domingo, 8 de janeiro de 2023

O MERCADO DOS TRABALHOS ACADÉMICOS

"Compra de teses é batota, mas não é crime" é o título, muito apelativo, de um artigo saído na edição mais recente do semanário Expresso. As suas autores, Joana Pereira Bastos e Isabel Leiria, detêm-se num negócio que, sendo antigo, foi, em tempos mais recentes, reformulado, ampliado e consolidado. A internet agilizou-o e normalizou-o. Deixou de ser um acordo mais ou menos obscuro e, por isso, mais ou menos, sigiloso entre quem precisa de obter trabalhos académicos sem os querer fazer e quem se "especializou" em fazê-los; os anúncios começaram a surgir, com especificação de produtos, preços e contactos, tornando o processo "transparente". 

Esta foi a conclusão a que cheguei em 2009, quando procurei (e encontrei) esses anúncios (ver aqui). As jornalistas foram, evidentemente, mais longe do que eu. Em resultado, escreveram:

Na "internet não faltam anúncios de empresas que oferecem «apoio» na elaboração de teses de mestrado, artigos científicos, monografias, relatórios, ensaios ou dissertações. Num dos sites mais populares e há mais tempo a operar neste sector, a «ajuda» é descrita de forma vaga, mas ao telefone é traduzida sem rodeios: «Fazemos tudo o que for preciso, incluindo a escrita integral» (...). Noutro site (...) vai-se direto ao assunto: «Aqui pode comprar ou encomendar o seu trabalho académico»".

Os preços, talvez devido à concorrência, ao aumento do número de clientes ou à menor  exigência académica, desceram: convenhamos que pagar 800 euros por uma tese de mestrado, como se refere na notícia, não é caro. Logo, é apelativo. Pelo menos para quem o sentido da educação não é claro os limites éticos são vagos.

A questão, muitíssimo pertinente, que as jornalistas colocam é se, no caso, a lei anda a par com a ética. Auscultado um jurista, parece que não. Mas, vamos por partes, pois a explicação pode servir a quem se preocupe com o assunto.
Sob o ponto de vista ético, fazer-se passar por autor de um trabalho que foi comprado a outrem, que o produziu, é, sem dúvida, fraude. É fraude, digo eu, depois de ter revisto alguns documentos, porque há o propósito deliberado de enganar (pessoas e instituição) para obter um proveito próprio.

Sob o ponto de vista legal, as jornalistas apuraram, junto de um advogado (cf. na notícia), que a situação "constitui um ilícito disciplinar que pode levar à expulsão da universidade e à anulação do grau, segundo o regulamento interno de cada instituição" mas não é "necessariamente crime (...) já que há um vazio legal". Vou tentar reproduzir as palavras do especialista: quem (pessoas individuais e empresas) faz trabalhos originais por encomenda para os vender não comete qualquer crime e quem os encomenda e compra também não.
(Distinto deste caso é o plágio, em que a lei e a ética estão próximas: apresentar-se como autor de um trabalho feito por outrem, ainda que "descaracterizado" é, ao mesmo tempo, reprovável e crime).

Outros dois especialistas, que conhecem a realidade de ensino superior português (cf. na notícia), disseram que o nosso "mercado" é mais modesto do que noutros países, como Inglaterra. Aqui, autoridades e universidades tomaram medidas: respectivamente, ilegalizar o negócio e reduzir os trabalhos em favor de exames.

Duvido que estas medidas, de carácter repressivo e estratégico, funcionem só por si. Reconheço que são necessárias para deter o problema, mas o seu valor educativo é limitado. Haveria que tomar medidas decorrentes deste valor. Refiro duas que se me afiguram inadiáveis:
reafirmar, desde a primeira hora de formação e por todos os meios, princípios com os quais a universidade está comprometida, que fazem parte da sua essência, como a verdade e a honestidade intelectual, explicitando-os, trabalhando-os e, sobretudo, dando o exemplo. Mas também chamando os estudantes a esses princípios sempre que deles se desviem; 
revalorizar a docência, considerando-a uma acção tão nobre quanto a investigação. Não obstante o discurso de Bolonha, é esta, não a docência, que contribui para a carreira do professor, podendo conferir-lhe prestígio. Seria preciso também reduzir a burocracia "plataformizada" e "na hora", que lhe rouba tempo e disponibilidade mental. Alguém que se dedique aos alunos, que se sente com eles para falar sobre um trabalho ou um teste, está, obviamente, fora da realidade e... a atrasar a disponibilização de dados!

4 comentários:

Alberto disse...

O aparelho de Estado, que nos deixaram os ditadores Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, tinha bons lugares - difíceis de alcançar, porque exigiam honestidade, inteligência e trabalho dos candidatos -, que foram, depois de abril de 1974, ocupados por hordas de licenciados, mestres e doutores, incluindo muitos retornados do ultramar, que tiveram prioridade, porque os revolucionários acharam que o país daria um grande salto em frente se a maior parte da população, mais ou menos letrada, fosse superiormente graduada por equivalência e as novas gerações singrassem facilmente, nem que fosse preciso comprar e vender teses. A malta aproveitou, e entraram tantos licenciados, mestres e doutores para o Estado, nomeadamente professores e educadores de infância, que o sistema, pelo menos, financeiramente, rebentou. Tivemos de chamar a troika que se limitou a concluir que somos um país pequeno demais para tantos doutores!

Helena Damião disse...

Prezado Leitor, a situação a que me refiro nada tem a ver com regimes políticos, do passado ou do presente. E Portugal, tal como mencionam as jornalistas no excelente trabalho que apresentam, estará entre os países em que este "mercado" é menos concorrido. Outros factores, mais de ordem académica devem ser procurados para a explicar e superar. Cumprimentos, MHDamião

Alberto disse...

Doutora Helena Damião,

A situação que se refere no artigo jornalístico é gravíssima. No período imediatamente após o 25 de Abril, houve conclusões de cursos superiores aprovadas por "braço no ar" em assembleias de estudantes. A caricatura de exames que atualmente temos no ensino básico e secundário, não obstante as "doutorais" teses educativas que a sustentam, mais não é do que um convite à fraude, também chamada inflação de notas internas de escolas públicas e privadas, que facilita o caminho de quem quer, e de quem não quer, chegar a doutor, pois assim é que o país fica a ganhar. Porém, nem todos os cursos universitários são brincadeiras inconsequentes que, no mínimo, servem para dar aulas nas escolas EB 1, 2, 3 + S + JI. Há cursos, como Engenharia, que preparam as pessoas para saberem fazer pontes seguras, ou Medicina, onde se ensina a curar doentes graves.
Cumprimentos.

Alberto disse...

No tempo de Eça de Queirós, florescia o mercado das relíquias religiosas. Então, as compras dos crentes iam desde os inumeráveis fragmentos que restavam da Vera Cruz à própria coroa de espinhos, com que os romanos torturaram Jesus Cristo.
Agora, com uma menor influência sociocultural da Igreja Católica vendem-se e compram-se, às paletes, teses de licenciatura, mestrado e doutoramento. Por falar em doutoramento, é uma vergonha que a aquisição desse grau académico, por parte de um professor, de um educador de infância, ou de um enfermeiro, não implique a imediata ascensão ao topo de ambas as carreiras profissionais.
No âmbito estritamente cultural, pergunto:
Estamos a andar para a frente, desde o século XIX, ou estamos a andar para trás?

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