mensageiro das Estrelas, que entre nós foi editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, com prefácio de Henrique Leitão. Os desenhos de Galileu estão reproduzidos no livro. Os «planetas» moviam-se e o astrónomo representou os seus movimentos em dias sucessivos. A Terra não era o único astro a ter lua: havia outros centros de movimento no Universo. A pergunta é óbvia: por que não também o Sol?

Vale muito a pena esta obra de De Angelis, reputado físico experimental que trabalhou no CERN em Genebra, especialista em radiação cósmica e também em história da ciência. Além do mais, é um bom escritor, na tradição de Galileu.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

AS PRIMEIRAS LEITURAS QUE MARCARAM PROFUNDAMENTE A MINHA ADOLESCÊNCIA

Para os leitores que se tornam grandes leitores intensivos, mas não traga-livros, as primeiras leituras feitas na aurora da adolescência deixam uma marca profunda. Diria mesmo, uma marca inapagável e transcendente.

Quando estabeleço uma diferença entre leitores “intensivos” e “traga-livros”, quero dizer simplesmente isto: o leitor intensivo não é o consumidor apressado de livros, saltando, ofegantemente, de um para outro, sem se demorar em nenhum; o leitor intensivo lê muito, mas lê devagar e demora-se longamente dentro do livro, relê-o em sucessivas revisitas e nunca mais o larga de vista. Ao longo da vida, vai aprofundando o conhecimento do livro, dos seus personagens, percebendo melhor os motivos e matizando os juízos.

O leitor intensivo quase chega a pensar que foi ele que escreveu os livros que ficam, para sempre, consigo. E, de certo modo, assim foi. Para dar só um exemplo, a leitura, quando tinha catorze ou quinze anos, do belo romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR, de tal maneira me marcou, que me pus logo a redigir o MEU romance, intitulado HISTÓRIA DE JULIÃO (o protagonista do romance de Stendhal chama-se Julien Sorel…).

Porque tanto entrou em mim a beleza acutilante e descascada daquele romance, que para sempre me apropriei dele. 

A grande leitura é uma apropriação. Ler a sério é roubar. Ladrão de livros é o que o grande leitor é. E rouba-os de diferentes maneiras: uma delas é entrar na narrativa e modificá-la a seu contento. Querem um exemplo? Passo a vida a dizer que a protagonista daquele romance de Stendhal, a Senhora de Rênal, de quem realmente gostava era de mim e não do ambicioso latinista, Julien Sorel…

Chamem-me o que quiserem: factos são factos. 

Vou agora dar uma lista das obras que mais profundamente me marcaram, lidas em Lourenço Marques, até aos 17 anos, altura em que vim para Lisboa, cursar engenharia.

Outro dia, farei alguns comentários sobre estes meus profundos “encontros”. 

POEMAS LÍRICOS e PASSAGENS DOS LUSÍADAS - Camões
O BOBO – de Alexandre Herculano
A MORGADINHA DOS CANAVIAIS – de Júlio Dinis
VIAGENS NA MINHA TERRA – Garrett
FREI LUIS DE SOUSA - Garrett
O ARCO DE SANT’ANA – Garrett
FAMÍLIA SEM NOME – Júlio Verne
QUO VADIS? – Henryk Sienkiewicz
O SARGENTO-MOR DE VILAR – Arnaldo Gama
AS VIAGENS DE TOM SAWYER – Mark Twain
AS AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINN – Mark Twain
VERMELHO E NEGRO – Stendhal
ARMANCE – Stendhal
RESSURREIÇÃO – Tolstoi
ASSIA – Ivan Turguenev
JANE EYRE – Charlotte Bronte
VILLETTE – Charlotte Bronte
CANDIDE – Voltaire
ZADIG – Voltaire
O LÍRIO VERMELHO – Anatole France
COÉFORAS – Ésquilo
REI ÉDIPO – Sófocles
NOITES BRANCAS – Dostoiewsky
ESTÁ MORTA! – Dostoiewsky
CORAÇÃO DÉBIL - Dostoiewsky
O ESCARAVELHO DE OURO – Edgar Poe
ARCO-ÍRIS – Wanda Wassilewska
ELECTRA E OS FANTASMAS – Eugene O´Neill
ANA CRISTINA – Eugene O’Neill
ALÉM DO HORIZONTE – Eugene O´Neill
NOSSA SENHORA DE PARIS – Victor Hugo
O DRAMA DE JOÃO BAROIS – Roger Martin du Gard
OS THIBAULT – Roger Martin du Gard
O TIO GORIOT – Balzac
UMA GOTA DE SANGUE – José Régio
POEMAS DE DEUS E DO DIABO – José Régio
FEL – José Duro
ESTES DIAS TUMULTUOSOS – Pierre Van Paassen
ADEUS ÀS ARMAS – Hemingway
POR QUEM OS SINOS DOBRAM – Hemingway
CONTOS – Hemingway
CONTOS – William Saroyan
AS VINHAS DA IRA – Steinbeck
RIKKI-TIKKI-TAVI – Rudyard Kipling
O HOMEM QUE MORREU - D. H. Lawrence
UMA MULHER FUGIU A CAVALO – D. H. Lawrence
CODINE – Panait Istrati
TONIO KROGER – Thomas Mann
CONTOS – O. Henry
A LOUCURA DE PEREDONOV – Fiodor Sologub
OS MENINOS DIABÓLICOS – Jean Cocteau
VIDAS PARALELAS – Plutarco
PÂNTANO – João Gaspar Simões
A SELVA – Ferreira de Castro
ETERNIDADE – Ferreira de Castro
CAMINHOS CRUZADOS – Erico Veríssimo
TERRAS DO SEM FIM – Jorge Amado
CAPITÃES DA AREIA – Jorge Amado
O ALIENISTA – Machado de Assis
A ARMADILHA E OUTROS CONTOS – Pirandello
TEATRO - Oscar Wilde
O RETRATO DE DORIAN GRAY – Oscar Wilde
CONTOS E NOVELAS – Oscar Wilde
TAMBÉM OS CISNES MORREM – Aldous Huxley
O SORRISO DA GIOCONDA – Aldous Huxley
SPARKENBROKE – Charles Morgan
O HOMEM, ESSE DESCONHECIDO – Alexis Carrel
AMOK – Stefan Zweig
HISTÓRIA DA FILOSOFIA – Will Durant

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

TEMPO DE BALÕES

O Tom Sawyer andava de balão 
e fez uma viagem do caraças. 
O balão não servia pra espião
e nem o Tom estava para graças,

dentro do balão que o transportava,
de terra em terra, só pra conhecê-las,
vistas do ar. E o que importava 
era conhecê-las e não comê-las! 

Pois, se agora a China lança balões,
para espiar a terra do Tom,
dando enviesadas explicações, 

já não apetece comer bombom,
dentro do balão que nos transporta,
em boa paz, prá cidade da Horta! 

Eugénio Lisboa

Peço ao Onésimo que me não leve a mal meter a Horta neste soneto sobre balões e espiões, mas, rima, a quanto obrigas!

Eu irei, se tiver de ir contra o mundo

Eu irei, se tiver de ir contra o mundo.

Do mundo nem de mim me perderei.

O que conta é a razão de ir e irei,

Se me encontrar em cruz alta, no fundo.

 

Lancetado o coração, moribundo,

Ainda força em mim encontrarei…

E mais do que firmeza mostrarei

Ser tenaz este meu sangue rubicundo.

 

Eu irei, porque não aceito a morte

Pelo rumor ou pela malquerença

De quem sem verdade se mostra forte.

 

Quem me aviltar, terá minha presença.

Pra vero ninguém nasce já com sorte

E até do mundo a mentira é doença.

 

domingo, 19 de fevereiro de 2023

CUIDADO, DAISY, COM O ÁLVARO DE CAMPOS

Olha, Daisy, quando eu morrer (…) 
Álvaro de Campos

Olha, Daisy, o palerma do Álvaro
estava-se marimbando para ti.
O tipo não passava de um bárbaro,
que só pensava em glória, abacaxi,

triunfos, máquinas e outras merdas!
Borrifava-se para as mulheres,
que eram, para ele, puras perdas
e muito piores do que clisteres!

Olha, querida, não acredites em gajos,
que matam a mãe, por causa da glória: 
antes, de longe, índios navajos,

que são gente pacífica e simplória.
Tipos com máquinas e pouco sexo
deixam-me, confesso, muito perplexo! 

Eugénio Lisboa 

Nota: É possível que achem este soneto um bocado malcriado, mas o Álvaro de Campos também era fresco!

sábado, 18 de fevereiro de 2023

COMO FOMOS, ASSIM ESTAMOS

Em comentário ao texto Miguel Real e o Problema de Portugal, de Carlos Fiolhais, a professora e escritora Maria Luisa Bouza Serrano deixou a referência de um livro que publicou em co-autoria no qual se procura "caracterizar não só a nossa forma de ser ao longo dos séculos, mas também o modo como fomos pelo mundo".

Trata-se de uma colectânea de textos respeitantes à História de Portugal e dos Portugueses, organizados cronologicamente, que procuram responder ao "como fomos". Em sequência, focaliza-se no "assim estamos", indagando "a identidade que consolidámos" 

Na Prefácio diz Maria Flor Pedroso, que "é um livro de História incomum, especial e diferente de todos os outro", materializando-se numa aula de História. "Para não esquecer o que já passou e sobretudo para guardar a memória tentando não cometer os mesmos erros".

Ainda que eu não tenha mais caminho

Ainda que eu não tenha mais caminho,

Podes dizer que me amas para ti.

Ainda que sempre esteja sozinho,

Podes dizer que me amas só a mim.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O OLVIDO

O olvido. Inevitável. Absoluto.
Camilo Pessanha. 
Clepsidra 

O olvido é o que nos espera.
Inevitável, como é a morte.
Absoluto, como lisinha esfera.
Servindo, ao nada, de passaporte.

O olvido torna todos iguais:
iguais entre si e iguais ao nada.
Igualdade almejada pelos mais, 
pra quem a diferença era odiada.

O olvido, afinal, tudo alisa,
numa autêntica democracia:
no nada, já ninguém se encoleriza,

porque o nada a todos beneficia:
tanto vale aquele que foi a Pisa,
como aquele que não conseguiu Elisa!

Eugénio Lisboa

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Thaisa Storchi Bergmann - Buracos Negros

NOVOS CASSICA DIGITALIA

OClassica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.

NOVIDADES EDITORIAIS

Série “Portugaliae Monumenta Neolatina” [texto latino, tradução e comentário]

António Guimarães Pinto & Jorge A. R. Paiva, Pietro Andrea Mattioli. Defesa contra o português Amatho. Fixação do texto latino, introdução, tradução e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023) 382 p. DOI:  https://doi.org/10.14195/978-989-26-2287-3

[Em 1553, Amato Lusitano publicou, em Veneza, as suas celebradas In Dioscoridis enarrationes, nas quais algumas alusões e críticas, em tom urbano e comedido, esparzidas ao longo do texto e tendo em mira o notável médico e botânico Pietro Andrea Mattioli, suscitaram neste uma violenta reação, de que a mostra mais palpável é o livro Defesa contra Amatho Lusitano, objeto desta publicação, saído a lume em volume não-paginado, autónomo, também em Veneza, ex oficina Erasmiana Vincentij Valgrisij, & Balthassar Costantini, no ano de 1558.]

Série “Humanitas - Supplementum” [estudos]

- Fernando Rodrigues Junior, Rainer Guggenberger & Breno Battistin Sebastiani (Coords.), A produção dramática no Período Helenístico e sua influência na literatura Greco-Latina Posterior (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 297 p.DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2394-8

[Os textos reunidos neste livro foram apresentados na Sexta Semana de Estudos sobre o Período Helenístico: a Produção Dramática no Período Helenístico e sua Influência na Literatura Greco-Latina Posterior, realizada na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, entre os dias 10 e 11 de março de 2020, e na Primeira Jornada de Estudos sobre o Período Helenístico: a Poesia Dramática, realizada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre os dias 12 e 13 de abril de 2021. Ambos os eventos estão vinculados ao grupo de pesquisa Hellenistica, fundado em 2011 na Universidade de São Paulo com o objetivo de organizar periodicamente eventos voltados ao estudo da literatura do período helenístico, reunindo estudiosos brasileiros e estrangeiros que atuam nessa área.]

Depois do Mar

Depois do mar,

Do sol e do corpo.

Depois de ti,

O caminho, o arco-íris

Depois do rosto.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

DIA 16/2, 18H, LIVRARIA ALMEDINA ESTÁDIO: DE ANGELIS VEM A COIMBRA APRESENTAR O SEU «GALILEU EM PÁDUA»


 

Carlos Fiolhais, director da colecção «Ciência Aberta» apresentará o autor com a presença do editor. 

JOSÉ PACHECO PEREIRA

Por Eugénio Lisboa 
À medida que avançamos 
na vida, apercebemo-nos
de que a coragem mais rara 
é a coragem de pensar. 
Anatole France.
La Vie Littéraire

A Sociedade Portuguesa de Autores acaba de atribuir o Prémio VIDA E OBRA a José Pacheco Pereira. Dificilmente poderia ter escolhido melhor. José Pacheco Pereira situa-se naquela nobre linhagem de clercs que, como o Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Raul Proença, António Sérgio ou Jaime Cortesão, souberam gerir a nobre missão de serem incómodos. 

A melhor maneira de ser incómodo é não ter medo de pensar e, depois, dizer sempre o que se pensa. Coisa raríssima, querer pensar: Huxley observava escarninhamente, que pensar é a excepção à regra de não pensar. 

Mas não chega pensar: quando o pensamento pode incomodar muita gente, há duas escolas de pensamento, uma mete a viola no saco ou diz o que não pensa, a outra diz mesmo o que pensa, venha a tempestade que vier.

No nosso milieu intelectual, abundam sobretudo os que fazem cálculos de interesses e futurologias de cargos e sinecuras. Antes de porem cá fora o que pensaram, calculam os custos e quase sempre concluem que são demasiado elevados. Os outros – um número muito reduzido – decidem que tem melhor estética ser destemido e que, além disso, como observava Shaw, ninguém se diverte tanto como a pessoa que diz o que pensa: é só ver o ar atabalhoado dos que assistem ao exercício. 

José Pacheco Pereira, armado de uma grande cultura (não só política) e de uma intrepidez à prova de bala, quando fala, escreve ou actua, deixa-nos sempre a grata impressão de pertencer a um único Partido: o da Inteireza do pensar e do “franc parler” que Stendhal tanto estimava. É pois parte integrante do melhor que o nosso património cultural tem para legar aos vindouros. Assim seja e bem haja. 

Eugénio Lisboa

E TUDO O VENTO LEVOU

A acção de ventos, águas, tornados,
terramotos e guerras assassinas, 
retaliações de deuses irados,
ou gula grande de carnificinas

de tiranos fabricados em coitos
nocturnos e sulfúricos, de bruxas,
todos eles, infernalmente afoitos,
ao som muito cheio de sacabuxas,

fizeram, da vida, eterna morte,
eterno sono, todo sem memória,
de leste a oeste, de sul a norte:

da História, não ficou qualquer história,
porque tudo, tudo se arrasou,
incluindo o que se registou.

Eugénio Lisboa

domingo, 12 de fevereiro de 2023

DA GRANDE VANTAGEM DE SER TOTALMENTE IGNORANTE

Por Eugénio Lisboa
Quando não tiveres nenhum
fundamento para argumentar,
insulta o teu adversário.
Cícero

O valor da educação tem sido absurdamente exagerado, para não dizer mitificado. A educação funciona ao contrário de certos venenos. Há venenos que, aplicados em pequenas doses, são benéficos para a nossa saúde. Mas, ministrados em grandes doses, são letais. 

Com a educação dá-se o inverso: administrada em doses razoavelmente grandes, é benéfica em várias frentes, mas administrada em doses residuais, é catastrófica. É melhor, para a sociedade, o indivíduo totalmente ignorante do que o indivíduo com um reduzido teor de conhecimento. O ignorante total conhece a humildade. O ignorante com um conhecimento residual, torna-se arrogante e malcriado. 

Costumo dizer que pior do que um ignorante, só um ignorante diplomado. O ignorante diplomado apoia-se somente no seu diploma e falta-lhe a ferramenta que o aguente, numa discussão ou debate. Furioso, recorre ao insulto, como recomendava, ironicamente, Marco Túlio Cícero. Não é bonito mas é humano. 

Infelizmente, ignorantes diplomados é o que mais abunda na nossa sociedade, mesmo entre os da assim proclamada “geração mais preparada de sempre”. É que anda por aí um perigoso equívoco: a referida geração poderá ser a mais diplomada, o que não faz dela necessariamente, a mais preparada. Basta passearmo-nos desenfastiadamente pelas redes sociais, para nos inteirarmos da iliteracia funcional que grassa por aí, quase sempre aliada ao contentismo parolo, à boçalidade mais desprotegida, à incapacidade de pensar com alguma higiene e à total impreparação para a escrita. 

E são estas pessoas, diplomadas mas não preparadas, que vão, um dia, governar este país, porque o “diploma” lhes dá esse direito e essa ambição. São estes diplomados, destituídos de conhecimentos sólidos, de uma mínima capacidade de pensar e armados até aos dentes com “slogans” e “clichés” mal digeridos, que vão “formar” as gerações futuras. 

Perguntava o grande cientista Thomas Henry Huxley, da família extraordinária dos Huxleys (junte-se-lhe Aldous Huxley e Julian Huxley): 
“Se uma pequenina quantidade de conhecimento é perigosa, onde é que se vai encontrar um homem com tanto conhecimento que o livre do perigo?” 
Boa pergunta, com efeito. A origem principal deste desastre deve ir procurar-se, não tanto, nos próprios “ignorantes diplomados”, como no sistema educativo congeminado pelos donos de novos dogmas da educação, tão falsos como destrutivos. Vende-se facilitismo, conforto e “alegria de viver”, em troca de verdadeiro conhecimento que, alegadamente, “faz doer”. 

Parafraseando James Northcote, eu concluiria, dizendo que o nosso sistema educativo está a transformar os seus “clientes”, não em fontes de saber, mas em cisternas de saber. 

Eugénio Lisboa

Parto, como um choupo parte no outono

Parto, como um choupo parte no outono,

Ao encontro da adumbrada nudez,

Onde posso olhar o íntimo do corpo

E adornar-me de esperança outra vez.   




sábado, 11 de fevereiro de 2023

GATOS: ALGUMAS OBSERVAÇÕES

Uma mãe-gata com o seu filhote 
é uma beleza da criação:
é puro Mozart, a escrever a mote 
o que vai ser uma linda canção! 

Um gato é um quinteto de Mozart, 
feito todo, com finura e delícia, 
recheado de engenho e arte
e não escondendo alguma malícia. 

O gato inventou o Leonardo,
para que este o pudesse pintar, 
mas, achando o quadro pouco galhardo,

mandou o Leonardo passear!
O gato tem padrão muito exigente,
o qual ele impõe, absolutamente! 

Eugénio Lisboa

É PRECISO DEIXAR DE ENGANAR OS ALUNOS

Em Dezembro passado, Daniel Arias Aranda, professor da Universidade de Granada, publicou uma carta ao estilo de "carta aberta" - primeiro, numa rede social e, depois, num jornal online (ver aqui e aqui) - com o título provocador: ‘Querido alumno universitario de grado: Te estamos engañando’. Dada a sua grande divulgação na comunidade universitária e fora dela, foi de novo entrevistado (ver aqui). Destaco, desta entrevista, as seguintes ideias:
A mudança a que temos assistido na universidade não pode ser atribuída a um único factor. No entanto, entre os factores mais relevantes estarão os seguintes: distracção nas aulas provocada pela generalização dos dispositivos electrónicos; constante mudança das leis educativas; burocratização do ensino, que influencia a frustração dos professores; descida de nível dos conhecimentos nos ciclos de escolaridade pré-universitários. 
No respeitante a este último é de notar que os alunos chegam à universidade e pensam que é mais do mesmo. Os professores tendem a moldar-se ao seu nível, até porque há exigências de êxito académico.

Também se deve ter em conta a crescente protecção por parte dos pais, de que o fenómeno dos grupos de whatsapp de mães é um exemplo. Nascidos no pós-guerra, não ensinam aos filhos o valor do esforço nem os formam para serem independentes, contribuindo para que se tornem adultos amargados e manipuláveis.

Face a este diagnóstico, que se me afigura bastante realista, há que perguntar: o que deveremos e poderemos fazer para deixar de enganar os alunos?

Estreia de As intermitências da morte - Bonifrates

Informação que nos foi facultada pela Direcção da Cooperativa Bonifrates 


É com todo o gosto que vos informamos da estreia da nossa nova produção, As intermitências da morte, baseada em romance de José Saramago, com adaptação teatral de João Maria André e encenação de João Paulo Janicas, no dia 14 de fevereiro, 3ª feira, pelas 21.30 horas, no Teatro-Estúdio Bonifrates (Casa Municipal da Cultura de Coimbra). 


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

ELOGIO DA ESTUPIDEZ, UM MAL AMADO CONDIMENTO DO ATREVIMENTO

A estupidez é uma vocação,
como é ser médico ou ser padre: 
o estúpido põe muita devoção 
na obtusidade e no seu cadre.  

Há, no estúpido, muita energia  
e uma grande vontade de fazer:  
ele insiste, com grande alegria,  
no que produz, mesmo sem perceber!  
 
A estupidez é uma forma de génio,  
porque é uma grande paciência:  
ela nunca abandona o proscénio  

e transforma a burrice em ciência! 
A estupidez, por nada, desiste  
e torna-se imortal porque insiste! 
 
Eugénio Lisboa  

NOTA: “A genialidade não é senão uma grande aptidão para a paciência”, disse-o Buffon e, depois dele, disseram-no Edison, Santos Dumont e muitos outros. A estupidez é, visto isso, uma das modalidades do génio. De aí o ter desejado consagrar-lhe este merecido elogio.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Uma flor chega para mudar o tempo

Uma flor chega para mudar o tempo

E entrar o sol na ternura do coração.

Uma flor chega para mudar o vento - 

Ter o ar do rosto, a candura da mão.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Descobre-te na avidez do sol vernal

I)

O teu sorriso honesto se espalha.

E o meu sol em todos os abismos

Da tua alma.

II)

Descobre-te na avidez do sol vernal.

Busca os atalhos de mel

Rumo à carícia, ao chão.

Rasga a chama, rasga a pele.

Ama com garra, diz 

Sim ao desabrochamento do coração

E descobre-te na obstinação,

Na avidez da mais ínfima raiz.

III)

Segura o coração.

As mãos do tempo

Iniciam agora

A reconstrução. 


O papel dos OCS na aproximação do público à Ciência | Repórter E2

PREFÁCIO À OBRA SELECTA DE MANUEL SÉRGIO

 


Prefácio ao 1.º volume da Obra Selecta de Manuel Sérgio, que vou lançar amanhã em Lisboa:

Manuel Sérgio (n. 1933) é o sábio construtor de uma ponte entre a Filosofia e a Educação Física, os seus dois domínios de formação, que pareciam estar nos antípodas um do outro. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1977), doutorou-se no Instituto Superior de Educação Física da antiga Universidade Técnica de Lisboa, hoje denominado Faculdade de Motricidade Humana (1986), onde também fez a agregação (1988) e exerceu docência. O feliz cruzamento interdisciplinar que concretizou entre nós passou precisamente por mudar a designação de «Educação Física» para «Ciência da Motricidade Humana». O nome primitivo assentava na premissa cartesiana da separação do corpo e do espírito, ao passo que o novo visava superar a dita divisão uma vez que a motricidade humana, se tem obviamente uma parte corporal, tem também uma outra, não menos relevante, que é eminentemente mental: as duas têm de estar bem articuladas para que o corpo se mova da melhor maneira, por exemplo na prática de uma modalidade desportiva. Mas Ciência da Motricidade Humana não se esgota no desporto: para além dele, engloba a dança, o circo, a ergonomia, a reabilitação, etc. Nada do que é o corpo humano em movimento lhe é estranho. Apesar da novidade do termo e de alguns dos seus conteúdos, mantém-se a máxima do poeta romano Juvenal, dos séculos I e II da era cristã: mens sana in corpore sano.

A carreira académica de Manuel Sérgio está longe de ser a tradicional, pelo menos a avaliar pelos padrões etários da obtenção dos graus académicos. Antes da Universidade propriamente dita, Sérgio andou na Universidade da Vida, a mais exigente de todas. Diz-se que a Universidade prepara para a vida, mas, no caso de Sérgio, foi a vida que o preparou para a Universidade. A sua experiência laboral permitiu-lhe ser um caso raro de self-made thinker, afinal a posição que melhor serve para arrostar modelos culturais arreigados. De origens humildes, entrou muito jovem para funcionário administrativo do Arsenal do Alfeite, pertencente ao Ministério da Marinha, e só anos volvidos se tornou professor de uma Escola Comercial e Industrial e de um colégio nas redondezas de Lisboa. As suas excepcionais qualidades pedagógicas começaram desde essa altura a ficar patentes. Em 1968, entrou profissionalmente no domínio do Desporto, ao iniciar funções de direcção do Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto (pertencente ao Ministério da Educação), que estava instalado no Instituto Nacional de Educação Física, em Lisboa. Uma reportagem da RTP, guardada nos seus arquivos, mas visualizável online, mostra o telegénico Manuel Sérgio, com 37 anos, a mostrar o referido Centro e a convidar treinadores, atletas e jornalistas a visitá-lo. Para além, claro, de alunos, pois aquela escola diplomava professores de Educação Física. Sérgio, imerso naquele repositório de informação cuja leitura decerto o ocupava, nunca mais largaria o desporto, pensando-se e repensando-o. Para Sérgio, o desporto tinha – e tem – de ser continuamente pensado.

Tendo entrado no conhecimento da área do desporto pelo mundo livresco (nunca foi desportista federado), Sérgio já tinha nessa altura experiência de autor. De facto, começou a sua produção literária em 1961, com o livro de poemas Chuva e a poesia haveria de o acompanhar sempre. Foi só em 1974 que publicou os seus primeiros livros sobre desporto, com a chancela da Direcção-Geral dos Desportos, organismo do Ministério da Educação: a sua obra pioneira de reflexão sobre o desporto começou por um título onde a inovação era desde logo manifesta: Para uma Nova Dimensão do Desporto (1974), que junta uma série de artigos que o autor tinha publicado em jornais como A República, O Século e Record (só sobreviveu este título). Um título saído no ano seguinte confirma a sergiana intenção de ruptura da anquilosada redoma em que estava instalado o desporto nacional: Para uma Renovação do Desporto Nacional (1975, com prefácio de Baptista Bastos). E vários títulos seguintes, saídos a bom ritmo, vão na mesma linha: Desporto e Democracia (1976), O Desporto como Prática Filosófica (1977) e A Prática e a Educação Física (1978). Em 1979 foi publicada uma sua notável antologia de textos desportivos da cultura portuguesa: Homo Ludicus (1979, em dois volumes, coorganizados com Noronha Feio). O primeiro volume incluía textos que iam de D. João I a Sílvio Lima, o professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra saneado em 1935 pelo Estado Novo, e o segundo desde o poeta Alexandre O’Neill ao jornalista desportivo Vítor Santos. Fazendo o balanço da produção sergiana no período que se seguiu à Revolução de 1974, desde Sílvio Lima que não se via entre nós um intelectual não só tão interessado pelo fenómeno desportivo como também com conclusões tão argutas sobre ele.

Nos anos de 1980 ficou ainda mais clara a ideia de Manuel Sérgio de que era previso ver a Educação Física e o Desporto por outro prisma: a Motricidade Humana ganhou carta de alforria. Os títulos dos livros da época dão uma boa indicação dos conteúdos, sendo interessante ver as tutelas que procurava ao escolher os prefaciadores: Heróis Olímpicos do Nosso Tempo (1980, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues), Filosofia das Actividades Corporais (1982, com prefácio de José Barata Moura), Ideário e Diário: um Filósofo Reflecte sobre o Desporto (1984, com prefácio de Vítor Santos), Para um Desporto do Futuro (1986), Para uma Epistemologia da Actividade Humana: Prolegómenos a uma Ciência da Motricidade Humana (com prefácio de Melo Barreiros, 1988), decorrente da sua tese de doutoramento, à qual foi buscar o título. Em 1989, decerto com o contributo dessa tese, a Instituto Superior de Educação Física (que era o novo nome desde 1975 do Instituto Nacional de Educação Física) passou a chamar-se Faculdade de Motricidade Humana. Manuel Sérgio deu aulas nas instituições com as três designações, que se foram sucedendo umas às outras. Teve como alunos alguns treinadores que se tornariam celebridades nacionais e internacionais, como José Mourinho.

Nos anos de 1990, a boa safra sergiana prosseguiu com A Pergunta Filosófica e o Desporto (1991), Alguns Olhares sobre o Corpo (1991), Motricidade Humana. Para um Paradigma Emergente (1994), Para uma Teoria Crítica do Desporto (1997), O Sentido e a Acção (1999) e Um Corte Epistemológico: Da Educação Física à Motricidade Humana (1999). «Corte Epistemológico» não será uma expressão exagerada, pois a visão do autor diferia radicalmente da antiga. Na nova escola de Motricidade Humana, não se tratava apenas de educar o «físico», mas de juntar saberes antes dispersos num novo ramo das Ciências Sociais e Humanas. O Desporto não é apenas uma actividade física, é também e principalmente uma actividade social e humana. Como Sérgio gosta de dizer: «Não há jogos, há pessoas que jogam».

Não seria preciso o continuado processo de reiteração das ideias sergianas, por elas entretanto terem vingado, mas as teses de filosofia do Desporto continuaram a ser reiteradas pelo autor: Algumas Teses sobre o Desporto (2001, com prefácio de Francisco Louçã), Para um Novo Paradigma do Saber e… do Ser (2005, com prefácio meu), Textos Insólitos (2008) e Filosofia do Futebol (2009). Filosofia do Futebol? Sim, um dia Manuel Sérgio disse ao seu aluno José Mourinho, futuro special one: «se quer saber alguma coisa de futebol leia livros sobre Ciências Humanas». Com Sérgio, o futebol passou a ser um legítimo tema intelectual. O professor da Faculdade de Motricidade Humana disserta sobre futebol como se este fosse a coisa mais importante do mundo: de facto, para muita gente é.

Seja-me permitida uma nota pessoal, pois conheci o autor há cerca de duas décadas. Ele é uma pessoa extremamente afável, um gentleman, com quem apetece prolongar a conversa. A sua inteligência transparece desde logo no sentido de humor que exibe. E a sua amabilidade, bem expressa nas relações que cultiva, vai a par com a sua inteligência.

Finalmente nos anos de 2010, quando Sérgio, entretanto aposentado, já era um nome consagradíssimo, surgiram Crítica da Razão Desportiva (2012), As Lições do Professor Manuel Sérgio: Motricidade Humana e Futebol (2013), Citius, Altius, Fortius: Olimpismo & Complexidade (2015, com prefácio de Roberto Carneiro), O Futebol e Eu (2015, com prefácio de José Mourinho), Futebol: Ciência e Consciência (2016),  Desporto em Palavras (2016),  Da Ciência à Transcendência: Epistemologia da Motricidade Humana (2019) e Uma Reformulação da Ética e Outros Escritos (2020). Com efeito, «transcendência» é palavra-chave na nova disciplina da Motricidade Humana: o movimento humano deve tender para a superação, para a elevação, para a transcendência. Manuel Sérgio dixit: «Não há educação do físico, mas de pessoas no movimento intencional da transcendência.» De certo modo, é o regresso ao antigo ideal olímpico, em que os atletas vitoriosos se aproximavam do estatuto dos deuses. 

Não tive a pretensão de ser exaustivo na enumeração dos títulos. Eles são mais. As últimas cinco décadas viram surgir um total de mais de quatro dezenas de livros de Manuel Sérgio, aos quais acrescem quase duas dezenas de prefácios para livros de outros (Sérgio é uma pessoa generosa!) e inúmeros artigos para revistas e jornais. Tem sido uma obra monumental, produzida ao mesmo tempo que o autor dava aulas em várias universidades do país e estrangeiro, em particular no Brasil, e fazia conferências convidadas, nas quais gostava de colocar uma pitada de humor («O Descartes não jogava no Benfica» é uma das suas frases mais engraçadas). Sobrou-lhe ainda tempo para ser, entre 1991 e 1995, deputado pelo Partido da Solidariedade Nacional, numa experiência política circunstancial que lhe trouxe notoriedade no grande público.

É, em suma, um autor com uma obra assaz considerável, que tem sido objecto de discussão por vários seguidores e que tem levado a merecido reconhecimento por prémios e distinções. Uma das maiores distinções será a criação da Cátedra Manuel Sérgio sobre «Desporto, Ética e Transcendência» na Universidade Católica. Mas outra é o nome da Escola Básica Professor Manuel Sérgio no Restelo, perto do estádio do seu Belenenses. Se a obra de Sérgio se encontra nas bibliotecas e, embora em pequena parte, nas livrarias, tornava-se mister uma sua súmula que condensasse o melhor da sua produção. O presente conjunto de Obras Selectas, cumpre a muito útil função de extrair o sumo das obras atrás elencadas assim como de alguns artigos em periódicos não compilados em livros e de o dar a beber a quem tiver sede. Uma equipa editorial assaz conhecedora, sob a experiente batuta de José Eduardo Franco, professor de Estudos Globais na Universidade Aberta, reuniu criteriosamente em quatro volumes o essencial do pensamento sergiano. O primeiro volume, coordenado por Gustavo Pires, professor na Faculdade de Motricidade Humana, trata A Ciência da Motricidade Humana. O segundo, coordenado por Gonçalo M. Tavares, um dos escritores mais originais da contemporaneidade e que, como professor na Universidade Nova de Lisboa, é um dos discípulos de Sérgio, intitula-se O Desporto Enquanto Projecto Ético e Político. O terceiro, Filosofia, Corporeidade, Desporto-Cultura, é da responsabilidade de Miguel Real, bem conhecido crítico literário, ensaísta e novelista. Por último, o quarto volume, Poesia Toda, reunindo a totalidade da sua produção poética, é da responsabilidade de Luísa Paolinelli, professora de Literatura Portuguesa na Universidade da Madeira.

Faltava um abrégé que permitisse a todos e quaisquer interessados – e os novos são muito bem-vindos – orientarem-se no corpo denso e fascinante do pensamento de Manuel Sérgio sobre o movimento do homem. Agora já não falta!

 

 

 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Duplas à Portuguesa

Duplas à Portuguesa: Marquês de Pombal e D. José I - O terramoto de 1755 e o atentado a D. José em 1758 bastariam para colocar a dupla na História..., mas toda a sua g

domingo, 5 de fevereiro de 2023

UM LIVRO QUE RECOMENDO SEM PESTANEJAR: "CRÓNICA DE ÁFRICA", de Manuel S. Fonseca

Por Eugénio Lisboa

Há livros que são interessantes. 
Há livros que são instrutivos.
Há livros que são importantes.
Há livros que nos deliciam, porque nos dão uma visão cândida da vida, numa escrita ágil, viva, culta, matreira, inovadora, mas despretensiosa e atraente.
Há livros que nos enriquecem e nos entretêm, ao mesmo tempo, e não têm vergonha de o fazer. Há livros que não gostam de ser chatos e por isso não são chatos.
Há livros que nos falam de lugares que muito bem conhecem e de que outros livros falam sem os conhecer, não sabendo portanto do que falam.
Há livros que, mal acabados de ler, nos apetece logo recomendar urbi et orbi.

Este livro que aqui vos trago – CRÓNICA DE ÁFRICA – é isto tudo e mais alguma coisa em que não reparei. 
É aquilo que um livro deve ser para ser um livro procurado, lido e recomendado.
É um daqueles livros que ensinam o gosto de ler, além de ensinarem um número prodigioso de outras coisas.
É um livro em que o autor diz que teve uma infância e adolescência felizes, em lugares onde é costume as pessoas mentirem, dizendo que foram ali muito infelizes, porque é isso que se DEVE dizer.
É um livro em que o autor consegue não ser reacionário e, ao mesmo tempo, não ser mentiroso.

É um autor a quem a vasta leitura e cultura não entupiram. Que gosta de dizer o que viu, o que fez e o que viveu, sem cuidar muito do que se espera que ele diga, para maior conforto de todos os hipocondríacos da literatura. 

E é o autor de um livro, tão divertido como a TORTILLA FLAT, obra por ele citada com o carinho que temos pelas coisas gostosas. Um autor que viveu com pretos, nos musseques de Luanda (como eu vivi com pretos, no Xipamanine, de Lourenço Marques), que brincou com pretos, de quem ficou amigo (como eu) e que até teve um pai (como eu), que não era racista nem colonialista.

Sim, porque houve gente desta em Angola e Moçambique, como houve muito capitalista, racista e colonialista que viveu confortavelmente em Lisboa, Leiria, Viseu ou Porto, sem nunca ter ido experimentar o cheirinho africano. 

Dizer estas coisas até não costuma render em nenhuma das frentes em que se colectam esses rendimentos. Mas eu gosto de as dizer, até porque nasci em Moçambique, onde deixei muitos amigos e o patrocínio de um prémio literário, e, sendo moçambicano, de nascimento, faço como eles, de quem costumávamos dizer que “o moçambicano não tem ronha”. Não ter ronha é não dizer hipocritamente que não existiram certas coisas que realmente existiram. 

Este livro de Manuel Fonseca é um livro de alguém que sabe não ser ingrato para com um continente onde teve uma infância e adolescência gostosas, onde viu coisas esplendorosas e coisas feiíssimas que o colonialismo produziu, sem esquecer, sendo embora discreto, as coisas igualmente feias que a independência trouxe. Porque trouxe, porque muito da elite independentista matou à toa e saqueou despudoradamente os cofres da nação (isto sou eu que digo e não o autor desta saborosa CRÓNICA DE ÁFRICA).

Recomendo, pois, este livro, porque é uma esbeltíssima narrativa, um documento precioso de um lugar e de uma época e porque, encarando a realidade com destemor, nada escondendo, não é um livro hipocondríaco nem hipocritamente autoflagelador. É um daqueles livros raros, dos quais, após a leitura, apetece dizer o que dizia Montherlant dos livros da grande Colette: “C’est ça!” 

Neste recomendável livro encontrei um único erro: quando Manuel Fonseca faz um comovente elogio ao seu Liceu Salvador Correia de Sá, considerando-o o melhor Liceu do mundo, vejo-me obrigado a corrigi-lo, visto que é do conhecimento universal que o melhor Liceu do mundo foi o Liceu que frequentei em Lourenço Marques – o Liceu desafortunadamente apelidado de Liceu Salazar. Mais: é também sabido que o segundo melhor, tenha ele sido qual fosse, ficou a grande distância do melhor. 

Perdoe-me o meu amigo, autor deste belíssimo livro, corrigir este lapso mínimo. Bairrismo com bairrismo se paga!

Eugénio Lisboa