Meu artigo no último As Artes entre as Letras:
Miguel Real (MR), o nome literário de Luís Martins, cuja obra publicada começou
há mais de 40 anos, é, para além de romancista, dramaturgo e crítico literário,
um ensaísta cuja produção é imprescindível para quem se interesse pela cultura
portuguesa. Relevo aqui Portugal. Ser e Representação (Difel, 1988),
Pensamento Português Contemporâneo. O Labirinto da Razão e a Fome de Deus. 1890
– 2010 (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2011), A Vocação Histórica de
Portugal (Esfera do Caos, 2012) e Traços Fundamentais da Cultura
Portuguesa (Planeta, 2017). Portugal é um problema difícil – ocorre-me um cartoon
de João Abel Manta dos tempos da Revolução de 1974, intitulado «Um problema
difícil», que mostra uma turma com os maiores intelectuais e estadistas a
olharem para um mapa de Portugal. Pensadores como António José Saraiva, Eduardo
Lourenço, José Eduardo Franco, José Gil e, precisamente, MR, tornaram o
problema menos difícil. Baseados na história do país, souberam trazer ao de
cima os traços fundamentais da cultura nacional.
Uma faceta recorrente da cultura nacional consiste na indagação das razões
para o nosso atraso no desenvolvimento, em comparação com outros países
europeus. É injusto atribuir esse desfasamento aos tempos de Salazar e Caetano,
uma vez que já no século XIX e mesmo antes estávamos arredados das posições
dianteiras. Mas, nos séculos XV e XVI, teve lugar a saga dos Descobrimentos,
que fez o país ocupar pelo mesmo uma página nos livros de história universal. O
que se passou, entretanto? A questão preocupou a geração de 1870. Antero de Quental,
em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871), disse: «A
decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais
incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa
decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de
rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa
história aparece aos olhos do historiador filósofo.»
MR parte da filosofia e da história, disciplinas que domina, cruzando-as de
modo fértil com a literatura e a religião. Escreveu sobre o Marquês de Pombal,
que mais de cem anos antes de Antero, atribuiu a factores de ordem religiosa – a
malvadez dos jesuítas - a decadência portuguesa. E escreveu também sobre o jesuíta
António Vieira e sobre o sebastianismo que Vieira, à sua maneira, personificou,
o qual vê tempos de grandeza no futuro. MR não subscreve as teses pombalinos da
tenebrosidade dos jesuítas. Comenta em Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa:
«Se a identidade cultural fundamental de Portugal se prende com os Descobrimentos,
ela não teria sido criada sem, num segundo momento, desde o século XVI, o
valiosíssimo contributo dos jesuítas: a rede de colégios criados pela
Companhia, formando elites nativas de mentalidade europeia; o alto nível
cultural dos seus membros, difundindo as realizações científicas europeias, fundindo
as línguas deste continente com as ultramarinas na formação de crioulos, estabelecendo
aulas de gramática, retórica, dialéctica, mecânica, matemática por todo o mundo».
Vieira é um dos expoentes desse contributo jesuíta. Escreve MR no mesmo livro:
«Por via da obra do padre António Vieira, numa dialéctica cristã entre expiação
e redenção, Portugal encontra finalmente, e paradoxalmente, no século de maior
decadência, a justificação ideológica que para sempre fundamentará a sua imagem
providencialista de pátria gloriosa, superior às restantes pátrias europeias». É
óbvio que Portugal não deve ter qualquer propósito de superioridade em relação
aos outros países europeus: a mensagem vieirina soa hoje a utopia mística. Mas
a questão persiste: Por que razão, como
está na capa de A Vocação Histórica de Portugal, Portugal é «um país em
construção, mas parado. Um país
bloqueado» (note-se que o livro é de há dez anos, quando a troika mandava).
O autor responde nesse livro, numa passagem lapidar: «Bom governo seria hoje
aquele que, por múltiplos meios, apostasse em fazer de cada português, não um robot
técnico de fato cinzento, camisa azul e gravata verde ou amarela (actual
fato-macaco do cidadão-técnico, que é sempre um cidadão inconscientemente
instrumento de cruéis estruturas económicas), mas um homem culto consciente do
seu lugar na sociedade e na história. Portugal precisa menos de um choque
tecnológico (experimentado pelo pombalismo, pelo fontismo e pelo cavaquismo. cujas
consequências em nada mudaram o nosso ser. limitando-se a uma mera actualização
de instrumentos técnicos ao serviço da sociedade civil e do aparelho de Estado)
e mais de um choque cultural, elevando cada cidadão a um exigente patamar de
conhecimento humanista e cívico que, por arrasto, geraria inevitavelmente o
desejado choque tecnológico. Primeiro, a cultura, o espírito, o sentido de
transcendência; depois, por inevitável arrasto de exigência cívica, o progresso
tecnológico.»
Eu não diria melhor. MR tem uma visão cultural do país, uma visão que está
infelizmente hoje como no passado ausente da governação. É nesta altura que um
grupo como a Seiva Trupe do Porto é vítima de uma tentativa de extinção às mãos
dos burocratas da administração cultural. E é também nesta altura que os
professores são obrigados a fazer greves e a manifestar-se (lembro que MR é, de
raiz, professor do ensino secundário, uma profissão entre nós tão maltratada)
para verem respeitados princípios básicos da sua dignidade.
É preciso ler MR para percebermos melhor quem somos. Somos ainda,
infelizmente, o que temos sido. Mas, sem sebastianismos absurdos, tenhamos
esperança de que venham aí dias melhores.
3 comentários:
É preciso ter paciência. Com a nova disciplina da cidadania e as novas disciplinas woke as próximas gerações irão transformar Portugal numa potência europeia lol
É preciso ler MR (Miguel Real) para percebermos melhor quem somos. Somos ainda, infelizmente, o que temos sido. Mas, sem sebastianismos absurdos, tenhamos esperança de que venham aí dias melhores.
Por isso eu, Maria LuísaBoyza Serrano, publiquei, com uma colega uma antologia de textos, do século XIV aos nossos dias, chamada "Como Fomos, Assim Estamos, Portugal escrito pelos portugueses, e não só" Mas passou despercebido
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