domingo, 15 de janeiro de 2023

“Ter a coragem de reformar a escola tem que ver com um regresso à exigência.”

O título foi extraído de um artigo de Audrey Jougla, professora de filosofia,  publicado no Le Monde de l´Éducation (referência encontrada aqui).

Nesse artigo, a professora francesa afirma:


Os professores  têm alertado constantemente para a queda do nível dos alunos, ainda que alguns argumentem que se trata de um bordão e que os alunos de hoje dominam competências que os seus antecessores não possuíam. Contudo, apesar do que afirmam os rankings internacionais, quando lemos os textos ou ministramos cursos, a realidade é assustadora: no final do ensino básico (collège, em França), os alunos são “não-leitores”, como agora são chamados, e no último ano do curso geral uma grande maioria dificilmente consegue exprimir uma ideia com clareza, por escrito.

Não se trata aqui de ortografia ou gramática (se fosse só isso!) mas de uma incapacidade de compreender e de se fazer compreender, que hoje se estende mesmo aos alunos do final do ensino secundário.


A mesma professora desenvolveu o seu pensamento num livro publicado em 2022.

Apresentam-se alguns parágrafos do seu pensamento, expresso num artigo que podem ser lido na íntegra aqui.


Como professora de Filosofia e apaixonada pela profissão, tenho assistido a uma grande mudança, quer da escola, quer dos alunos, em apenas 5 anos... O nível dos alunos é inquietante, o ensino já não atrai novos professores, a escola já não resolve as desigualdades sociais.

Mas porquê e como chegámos a este ponto? A investigação precisava de cruzar os estudos, as estatísticas, de entrevistar os investigadores, os professores para chegar à objectividade dos factos. Longe de ceder ao catastrofismo, trata-se de seguir as causas, históricas, sociais, políticas que conduziram aos problemas que a escola atravessa hoje.

A crise da educação diz respeito, em primeiro lugar, às novas gerações de alunos, que não têm a mesma relação com o saber que tinham há cinco anos. O ensino perdeu legitimidade, e os cursos entram facilmente em concorrência com outras fontes julgadas equivalente (vídeos, Youtube, plataformas de conteúdos educativos, etc.). Esta desconfiança face aos professores traduz também um relativismo impregnado  nas mentalidades, em que tudo é igual e onde nenhuma hierarquia de discursos é possível.

Junta-se a isto uma queda na concentração e atenção dos alunos, cujo tempo gasto nas redes sociais explodiu, e um incentivo  para os professores fazerem da educação entretenimento, para entreter, com os computadores ou com outros intervenientes dentro da escola, para “captar” os alunos. Nesse jogo perigoso, a falta de atenção é remediada exercitando-a ainda menos, de modo que a leitura de um livro, que exige energia e memorização activa, parece muito longa ou muito difícil para muitos alunos.

 

A falta de referências fragiliza a escola: cresce entre os pais dos alunos uma cultura de consumo e de contestação, visto que as notas, os exames perderam não só o valor, mas também o carácter anónimo e republicano, ...

 

Ao mesmo tempo, o próprio nível dos professores é questionável, quando a instituição não tem relutância em colocar diante dos alunos estudantes recém-licenciados, sem concurso e sem experiência, colocados à pressa, ...

Nem a autoridade dos professores, nem a das avaliações e dos exames são respeitadas. Isso conduz a estratégias por parte das elites, que matriculam os seus filhos em escolas particulares de renome ou recorrem a certificações privadas para garantir níveis de língua estrangeira ou de francês. Fica claro, então, que a escola deixa de ser a garantia de um nível igual para todos e renuncia, assim, à sua missão primeira.

O mesmo se passa com o domínio da língua, a cultura geral, a lógica ou a capacidade de raciocinar e exercer um espírito crítico: o incentivo à benevolência opõe-se a qualquer esforço.

Como escreve Arendt, em A Crise da Cultura, a escola não é de forma alguma o mundo e não deve apresentar-se como tal; é, antes, a instituição que se interpõe entre o mundo e o domínio privado que constitui a casa para permitir a transição entre a família e o mundo.

Porém, o que falta actualmente, e que raramente ouvimos nos meios de comunicação, é essa capacidade de permitir a transição entre a família e o mundo: o desafio do saber escolar é que ele não visa a empregabilidade dos alunos, o que equivaleria a traçar uma demarcação entre saberes úteis e saberes inúteis, mas dar-lhes autonomia de pensamento e de construção individual para compreender o mundo em que irão viver. Ao privarmos os alunos do domínio do francês, ou de sectores inteiros da cultura geral, estamos a amputá-los de  ferramentas preciosas para se situarem eles mesmos na sua vida futura.

 

Tanto a inclusão como a benevolência são preceitos na moda que foram desviados de seu sentido mais profundo e actuam hoje com uma grande hipocrisia em relação aos alunos: eles são levados a acreditar que tudo é adaptável, negociável, que todos têm direito à sua diferença, por exemplo que a ortografia já não interessa, quando é certo que esse factor nunca foi tão discriminante.

 

A meritocracia acaba por se voltar contra os alunos, porque, ao fazê-los acreditar que todos podem ter sucesso, se quiserem, e que a escola tudo tem feito para se adequar ao seu nível, induzimos a ideia de que, se fracassarem, só podem culpar-se a si próprios, quando, desde o início de sua escolaridade, eles só podiam ser puxados pelas suas famílias. Como observa o filósofo americano Michael Saendel, a ideia de mérito esconde uma humilhação: aqueles que não conseguem, quando podiam ter conseguido, só podem culpar-se a si próprios.

 

 

3 comentários:

Helena Damião disse...

Prezada Isaltina, este texto explica muito claramente porque é que não devemos defender intransigentemente as políticas educativas em curso. Como professores, como investigadores, enfim, como adultos responsáveis pelos mais novos, temos obrigação de questionar, com objectividade e conhecimento, se estamos no bom caminho ou não. A minha opinião é a mesma desta autora: não estamos no bom caminho. As consequências são bem visíveis, há um prejuízo para as crianças e os jovens, que serão adultos em breve... Precisamos de encontrar um caminho que os beneficie e que possa deter o problema. Obrigada e cumprimentos, MHDamião

Isaltina Martins disse...

Cara Helena, este é o mal destes nossos tempos, por todo o lado. Os problemas estão sinalizados, os especialistas apontam-nos, os professores queixam-se, mas os decisores continuam surdos e cegos ao que se passa. Estamos a formar uma geração de analfabetos, que sabem "mexer" num computador e noutras tecnologias, mas que não sabem processar informação, não entendem o que lêem porque não sabem reflectir, não se concentram, tudo para eles é superficial, rápido, passageiro. Estes jovens/adultos nunca saberão tomar decisões responsáveis, pesar os prós e os contras... E eles serão os futuros governantes, decisores... Mas, claro, há as elites que têm outra formação e, portanto, serão esses o FUTURO... sempre os mesmos, os ricos comandam, os pobres não passarão do mesmo... As excepções existirão sempre, mas não são essas que fazem evoluir um país! Obrigada também, Helena, pelos seus alertas constantes— Isaltina Martins

Alberto disse...

Os professores, despojados da sua autonomia técnica e pedagógica, como se vê pela imposição que lhes fazem todos os dias de engolir ordens anti-pedagógicas, procedentes do próprio ministro, secretários e demais altos funcionários do ministério da educação, demitem-se da sua função principal, que é ensinar, e entram na onda de laxismo que submergiu as escolas EB 1, 2, 3 + S + JI. Só que depois vêm, no silêncio das longas noites em claro, os remorsos dos docentes que não souberam defender devidamente a sua digna profissão, esteio primeiro da sua identidade seriamente ameaçada por sequazes da filosofia ubuntu, e ei-los a invadirem ruas e praças da capital, de braço dado com os colegas auxiliares de ação educativa e com os educadores de infância, que também servem para tomar conta de crianças, para gritarem, bem alto e aos quatro ventos, a dor lancinante nas fontes que lhes provoca a derrocada da escola pública.
A identidade profissional do professorado está em causa. Os professores só servem para guardar crianças, ou também servem para ensinar?!
Depois, varrer o problema da indisciplina e violência escolar, para debaixo do tapete, impede a resolução de todos os outros problemas dos professores e da educação.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...