terça-feira, 31 de janeiro de 2023

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A morte nada é face à calúnia

A morte nada é face à calúnia

Que te abre ao meio como uma espada.

Morrer é morrer para os amigos:

Não sermos metade, não sermos nada.

CATÃO, O JOVEM

Ao General Ramalho Eanes, 
modelo de integridade, 
na democracia, em Portugal. 

Catão foi modelo de discrição, 
de integridade e de coragem. 
A sua vida foi uma viagem
de simplicidade e de reflexão.

Desde muito novo, odiou os tiranos 
e dispôs-se a esfaquear Sila,
apesar dos seus muito poucos anos:
perante o mal, o herói não vacila.

Tinha a grandeza dos que se apagam
e se não chegam à primeira fila. 
A Catão, os veludos não afagam 

e, em face da morte, não oscila,
se, à sua volta, o mundo apodrece 
e, da limpa honra, César se esquece!

Eugénio Lisboa

domingo, 29 de janeiro de 2023

OS CAMINHOS DA PERTENÇA

Dedico este soneto aos meus obstinados comentadores.
Atacando-me, fazem-me viver! 

Os crus ideólogos só conspurcam
os textos que leem e não percebem:
se os textos, por acaso, bifurcam,
os ideólogos não os recebem!

Eles só gostam de fortes certezas,
só coisas muito simplinhas e burras;
coisas complexas e ricas surpresas
não são boas pra gentes casmurras!

Um texto ou bem que serve ou não serve:
se serve um grupo ou um partido,
logo o bom do ideólogo ferve!

Mesmo falando do amor mais benzido,
importa é que ele seja do partido
e não seja por outros repartido!

Eugénio Lisboa

sábado, 28 de janeiro de 2023

Meu depoimento no início de 2023 para o «Jornal de Negócios»

O ano de 2023 é muito incerto. Não está à vista o fim da guerra da Ucrânia, que condiciona a geopolítica e a economia. Há desafios enormes no mundo que estão a ser condicionados pelo conflito, como as alterações climáticas e a transição energética. A meta melhor do Acordo de Paris de 1,5 ºC já está comprometida.

Mas acenderam-se luzinhas de esperança no final de 2022: o acordo sobre a biodiversidade e a fusão nuclear. Um futuro melhor não vai ser já, mas depende de nós acelerar a sua vinda.

DEVOTO DOS LIVROS

O escritor José de Almada Negreiros escreveu, em A Invenção do Dia Claro, livro de 1921:
«Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido. No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.» 
Pertenço ao género de pessoas que não resiste a entrar numa livraria sempre que lhe passo à porta. Mas nunca tive a veleidade de contar os livros que lá estão. Nunca sequer contei os livros que tenho em casa, espalhados por várias divisões, desde a garagem até ao quarto, passando pelo escritório e pela sala de jantar. Sei, como Almada, que são demasiados para poderem ser lidos no meu tempo expectável de vida. Apesar da sobrelotação da minha biblioteca, raramente resisto a trazer das livrarias mais uma mão-cheia de livros para fazerem companhia aos outros. Ao chegar a casa, verifico por vezes que já tinha alguns deles: normalmente títulos em novas edições, com capas novas. Não ficando deprimido com a minha falta de memória, ou troco-os ou ofereço-os a amigos, tentando espalhar a minha paixão pelos livros.

Não é só nas livrarias físicas que compro livros. Compro-os on line na Wook ou na Amazon, passe a publicidade. Além disso, sabendo do meu apetite livresco, tanto editores como autores oferecem-me bastantes livros, sendo raro o dia em que o carteiro me traga um pacote (um dos funcionários dos CTT vai-me informando sobre os livros que anda a ler, pelo que abro a encomenda à frente dele, para que ele também saiba das minhas próximas leituras). Também frequento alfarrabistas, de porta aberta ou na Internet, embora, mais por dificuldades de bolsa do que por falta de vontade, não coleccione livros antigos (distingo o Miguel Carvalho, com uma bela loja na Figueira da Foz, e o Francisco Brito, em Guimarães, que faz boas listas enviadas por e-mail). E sou frequentador inveterado de feiras do livro e de alfarrabistas, para além de feiras de velharias onde costuma haver livros a esmo: aos sábados em Lisboa vou sempre que posso à feira da Rua Anchieta, ao lado da Bertrand, e em Coimbra é raro perder a Feira das Velharias que tem lugar no quarto sábado de cada mês, onde vou directo a duas bancas que já sabem o que me interessa (a 1870, de Lisboa, e a Suméria, de Leiria). Oscar Wilde dizia que resistia a tudo menos a uma tentação eu não resisto a uma boa pechincha livreira. 

A minha biblioteca é, além de enorme, diversificada, abrangendo muitos géneros, que vão da ciência (designadamente história da ciência e mecânica quântica, mas também teoria da evolução e genética) à poesia (principalmente portuguesa, mas também alemã). Tenho secções bem fornecidas sobre certos temas: história da ciência  em Portugal (incluindo história da medicina), artes visuais (principalmente, os expressionistas alemães, como Otto Dix), prospectiva (a ciência e arte de prever o futuro), «portugalidade» (seja lá o que isso for), banda desenhada franco-belga e portuguesa (para além dos clássicos gosto do Loustal), etc. Uma das maiores secções, que comecei quando fui nomeado director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, é sobre livros e bibliotecas: inclui a história do livro, as mais belas bibliotecas (o critério de qualidade consiste em ver se inclui a Biblioteca Joanina), as artes gráficas, a indústria editorial, o comércio livreiro, livros com listas dos melhores livros, o «futuro digital» do livro, etc. 

O alfarrabista Carlos Maria Bobone (filho de alfarrabista, pois filho de peixe sabe nadar) escreveu recentemente para a colecção «Retratos» da Fundação Francisco Manuel dos Santos, um livrinho intitulado A Religião dos Livros. Alfarrabistas, livrarias e livreiros, no qual faz, em 93 páginas, um apanhado dos ecossistemas formados pelas pessoas que vendem e compram livros. Depois de lido vorazmente, foi para a secção dos livros sobre livros. Se há uma «religião dos livros», eu não poderei escapar a ser tido como «devoto». O culto consiste na aquisição constante de obras, na leitura de uma pequena parte delas (há quem venha a minha casa e me pergunte se li «aquilo tudo»), na sua arrumação cuidadosa para que saiba onde os encontrar, e, em muitos casos, na escrita sobre o que li, como é agora o caso. 

É impossível escrever sem ler e eu, se continuo a escrever, é porque continuo a ler. Os templos da «religião do livro» estão, para meu contentamento, por todo o lado: as editoras, os estabelecimentos de comércio livreiro, as bibliotecas públicas e particulares, e até os sítios onde se podem deixar livros para que alguém lhes pegue. Pode não ser logo ou aqui, mas haverá sempre um leitor para um livro. 

Bobone fala da crise dos livros, no continuado fecho das livrarias e alfarrabistas, na muito badalada substituição da leitura de papeis pela leitura de ecrãs, mas também fala do continuado encantamento de todos os que gostam de livros, alguns mesmo «devotos» como eu da «religião dos livros», que as livrarias e alfarrabistas oferecem. Conta algumas das histórias que aconteceram nesse mundo (eu também tenho algumas: por exemplo, a de um conhecido alfarrabista que se recusou a arredondar o preço de uns volumes «porque não estávamos em Marrocos»).

Fala dos livreiros (referindo alguns nomes míticos entre nós e no estrangeiro), do vocabulário bibliográfico (uma boa referência é o Dicionário Técnico dos Termos Alfarrabísticos, de Paulo Gaspar Ferreira, da In Libris, do Porto), dos livros usados e raros (incluindo os catálogos e os catalogadores), dos leilões e leiloeiros (onde alfarrabistas e bibliófilos se juntam na ânsia de litigarem os melhores lotes), das livrarias independentes (como a Shakespeare & Co., em Paris, ou a Ferin, em Lisboa), das «aldeias de livros» (como Óbidos, o projecto de José Pinho) e dos clientes (em particular, os bibliófilos), e na doença dos livros (em sentido literal e metafórico).

No final, responde afirmativamente à questão «Há esperança para as livrarias?» Nós, os crentes nos livros, partilhamos devotadamente dessa esperança. ;

PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO MÁRMORE


Minha comunicação convidada no Congresso «Mármore do Alentejo», realizada em Évora em 27/10/2021, que acaba de sair na revista Callipole do município de Vila Viçosa (aqui sem as figuras a cores).

Resumo: Depois de discutir algumas obras-primas mundiais da escultura em mármore, relacionando-as nalguns casos com a ciência, apresento o mármore de Estremoz, resumindo a história da sua exploração e do seu uso na escultura e arquitectura. Termino com uma perspectiva sobre o futuro desse mármore, sugerindo que à dimensão económica se acrescente a dimensão cultural, na qual tanto a arte como a ciência se integram. 

Palavras-chave: Mármore; Escultura; Anticlinal de Estremoz; História industrial; Arte; Ciência.

1.     A beleza do mármore

O mármore tem uma longa história, tendo sido aproveitado pelos antigos gregos em obras escultóricas que hoje nos maravilham. Foi Fernando Pessoa (1888-1935), ou melhor Álvaro de Campos, o poeta que também era engenheiro naval, que escreveu nos anos 30 do século XX, num poema sem título, estes versos lapidares sobre a relação entre ciência e arte [1]:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente a dar por isso.”

De facto, pouca gente conhecerá o binómio de Newton, a fórmula matemática que permite calcular qualquer potência com um expoente inteiro n de uma soma de dois quaisquer números reais a e b:

(Equação do binóimio de Newton)

mas quase toda a gente conhecerá a «Vénus de Milo» (Fig. 1), a famosa estátua em mármore de Afrodite, a deusa do amor exibida no Museu do Louvre em Paris, que foi descoberta em 1820 na ilha de Milos, no arquipélago das Cíclades, no mar Egeu, e que é atribuída a Alexandre de Antioquia (séculos II-I a.C.) [2]. Apesar da ausência de braços, subtraídos pelas vicissitudes do tempo, muitos têm reconhecido nela as medidas ideais, invocando até a «razão de ouro» ou «proporção áurea», o número designado pela letra «phi», ϕ = 1,6180… que, para alguns esteticistas, indica a harmonia perfeita [3]. Este número está «escondido» no binómio de Newton, uma vez que se pode obter a partir dos coeficientes binomiais.

A associação entre o binómio de Newton e a Vénus foi precedida por uma outra, entre nós menos conhecida. Deve-se ela ao escritor italiano Filippo Marinetti (1876-1944), o autor do Manifesto Futurista ([4], publicado originalmente no jornal francês Le Figaro em 1909):

“Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.”

A «Vitória de Samotrácia» ou «Nice de Samotrácia» (Fig. 2) é outra famosa escultura, esta representando a deusa grega Nice, a deusa da vitória, da força e da velocidade, que, tal como a Vénus de Milo, está patente ao público no Museu do Louvre, no topo de uma escadaria, e que, tendo disso descoberta posteriormente (em 1863) na ilha de Samotrácia, na costa da Trácia, no Norte do mar Egeu, é um pouco mais antiga: sendo o seu autor desconhecido, sabe-se que remonta ao final do século III a. C. ou início do século II. Nesta estátua, a que falta a cabeça, os braços estão substituídos por asas, que remetem para a ideia de velocidade que Marinetti queria enfatizar como valor artístico supremo. Pessoa conhecia provavelmente o Manifesto de Marinetti. Ele é um dos arautos do futurismo português, que surgiu no número 1 da revista Orpheu, dirigida por Luiz de Montalvôr, onde vieram à estampa o «Opiário» e a «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos [5].

As duas estátuas têm em comum, para além de serem obras-primas da Antiguidade Grega (de resto, de toda a arte escultórica) e de terem servido, pela pena de Pessoa e Marinetti, para expressar metaforicamente a relação da arte com a ciência e a tecnologia no início do século XX, o facto de serem feitas do mesmo material, vindo da mesma região: o mármore branco, fino e semitransparente de Paros. Paros, outra das numerosas ilhas do Mar Egeu, situa-se num lugar central entre a península do Peloponeso e a costa asiática (no arquipélago das Cíclades, tal como Milos). Paros é hoje um lugar turístico cujos visitantes podem ver as antigas pedreiras de mármore, hoje praticamente abandonadas, da montanha outrora chamada Marathi (hoje Capresso), de onde veio o material não só para as referidas maravilhas da escultura, mas também de várias outras, assim como templos e edifícios públicos.

Foi uma escritora nascida em Vila Viçosa, Florbela Espanca (1894-1930), contemporânea de Fernando Pessoa, mas com uma vida ainda mais breve, que, no poema «Os versos que te fiz» [6], fala do mármore de Paros (podia ter falado do mármore que abunda na sua terra natal):

«Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que a minha boca tem para te dizer!

São talhados em mármore de Paros

Cinzelados por mim para te oferecer
(…)»

Dada a relevância do mármore na região, não admira que a campa de Florbela, uma das colipolenses mais ilustres (outro é o matemático e divulgador de ciência Bento de Jesus Caraça), no cemitério de Vila Viçosa, esteja coberta por mármore local, continuamente adornado de flores (Fig. 3). Várias obras literárias, bem assim como uma cinematográfica (Florbela, do realizador Vicente Alves do Ó, de 2012), têm celebrado a espantosa obra poética de Florbela. Tanto quanto se sabe, ela e Pessoa nunca se cruzaram, apesar de ambos terem frequentado os mesmos sítios da Baixa lisboeta na mesma época [7] e de um soneto de Florbela aparecer na Antologia de Poemas Portugueses Modernos [8] que Fernando Pessoa e António Botto publicaram em 1944 (uma obra póstuma dele como quase toda a dela).

Mas, voltando à Antiguidade Grega, encontra-se também mármore na Acrópole de Atenas, que coroa a capital grega, em particular no Partenon, o tempo dedicado a Atena, que data do século V a. C., o século de Péricles, portanto muito anterior ao tempo das estátuas acima referidas. Não falta quem aí também encontre a razão de ouro, desde logo no rectângulo da fachada do Partenon, que seria um «retângulo dourado», isto é, um rectângulo com os dois lados na proporção dourada entre si (Fig. 4). De facto: essa visão é um pouco forçada, nesta como noutras obras, dado que não existe uma regra matemática para definir beleza. Um conjunto de mármores do Partenon encontra-se hoje no Museu Britânico em Londres (Fig. 5). Têm o nome de «mármores de Elgin» porque foram levados da Grécia para Inglaterra por Thomas Bruce (1776–1841), 7.º conde de Elgin, em 1806, quando era embaixador do seu país na corte do império Otomano. Muitos gregos têm vindo a reclamar desde há décadas a devolução das obras ao país de origem. De facto, perto do Partenon foi inaugurado em 2009 o novo edifício do Museu da Acrópole, onde há várias peças em mármore da Acrópole e onde os mármores de Elgin poderiam, para contentamento dos locais, ser vistos nas proximidades do seu contexto natural. Existem hoje nesse museu algumas réplicas de obras que se encontram no estrangeiro. 

O arquitecto dos mármores de Elgin, que constituíam o friso do Pártenon, foi Fídias (c. 480 a.C.– c. 430 a.C.), que surge, num quadro de 1868 do pintor neoclássico nascido nos Países Baixos, mas que trabalhou em Inglaterra, Sir Lawrence Alma-Tadema (1836 – 1912), patente no Museu e Galeria de Arte de Birmingham, a mostrar o friso, pintado tal como no original, a um grupo de amigos seus (Fig. 6). A letra grega ϕ que  costuma representar a razão dourada provém precisamente do nome de Fídias no grego original. Os mármores do Partenon não vieram da ilha de Paros, mas sim do muito mais próximo Monte Pentélico, na Ática, a nordeste e perto de Atenas e a sudoeste de Maratona. Em contraste com os mármores de Paros, os do Monte Pentélico são brancos com um tom levemente amarelado que o fazem parecer brilhante quando vistos à luz solar. A antiga pedreira é hoje exclusivamente usada para extrair pedra para o projecto de reconstrução da Acrópole.

Dando um salto no tempo até ao Renascimento, um outro grande mestre do mármore foi o italiano Michelangelo Buonarroti (1475–1564), mais conhecido entre nós apenas por Miguel Ângelo [9]. Ele é o autor, entre várias obras-primas talhadas em mármore, da «Pietà», esculpida entre 1498 e 1500, que se encontra na Basílica de São Pedro, no Vaticano,. Uma outra extraordinária obra de Miguel Ângelo é o «David» (criado um pouco depois, em 1501-1504), que pode ser visto na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença (Fig. 7). Existe uma réplica dessa enorme escultura: a altura é de 5,17 m) numa praça de Florença próxima da Galeria. Recentemente, usando moderna tecnologia, foi efectuada uma cópia para exibição no Pavilhão de Itália da Exposição mundial no Dubai (Expo 2020) [10]. A estátua era tão grande que ocupava três andares, tendo havido o cuidado, já que se tratava de um país árabe, de esconder o órgão sexual na passagem entre dois andares.

Escreveu Miguel Ângelo, com quem o português Francisco de Holanda terá contactado na sua estada em Roma, a propósito das suas esculturas [11]:

«Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a veem».

Ele haveria de repetir esta sua pretensão da pré-existência obra de arte escondida dentro do mármore: «Como faço uma escultura? Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário.» E, num outro seu escrito: «Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei.»

Vários outros autores haveriam de repetir, por vezes sem referir a fonte original, esta mesma ideia: o trabalho do artista consiste em revelar aos nossos olhos a obra antes oculta. Um deles foi o francês Auguste Rodin (1840 –1917), o autor de estátuas famosas como «O Beijo» e «O Pensador» [12], que disse: «Eu escolho um bloco de mármore e retiro dele tudo o que não preciso».

A Sacristia Nova, uma das Capelas dos Medici, na Basílica de São Lourenço em Florença, contém também obras de mármore da autoria de Miguel Ângelo. São as esculturas nos mausoléus de dois membros pouco conhecidos da família Medici: Giuliano di Lorenzo de’ Medici, duque de Nemours, e Lorenzo di Piero de’ Medici, duque de Urbino: no túmulo do primeiro as figuras são chamadas «Dia» e «Noite» (1520-1534) ao passo que no do segundo são chamadas «Aurora» e «Crepúsculo» (Fig. 8). Apesar de semelhantes, há evidentes contrastes entre as duas. O conjunto impressiona pela sua harmonia e sobriedade.

O Prémio Nobel da Física de 1983 Subramanyan Chandrasekhar (1910–1995), professor na Universidade de Chicago de origem indiana mas naturalizado norte-americano, que desvendou alguns dos segredos da estrutura e da evolução estelar, indicou, no seu livro Truth and Beauty. Aestethics and Motivations in Science [13],  estes belos túmulos em mármore como exemplos da relação profunda entre arte e ciência. Ele não devia conhecer os versos de Álvaro de Campos, mas cita o matemático inglês George Neville Watson (1886-1965), que passou muitos anos a provar algumas das famosas identidades de Srinivasa Ramanujan (1887–1920), um extraordinário génio matemático indiano cuja intuição o levou a escrever um conjunto de fórmulas num caderno sem a devida demonstração. Escreveu Watson:

«O estudo do trabalho de Ramanujan e o problema que origina inevitavelmente me lembram a observação de Lamé que, quando lia os artigos de Hermite sobre funções modulares, ficava com pele de galinha [no original, ‘on a la chair de poule’, manifestação epidérmica de uma emoção forte). Eu expressaria a minha própria atitude com maior prolixidade dizendo que uma fórmula como (equação) me transmite uma sensação que é indistinguível da sensação que tenho quando entro na Sacristia Nova da Capela dos Medici e vejo diante de mim a beleza austera do ‘Dia’, da ‘Noite’, do ‘Crepúsculo’ e da ‘Aurora’ que Miguel Ângelo colocou sobre os túmulos de Giuliano de’ Medici e de Lorenzo de’ Medici.»

Tal como as estátuas de mármore, também as identidades de Ramanujan são belas e emocionantes apesar de frias e austeras. Tal como as esculturas, elas permanecem incólumes para a eternidade. E, tal como Miguel Ângelo as descobriu na pedra informe, também Ramanujan extraiu as suas fórmulas matemáticas do «bloco bruto» das ideias. De certo modelo, as verdades matemáticas também são «esculpidas» pelos matemáticos, só faltando, como disse Álvaro de Campos, suficiente gente para as admirar. Um filme, do realizador britânico Matt Brown, sobre Ramanujan, conta a história da sua curta vida, contribuindo para a sua popularidade: O Homem que Viu o Infinito (2015).

A matemática tem de ser escrita num suporte que dure e, de facto, as relações matemáticas mais antigas de que dispomos foram escritas não em mármore, mas em tabuletas de argila da Babilónia (numa data entre 1900 e 1600 a C) [14]. Numa delas aparece representado um conjunto de triângulo e rectângulos que prefigura o famoso teorema do filósofo, matemático e músico Pitágoras de Samos (c. 570–c. 495 a.C.),  muito antes de este ter nascido (Fig. 9).

A tradição de gravar teoremas matemáticos ou leis da física, sempre com expressão matemática, prolongou-se no tempo. Veja-se o caso das famosas equações de Maxwell, que sumariam todo o electromagnetismo, incluindo as ondas luminosas, e que se encontram gravadas numa placa metálica na casa que foi habitada pelo físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), em Edimburgo, a sua cidade natal. Ou veja-se, nos nossos dias, a fórmula, bem mais extensa, subjacente ao modelo-padrão da física de partículas, que foi gravada numa pedra à entrada do edifício de controlo do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear - CERN, em Genebra, na Suíça (Fig. 10). Foi talhada numa rocha in situ. É pena não ser em mármore, mas não o havia nesse local como há em Paros, C0arrara ou Vila Viçosa. A pedra e o metal, sendo a primeira de uso mais antigo, sempre foram os suportes onde o homem deixou inscrições que queria duradouros. A pedra, em particular, que já existe na Terra há milhares de milhões de anos, é uma garantia de eternidade ou, pelo menos, a melhor aproximação a ela.

O mármore usado por Miguel Ângelo era de Carrara, no Norte da Toscânia, um mármore branco ou azul acinzentado de grande qualidade. O próprio artista ia lá escolher a melhor pedra, falando com os canteiros. Ainda se encontra em Carrara uma placa (colocada apenas em 1862), naturalmente em mármore, que documenta a estada do artista numa casa dessa localidade a cerca de 100 km de Florença (Fig. 11).

Um outro grande artista italiano que, na escultura, não fica atrás de Miguel Ângelo é Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), que viveu no tempo barroco [15]. Ele é o autor entre outras obras de «O Rapto de Proserpina» (de 1621-1622) e de «Apolo e Dafne» (de 1622-1625) (Fig. 12), que se encontram na belíssima Galeria Borghese em Roma. A primeira retrata o rapto violento de Proserpina, filha de Júpiter e Ceres, por Plutão, o deus dos mortos. A segunda representa o momento culminante da história mitológica de Apolo, o mais belo Deus do Olimpo, e da ninfa Dafne. Cupido lança uma seta de ouro a Apolo, instilando nele o amor, e uma seta de chumbo a Dafne, que afasta o amor. O pai de Dafne, perante o desespero da filha, transforma-a num loureiro quando Apolo a alcança. Dificilmente se poderia conjugar a força com a leveza como nestas duas esculturas em mármore, que é de Carrara como nas obras de Miguel Ângelo. Bernini se gabava de conseguir dar ao mármore a aparência de carne humana.

2.   O mármore em Portugal

Portugal também tem mármore, muito e bom mármore. Trata-se aliás de um dos melhores mármore do mundo, pois, sendo diferente, não fica a dever ao de Paros, ao do Monte Pentélico ou ao de Carrara. Só não houve aqui artistas como Alexandre de Antioquia, Fídias, Miguel Ângelo ou Bernini, que o tivessem metamorfosearam em beleza eterna. O centro nacional do mármore, que como é sabido é uma rocha metamórfica (calcite ou dolomite recristalizado devido a uma acção ígnea sob grandes pressões) é o «anticlinal de Estremoz», uma dobra geológica convexa, com os estratos mais recentes por cima. Mas há também mármore em menor quantidade noutros locais do Alentejo, como Viana do Alentejo e Trigaches, diferindo ele de sítio para sítio.

O anticlinal de Estremoz estende-se entre Sousel, a Oeste, e Alandroal, a Leste, não longe de Vila Viçosa (Fig. 12), sendo delimitada a norte por Borba e a sul por Estremoz. É uma estrutura elíptica, orientada de NW-SE e que mede 42 km x 8 km. A sua época geológica é provavelmente o Câmbrico (há 510 milhões de anos), o período mais antigo do Paleozoico [16]. Só uma parte pequena da formação (27 km2) é explorada para extracção de mármore.

Encontra-se aí um enorme volume de mármore, conhecido desde tempos remotos (Fig. 13) e usado deste há muito para fins artísticos [17-18]. As pedreiras a céu aberto marcam a paisagem. O mármore de Estremoz é branco, sendo caracterizado por um padrão chamado «raiada» que pode variar muito em cor e forma. A primeira obra de arte conhecida feita com esse mármore é um túmulo, descoberto no Alandroal, encomendado por um capitão cartaginês, por volta de 370 a.C. As referidas pedreiras foram exploradas pelos romanos. O seu mármore foi usado, por exemplo, nos capiteis das colunas (que são graníticas) do templo romano de Évora, dito de Diana (Fig. 14). Os romanos dispunham da tecnologia para levarem mármore de Estremoz para a distante cidade de Conímbriga, em Condeixa-a-Velha, perto de Coimbra, e para a mais próxima cidade de Mérida (foram aí usados no Teatro Romano).

O mármore alentejano foi usado na Idade Média, como testemunham vários castelos, palácios e casas dessa época (por exemplo, o castelo de Estremoz). Foi levado pelos navegadores portugueses para África, Brasil e Índia. Foi usado mármore na fachada e noutros locais do majestoso Paço Ducal de Vila Viçosa (Fig. 15), que foi sede da Casa de Bragança, cuja construção remonta ao século XVI e que foi restaurado em 1940, quando se comemorava o centenário da Restauração da nacionalidade. Cinco anos depois foi erigida na praça em frente uma estátua equestre de D. João IV, da autoria de Francisco Franco, não em mármore, mas em bronze (sendo a base de granito). Outros monumentos nacionais, como o Mosteiro dos Jerónimos e o Convento de Mafra, também usaram algum mármore alentejano.

As notícias sobre a existência de mármore em Estremoz espalharam-se no século XVIII através de monografias corográficas, memórias paroquiais e diários de viagens de estrangeiros. Com a Revolução Liberal, de 1820, o aproveitamento do mármore, até então ocasional, ganhou um impulso no sentido da progressiva industrialização, com a ajuda das então muito recentes ciências geológicas. Nesse tempo crescia o interesse não só pela história da Terra, mas também pela exploração de pedreiras e minas, começando esta actividade a ser regulada. O engenheiro e geólogo francês Charles Baptiste Bonnet (1816-1867), que liderou a partir de 1848 a primeira Comissão Geológica de Portugal [19], andou pela região, tendo recolhido várias amostras de mármore, que apresentou em exposições internacionais. Em 1852, no quadro da Regeneração, saiu uma Lei de Minas. A referida Comissão deveria ter produzido um levantamento geológico para um mapa geológico de Portugal, mas dificuldades de vária índole impediram a concretização desse desiderato: Bonnet só produziu um mapa geográfico do Alentejo e Algarve, tendo a Comissão sido extinta em 1857, dando lugar a uma segunda Comissão Geológica liderada pelo militar e geólogo Carlos Ribeiro, que foi coadjuvado pelo médico e lente de Mineralogia e Geologia da Escola Politécnica de Lisboa Francisco Pereira da Costa e que haveria de durar até 1868. Carlos Ribeiro e Joaquim Nery Delgado, um seu discípulo nascido em Elvas, também militar e geólogo, apresentaram o primeiro mapa geológico de Portugal na escala 1: 500 000, apresentado na Exposição Universal de Paris de 1867, e publicado em 1876.

As pedreiras de Estremoz já eram licenciadas e inventariadas em meados do século XIX [20]. O maior impulsionador da extracção de mármores na região do Alto Alentejo foi um outro francês, Pedro Bartolomeu Déjante (?-1859), um partidário de Napoleão que, com a queda deste, fixou residência em lisboa, tendo estabelecido em 1821 uma marcenaria que prosperou [18]. Alguns dos seus móveis exigiam pedras de mármore, que existiam em quantidade na região de Estremoz. Apresentou pedras e móveis na Exposição de Produtos da Indústria de Lisboa de 1849 e na Grande Exposição de Trabalhos da Indústria de todas as Nações, realizada em Londres em 1851, onde também Bonnet apresentou amostras de mármore, trabalhados na oficina de Déjante. Este último ganhou uma medalha de ouro. Voltaria a ser premiado com duas medalhas de prata na Exposição Universal de Paris da Indústria e das Belas Artes de 1855, para onde tinha enviado amostras, em colaboração com Bonnet. Essas exposições internacionais tornaram-se grandes atracções do público na segunda metade do século XIX por serem exibições dos progressos da Indústria. A obra pioneira de Déjante na exploração e aplicação dos mármores haveria de ser continuada pelo seu filho Júlio.

A chegada do caminho de ferro (linha do Sul e Sudeste) a Évora, em 1863,  a Estremoz, em 1873 e a Vila Viçosa em 1905 facilitou enormemente o transporte da pedra para Lisboa, de onde podia seguir, em geral transformada, por via marítima, para outros destinos, como o Brasil [21].

De início a exploração de mármore na região era feita recorrendo a processos artesanais por empresas de pequena dimensão caracterizadas pelas propriedade e administração familiares. Mas, entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda, ocorreu um ressurgimento da indústria de extracção dos mármores, tendo-se constituído empresas mais profissionais dirigidas por engenheiros, que investiram na formação de pessoas e na modernização de procedimentos. Uma dessas sociedades tinha capital internacional: a Sociedade Luso-Belga de Mármores SA (Solubema). O trabalho essencialmente manual foi sendo progressivamente substituído pelo  mecânico. Foram surgindo oficinas perto das pedreiras. O apogeu da exploração dos mármores foi atingido entre os anos 1960, década em que a electrificação foi reforçada, e 1980, quando adveio a crise. Com o decorrer do tempo, as máquinas-ferramentas passaram a ter maior eficácia enquanto as questões da segurança e saúde ganhavam relevância.

Vários artistas portugueses modernos e contemporâneos têm trabalhado o mármore de Estremoz. Destaco dois: o primeiro é alentejano, natural de Alcácer do Sal, António Branco de Paiva (1926-1987), que esculpiu a estátua da Rainha Santa (Fig. 16) em frente ao castelo de Estremoz (foi nessa localidade, em 1336, que Isabel de Aragão, esposa de D. Dinis, faleceu); o segundo, bem mais conhecido, é o lisboeta de pai eborense João Cutileiro (1937-2021), que esculpiu uma figura feminina exposta na praça do Giraldo (Fig. 17), para além de ter criado uma estátua de el-rei Dom Sebastião para a praça central de Lagos e uma estátua feminina num lago fronteiro ao Palácio de Mateus, próximo de Vila Real.

A entrada da Wikipédia para «Mármore» em português [22], na data em que a consultei (25 de Maio de 2022) é muito parca sobre o mármore português: apenas diz que «em Portugal, as maiores explorações de mármore localizam-se em torno da zona de Estremoz, Borba e Vila Viçosa, de onde é extraído o chamado Mármore de Estremoz». Na iconografia mostra-se a Vénus de Milo, mas o monumento exibido é o Taj Mahal, na Índia, e a pedreira exibida é indiana. A página em inglês não fala sequer do mármore português, apesar de indicar uma extensa lista de sítios onde há mármore no mundo. Em contraste, a sua correspondente em alemão [23], muito mais desenvolvida do que as outras, fala do mármore de Estremoz, apresentando amostras dos mármores de Estremoz e de Trigaches, comparando-o com o de outras regiões do mundo, incluindo Carrara. Apresenta uma lista seleccionada das regiões do mundo com maior produção de mármore, que vale a pena reproduzir:

«Europa

• França: Região do Pas de Calais

• Grécia: Drama, Thasos, Penteli

• Itália: Massa-Carrara, Laas, Südtirol

• Portugal: Estremoz-Borba-Vila Viçosa

Ásia

• Turquia: Regiões de Izmir, Muğla, Afyon, Sivas, Akhisar, Antalya, Alanya, Sakarya e Amasya

América do Norte

• Estados Unidos: Estados federais da Geórgia e Vermont

• Canadá: Província do Quebec.»

A entrada apresenta uma imagem do Ehecarrussel («Carrocel do Casamento») (Fig. 18), também chamada Fonte de Hans Sachs, do escultor alemão da escola realista Jürgen Weber (1928–2007), situada no centro de Nuremberga, no norte do estado da Baviera, na Alemanha, que tem partes feitas de mármore de Estremoz, tal como lá vem indicado. A fonte foi construída entre 1977 e 1981, com o propósito prosaico de cobrir um respiradouro de metro. As figuras grotescas em bronze representam as várias fases do casamento, segundo um poema do poeta nascido na cidade no século XV Hans Sachs [24]. Tendo sido uma obra muito criticada no tempo da sua inauguração, tornou-se entretanto uma dos locais simbólicos da cidade. A arte tem a capacidade de regenerar os sítios urbanos.

O nosso país tem sido desde o século XIX um exportador de mármore, dada a sua elevada produção e a boa qualidade do produto. O maior produtor mundial de pedra natural, blocos que servem para construção civil e ornamentação e que incluem para além do mármore o granito, o calcário e o xisto (só para referir ao materiais mais abundantes), eram, em 2014, a China, com 42,5 megatoneladas [24]. Seguiam-se a Índia, com 22,  a Turquia, com 11,5, o Irão, com 7, e a Itália, com 6,8. Em 9.º lugar aparece Portugal, com 2,8 megatoneladas, respectivamente. Não é uma posição modesta, pois em poucas matérias-primas Portugal está no top ten mundial: Portugal, apesar de ser um país muito mais pequeno, aparece à frente dos Estados Unidos.  Na listagem de países exportadores, no mesmo ano, Portugal ocupa o 7.º lugar mundial, com 1,7 megatoneladas, só sendo batido pela China, Índia, Turquia, Itália e Espanha. Isto significa que a maior parte da nossa produção é para exportação.

3.  O futuro do mármore

O mármore tem uma grande história no mundo, pontuada por obras de arte extraordinárias, e tem também um grande futuro, por ser um material inigualável. As projecções indicam que as necessidades de mármore vão continuar a crescer à escala global dado o aumento da população mundial e o concomitante aumento da construção civil.

A produção de mármore no Alentejo tem sido mais ou menos estável nos últimos tempos, dado não ter havido crescimento da procura e de haver forte concorrência de outras regiões, designadamente a China e a Índia (razão por que se fala de «crise» do sector»), mas existem condições para responder a uma eventual maior procura. No anticlinal de Estremoz as reservas são imensas; apesar da grande exploração realizada até agora, há uma enorme riqueza ainda por extrair. Só cerca de um terço dos 27 km2 de mármore foram explorados até hoje. A exploração de mais um décimo, com pedreiras de uma altura de 100 m, dará um total de 220 milhões de toneladas e, considerando os valores correntes da extracção anual, seria um trabalho que levaria mais de 500 anos! Esta estimativa peca decerto por defeito porque a altura conhecida de mármore é bastante maior, podendo nalguns sítios ultrapassar os 400 m. Portanto, não falta mármore para uso interno e, principalmente, extremo.

O património do mármore tem sido estudado e valorizado nos últimos anos. As pedreiras de mármore de Estremoz ganharam má fama com a derrocada em 2018 de um troço da estrada municipal 255 numa zona de pedreiras entre Vila Viçosa e Borba, causando cinco mortos, mas essa funesta circunstância não deve impedir nem a continuação da exploração sustentável, usando as melhores tecnologias e assegurando os melhores cuidados para os trabalhadores e para as populações, como a continuada promoção turístico-cultural da região. Como a maior parte do mármore de Estremoz se destina a exportação, trata-se de uma riqueza económica nacional que urge valorizar: há quem fale em «ouro branco». Mas há também uma inegável riqueza turística, que não deixando ter um lado económico tem sobretudo uma componente cultural. As duas componentes têm de ser harmonizadas da melhor maneira.

As maiores povoações da formação geológica onde se encontra o mármore – por ordem alfabética, Alandroal, Borba, Estremoz, Sousel, Vila Viçosa Alandroal e Borba – bem fariam, em oferecer-se como um pólo de atracção turística, juntando a história, a arte, a ciência e a tecnologia (Carrara pode ser um exemplo inspirador). Todas elas são manifestações da vasta cultura humana. Nesta perspectiva, cumpre, por exemplo, modernizar o interessante Museu do Mármore de Vila Viçosa, reforçar o Centro Ciência Viva de Estremoz, que justamente se especializou nas Ciências da Terra, e dar a conhecer, em visitas guiadas às pedreiras, as profundezas da Terra que o engenho do homem revelou para seu benefício. Seria também conveniente convidar para a região artistas da pedra, que pudessem mostrar como uma obra de arte que começa por existir só na imaginação do artista emerge da pedra a golpes de cinzel, para além evidentemente de organizar exposições das obras de mármore e congéneres. A junção da arte com a ciência só pode reforçar a cultura, sendo algumas das tentativas que têm sido feitas nesse sentido um dos traços maiores da cultura científica contemporânea.

O mármore vem da Terra e começa por ser um assunto das ciências geológicas. Mas é também matéria-prima das artes, incluindo até a literatura. O Padre António Vieira (1608–1697), que foi segundo Fernando Pessoa o «imperador da língua portuguesa», usou no «Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma» (1644), o mármore numa das sujas poderosas metáforas morais [25]:

«E assim como não há mármore nem bronze tão duro que, ferido do raio do sol, não responda ao mesmo sol com a reflexão do seu raio, assim não há coração tão de mármore na dureza, e tão de bronze na resistência, que, prevenido no amor, o não redobre e corresponda com outro.»

BIBLIOGRAFIA

[1] CAMPOS, Álvaro de. Obra Completa, ed. Jerónimo Pizarro e António Cardiello, Lisboa, Tinta da China, 2024.
[2] PASQUIER, Alain, La Vénus de Milo. Les Aphrodites du Louvre: Paris: Ed. Reúnion des Musées Nationales, 1985.
[3] LIVIO, Mario, O Número de Ouro, Lisboa: Gradiva, 2012
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Futurista (consultado em 25 de Maio de 2022)
[5] «ORPHEU» Revista Trimestral de Literatura, Ano I – 1915, n.º 1 Jan.-Fev.-Mar. Lisboa: Oficinas da Tipografia do Comércio. Edição fac-similada, Lisboa: A Bela e o Monstro, 2015.
[6] FARRA, Maria Lúcia del Farra, «De Florbela para Pessoa com amor», Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015), 116-131.
[7] ESPANCA, Florbela, Poesia Completa, Lisboa: Bertrand, 9.ª ed., 2009.
[8] PESSOA, Fernando e BOTTO, António (coords.) Antologia de Poemas Portugueses Modernos, Coimbra: Editorial Nobel, 1944.
[9]  NÉRET, Gilles, Miguel Ângelo, Colónia: Taschen, 2010.
[10]  https://www.reuters.com/world/middle-east/dubai-expo-offers-close-up-michelangelos-david-only-neck-up-2021-10-06/ (consultado em 25 de Maio de 2022)
[11] In International journal of religious education: Vol. 23 – p. 23, National Council of the Churches of Christ in the United States of America. Division of Christian Education, International Council of Religious Education – 1946.
[12] NÉRET, Gilles, Rodin. Esculturas e Desenhos, Colónia: Taschen / Público, 2004.
[13] CHANDRASEKHAR, S., Truth and Beauty. Aestethics and Motivations in Science. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
[14]  https://mymodernmet.com/ancient-babylonian-geometry-tablet/ (consultado em 25 de Maio de 2022).
[15] Mormando, Franco, Bernini: His Life and his Rome, Chicago: University of Chicago Press, 2013.
[16] CARVALHO, A. Galopim de, As Pedras na Ciência e na Cultura, Lisboa: Âncora, 2021.
[17] SERRÃO, Vítor, SOARES, Clara Moura e CARNEIRO; André, (coords.), Mármore 2000 anos de história. Vol. I. Da Antiguidade à Idade Moderna. Lisboa, Theya Editores, 2019.
[18] MATOS, Ana Cardoso de e ALVES, Daniel (coord.), Mármore: 2000 anos de história. Vol. II. A evolução industrial, os seus agentes económicos e a aplicação na época contemporânea, Lisboa, Theya Editores, 2019.
[19] CARNEIRO, Ana, MOTA, Teresa Salomé e LEITÃO, Vanda, O Chão que Pisamos. A Geologia ao serviço do estado (1848-1974), Lisboa: Edições Colibri, 2013.
[20] ALVES, Daniel (coord.), Mármore, Património para o Alentejo: Contributos para a sua história (1850-1986), Vila Viçosa: CECHAP, 2015.
[21] QUINTAS, Armando, «Técnicas e tecnologias ligadas ao mármore: uma viagem pela história, in [20], pp. 129-160.
[21] https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rmore (consultado em 25 de Maio de 2022)
[22] https://de.wikipedia.org/wiki/Marmor (consultado em 25 de Maio de 2022)
[23] https://de.wikipedia.org/wiki/Ehekarussell (consultado em 25 de Maio de 2022)
[24] ANIET, Diagnóstico competitivo sobre o setor da extração e transformação da pedra natural, Porto, s.d. http://www.aniet.pt/fotos/editor2/internacionalizacao/diagnostico_competitivo_sector.pdf (consultado em 25 de Maio de 2022)
[25] https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=134889 (consultado em 25 de Maio de 2022)

LEGENDAS

Fig. 1 Vénus de Milo, séc. II a.C., atribuída a Alexandre de Antioquia, Museu do Louvre em Paris.
Fig. 2 Vitória de Samotrácia, sécs .III- II a. C., de autor desconhecido, Museu do Louvre em Paris.
Fig. 3 Campa da poeta Florbela Espanca, no cemitério de Vila Viçosa.
Fig. 4 Fachada do Partenon, em Atenas, Grécia, com um rectângulo dourado sobreposto.
Fig. 5 Frisos do Partenon, mais conhecidos por «mármores de Elgin», no Museu Britânico, em Londres, Reino Unido.
Fig. 6 «Fídias mostrando o friso do Partenon aos seus amigos», de Sir Lawrence Alma-Tadem, no Museu de Birmingham e Galeria de Arte, no Reino Unido.
Fig. 7 «David», de Miguel Ângelo, na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença.
Fig. 8 Esculturas tumulares de Miguel Ângelo feitas para dois membros da família Medici na Sacristia Nova da Basílica de São Lourenço em Florença. A primeira, no túmulo de Giuliano de’ Medici representa o «Dia» e a «Noite», e a segunda, no túmulo de Lorenzo de’ Medici, representa a «Aurora e o Crepúsculo».
Fig. 9 Tabuleta de argila da Antiga Babilónia com uma inscrição matemática sobre a área de triângulos, que para alguns autores antecipa o teorema de Pitágoras.
Fig. 10 Pedra com a inscrição da fórmula que sumaria o modelo padrão da física de partículas, à entrada do Centro de Controlo do CERN, em Genebra, na Suíça.
Fig. 11 Placa que documenta a presença de Miguel Ângelo numa casa de Carrara, em Itália.
Fig. 12 «Apolo e Dafne» de Bernini, na Galeria Borghese, em Roma.
Fig. 13 Localização do anticlinal de Estremoz.
Fig. 14 Pedreira de mármore no anticlinal de Estremoz.
Fig. 15 Templo Romano, dito de Diana, em Évora.
Fig. 16 Palácio Ducal de Vila Viçosa.
Fig. 17 Escultura da Rainha Santa de António Branco de Paiva, junto ao castelo de Estremoz.
Fig. 18 Escultura de João Cutileiro, na Praça do Giraldo, em Évora.
Fig. 19 Ehecarrussel («O Carrocel do Casamento»), escultura de Jürgen Weber numa praça de Nuremberga, na Alemanha.

O Futuro da Europa


Meu artigo  in Michela Graziani, Annabela Rita (edited by), Europa: um projecto em construção. Homenagem a David Sassoli, pp. 185-189, 2023, published by Firenze University Press, ISBN 979-12-215-0010-3, DOI 10.36253/979-12-215-0010-3

Em Maio de 2022 foi divulgado pela União Europeia o Relatório Final da Conferência sobre o Futuro da Europa. O italiano David Sassoli, Presidente do Parlamento Europeu que tinha lançado a iniciativa, falecera em 11 de Janeiro desse ano, com apenas 65 anos, pelo que já não pôde ver esse relatório. Um florentino que estudou Ciências Políticas na Universidade La Sapienza em Roma, tornou-se um dos mais conhecidos jornalistas italianos, designadamente na televisão, tendo abandonado essa actividade em 2009 em favor de uma carreia política, que iniciou com a entrada para o Partido Democrático italiano e com a sua eleição, por uma votação muito expressiva, nas listas desse partido para o Parlamento Europeu. Reeleito para o mesmo Parlamento sucessivamente em 2014 e 2019, foi eleito pelos seus pares dessa instituição, nesse último ano, Presidente da instituição (já era Vice-presidente). Morreu em funções de uma doença fulminante. Os seus ideais sempre foram a Europa, a democracia, a liberdade, os direitos humanos, a solidariedade e o desenvolvimento.

 A Conferência sobre o Futuro da Europa, que decorreu entre Abril de 2021 e Maio de 2022, foi uma das iniciativas europeias que mais mereceu o seu empenho nos seus últimos tempos de vida. Não se tratou de uma cimeira de líderes, mas sim de um conjunto alargado de debates que envolveram os cidadãos de todos os países (27, desde a saída do Reino Unido em 2020) que constituem a União, ultrapassando a barreira da diversidade linguística (existem 24 línguas) graças a meios tecnológicos inovadores (foi desenvolvida uma Multilingual Digital Platform). Mais de cinco milhões de cidadãos acederam à referida plataforma e mais de 700 000 cidades participaram nos numerosos eventos realizados em vários países, apesar da pandemia Covid-19 que então grassava. Foi a 24 de Março de 2021 que se iniciou formalmente a Conferência sobre o Futuro da Europa na sede da União Europeia em Bruxelas, duas semanas após a Declaração Conjunta sobre a Conferência, que foi assinada por David Sassoli, como Presidente do Parlamento Europeu, António Costa, o primeiro-ministro português então à frente do Conselho Europeu, e Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia. Disse David Sassoli nessa ocasião:

«O dia de hoje assinala um novo início para a União Europeia e para todos os seus cidadãos. Com a Conferência sobre o Futuro da Europa, todos os cidadãos europeus e a nossa sociedade civil terão uma ocasião única para construir o futuro da Europa, um projeto comum que permite o bom funcionamento da democracia europeia. Convidamos todos a participarem e a fazerem ouvir a vossa voz, a fim de construir o que será a Europa de amanhã, o que será a VOSSA Europa» (Sassoli 2021).

 A 9 de Maio de 2022, o Dia da Europa (por ser o aniversário da “Declaração Schuman”, de 1950), os corpos directivos da Conferência, reunidos em Estrasburgo, anunciaram os resultados das suas discussões, no Relatório no qual foram elencadas 49 propostas aos Presidentes da Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Os temas eram nove: alterações climáticas e ambiente; saúde; economia mais forte, justiça social e emprego; a União Europeia no mundo; valores e direitos, leis e segurança; mudança digital; democracia europeia; migrações; e, finalmente, educação, cultura, juventude e desporto. As centenas de medidas concretas que foram apontadas constam do referido relatório. 

Os resultados dessa Conferência ficaram como pujante testamento político de David Sassoli, que acreditava firmemente no futuro da Europa. Tal como ele (acontece sermos da mesma idade), acredito que a Europa tem futuro, embora tenha de o construir colectivamente ultrapassando mil e uma dificuldades (Sassoli assistiu ao alastramento da pandemia de Covid-19; mas já não assistiu à invasão da Ucrânia pela Rússia, duas adversidades que vieram reforçar a debilitada coesão europeia). Tal como ele, estou convencido de que a Europa não tem outro futuro a não ser aquele que conseguir pelas suas próprias mãos, dadas em conjunto. A Europa é o Velho Continente, cujas origens remontam à pré-história (estão documentadas pela arte rupestre e por primitivos artefactos líticos), mas cujos alicerces estão na herança deixada pelas Antiguidades Grega e Romana (que nos legaram, para além da arte, a ciência e o direito), e na herança cristã (que impregnou a comunidade de valores que ainda hoje prevalecem). A história da Europa foi marcada pela Revolução Científica e pela Revolução Industrial, a primeira ocorrida nos séculos XVI e XVII e a segunda nos séculos XVIII e XIX, que foram semente do conhecimento e do desenvolvimento mundiais. A Europa foi o sítio da Magna Carta e da Revolução Francesa, que serviram para afirmar, não obstante todas as contradições, os valores da justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Apesar de ter sido palco de duas guerras mundiais, que originaram devastações terríveis, foi também o palco de afirmação de um grande alargamento da União Europeia. 

A minha vida, tal como a de Sassoli e todas os outros europeus da nossa geração, teria sido outra sem o nascimento e desenvolvimento do projecto da União Europeia. Portugal entrou um pouco tardiamente, com a cerimónia protagonizada do lado português pelo primeiro-ministro Mário Soares realizada no Mosteiro dos Jerónimos a 12 de Junho de 1985, na qual ficou prevista a entrada de Portugal a 1 de Janeiro do ano seguinte na então chamada Comunidade Economia Europeia – CEE.

 Nessa data eu já tinha calcorreado uma boa parte da Europa, durante e após uma estada de três anos e meio, entre Agosto de 1979 e Dezembro de 1982, para realizar o doutoramento em Física Teórica na Universidade Johann Wolfgang von Goethe em Frankfurt/Main, a cidade onde hoje é a sede do Banco Central Europeu. Foi, para mim, uma oportunidade magnífica para conhecer um país muito mais desenvolvido, em múltiplos aspectos, que o Portugal da época. Do coração da Europa, e usando as boas vias ferroviárias europeias, pude viajar a vários países europeus, a começar pela própria Alemanha (conheci a Alemanha de Leste antes e depois da queda do muro, tendo notado a diferença), a Áustria, a Suíça (que, não pertencendo à União Europeia, não deixa por isso de ser europeia), a França a Espanha, a Itália, a Jugoslávia (que já não existe hoje, mas sim as partes em que se decompôs), a Bélgica, a Holanda, o Reino Unido, a Dinamarca, e a Suécia. Uma das experiências que mais me marcou foi o facto de poder viajar pela Europa da CEE com inteira liberdade. Antes de 1986, havia caricatas limitações à entrada e saída de pessoas em Portugal (as barreiras impediam em Vilar Formoso que se circulasse de noite: era como o país estivesse fechado para sono). Pude nessas viagens reparar que a liberdade era condição de desenvolvimento. Um dos meus primeiros vislumbres da liberdade de costumes que se vivia fora das portas portuguesas tive-o quando no Verão de 1975 estive quase duas semanas em Londres. A liberdade tinha chegado a Portugal há pouco tempo, mas no Reino Unido já campeava há muito.

 A diferenciação de línguas e culturas nunca foi obstáculo ao trabalho conjunto: pude, por exemplo, testemunhar a boa integração de trabalhadores portugueses na Alemanha (ao contrário do que acontece hoje, os portugueses emigrados eram em geral pessoas de condição social humilde, que fugiam à pobreza na sua terra natal). Noutro enquadramento organizacional, os trabalhadores portugueses eram tão bons como os melhores. Faltava-nos em casa – e falta-nos ainda – uma organização que seja aceite e consciencializada. 

Em 1987 pude assistir como muitos estudantes portugueses, alguns deles meus alunos, beneficiaram de estadas em instituições de ensino e investigação espalhadas pela Europa ao abrigo do programa Erasmus, uma das instituições europeias mais bem conseguidas. Em 2002, muitos anos volvidos após o meu regresso em Portugal, pude assistir, com satisfação, à entrada em circulação do euro, feito em Portugal ao mesmo tempo que em vários outros países europeus. Pertenci ao grupo daqueles muitos europeus, que viram com mágoa a saída do Reino Unido da União Europeia, depois do referendo de 2016, pois aquele país, pese embora a ruptura com a união política a que pertencia desde 1973, não deixou e não deixará de ser parte da Europa. 

A relação entre a Europa e a ciência é íntima: se o conhecimento racional nasceu na Antiga Grécia, ele foi assaz revitalizado no Renascimento com o italiano Galileu Galilei, o ‘pai’ do método científico (que, tendo nascido em Pisa, viveu em Florença como Sassoli). A divisão religiosa que se deu na Europa no início do século XVI e que marcou a geografia cultural europeia não impediu que cientistas contemporâneos de Galileu, como o alemão Johannes Kepler, e sucessores, como o inglês Isaac Newton, fortalecessem em conjunto o poder da ciência. O trabalho da comunidade científica foi impulsionado por academias científicas como a Accademia dei Lincei e a Accademia del Cimento, respectivamente em Roma e Florença, em Itália, e a Royal Society de Londres, no Reino Unido, as duas primeiras ligadas a Galileu e aos seus discípulos, e a terceira a Newton. Portugal, que foi precursor da Revolução Científica com as viagens de Descobrimentos e que a transferiu para o Extremo Oriente, implantando-a nessas remotas terras, só no Iluminismo conseguiu, com a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra em 1772, institucionalizar o ensino assente no método científico, ainda assim com algumas limitações (por exemplo, os chamados «estrangeirados», como João Jacinto Magalhães em Londres ou Luís António Verney em Roma, experimentavam alguma dificuldade em exercer o seu magistério em Portugal). O ‘atraso português’ pode ser comprovado pelo facto de a Royal Society ter sido fundada em 1660 (o rei inglês Carlos II, que lhe deu carta, foi casado com a nossa Catarina de Bragança); a primeira academia portuguesa de ciências, a Real Academia das Ciências de Lisboa, só foi criada em 1789. Beneficiei, como muita gente em Portugal, dos investimentos que a Europa fez em Portugal, designadamente na formação superior (pré e pós-graduada) e no desenvolvimento da investigação científica, que foi extraordinariamente fomentada por José Mariano Gago, professor de Física e político com quem tive o prazer de privar (foi o primeiro titular da pasta da Ciência e Tecnologia em 1995, no primeiro governo de António Guterres). Sem o financiamento europeu, a ciência em Portugal, estando ainda abaixo da média europeia (1,6% do PIB de investimento em contraste com os 2,2% da média europeia, segundo as estatísticas de 2020), estaria certamente num nível ainda inferior. Como professor e investigador visitei vários centros universitários e de investigação da Europa (o maior dos quais é a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear - CERN, um bom símbolo da pujança científica europeia) e participei em vários programas europeus. 

Voltando à Conferência sobre o Futuro da Europa, a característica que mais salta à vista é o seu carácter democrático: Sassoli e outros dirigentes europeus queriam uma Europa construída de baixo para cima, preocupada acima de tudo com as necessidades dos cidadãos, e não de cima para baixo. A Conferência proporcionou uma pluralidade de eventos em vários países, incluindo o nosso (embora Portugal não tenha sido infelizmente dos mais dinâmicos). Participaram mais ou menos activamente todos aqueles que o quiseram fazer

Na sessão plenária de encerramento da Conferência, cerca de uma centena de cidadãos, que representavam os numerosos e diversos participantes, enfatizaram que a Europa estava baseada na solidariedade, na justiça social e na igualdade; que devia ser uma meta a liderança europeia das transições climática e energética (que estão, de resto, associadas de perto) e a criação de uma economia que é sustentável; que a Europa precisa de ser mais democrática e participativa; que era necessária maior harmonização de políticas nacionais em vários domínios; que a Europa tem de procurar no mundo global em que hoje vivemos ser mais autónoma e competitiva; que está e deve continuar a estar baseada em valores; que é preciso reforçar a consciência europeia; e, finalmente que são assaz relevantes a educação e a formação ao longo da vida, pois sem elas não há verdadeiro poder dos cidadãos. 

Actualmente a Europa e o mundo enfrentam desafios tremendos. Vale a pena distinguir três, que as conclusões da Conferência sobre o Futuro da Europa valorizam: as questões das alterações globais (Portugal é um dos países mais sujeitos às alterações climáticas, dada a sua maior susceptibilidade a secas, que têm implicações nos fogos florestais, subida das águas do mar); as questões da inteligência artificial (que no mundo em geral e em Portugal em particular estão a mudar as nossas vidas); e as questões da saúde, em particular as doenças ligadas ao envelhecimento (Portugal vai ser em 2050 um dos países mais envelhecidos do mundo, o que trará encargos ao seu sistema de saúde). Essas grandes questões terão de ser resolvidas com base não só na melhor informação científico-técnica, mas também em sólidas noções éticas e numa actuação política orientada para o bem comum.

  melhor homenagem que hoje podemos prestar a David Sassoli consiste na fidelidade aos valores europeus, que ele tão convictamente defendeu. A ciência e tecnologia vão ser decisivas na determinação do nosso futuro, mas sem valores europeus como os da liberdade, da igualdade e da solidariedade a ciência e a tecnologia pouco poderão fazer. 

Referências bibliográficas 

Sassoli, D. 2021. “Conferência sobre o Futuro da Europa: Dialogar com os cidadãos para construir uma Europa mais resiliente.” Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. https://www.2021portugal.eu/pt/noticias/conferencia-sobre-o-futuro-da-europa-dialogar-com-os-cidadaos-para-construir-uma-europa-mais-resiliente/ (10/22).

Volta, ainda que sejas perseguido

Volta, ainda que sejas perseguido,
Como uma praga, algo que se execra.
Chora sobre a mesa, sobe a fraga.
Desce sob as lágrimas do plátano.
Empurra a porta de casa até ao rio
E deixa entrar no quarto e em ti o vento.
Esquece a dor de entregar um livro.
Nenhuma mão jamais te exaspera.
Intangível é o coração quando deflagra.
Volta, ainda que sejas perseguido.
Ainda que o livro esteja reduzido a pó
E seja a magia que te mirra sem fim.
Volta, ainda que os burgueses de merda
Digam que tens um só casaco e puído.
O livro que arranje a vidinha a todos.
Sonha, um dia acordarás como um pássaro,
Revoluteando ao redor do plátano,
E as margens conhecer-te-ão melhor.
Reconhecer-te-ão a palavra
E a tua longa partida fará então sentido.
Esquece a dor de entregar um livro.
Um sol novo nasce longe da barbárie.

Reflexões sobre uma palestra acerca de química e literatura realizada para duas turmas de humanidades


Dei uma palestra sobre química e literatura numa escola e pedi aos alunos e aos seus professores (duas turmas do 12º ano de humanidades) que escrevessem, de forma anónima, num papel branco que lhes dei, os livros que estavam a ler, ou sobre os quais queriam que eu falasse, ou mesmo que indicassem obras por outra razão. Pretendia escrever num quadro os resultados, mas, como era numa biblioteca não havia um disponível. Assim, comentei alguns livros, tal como o facto de não conhecer vários deles, mas acabei por não os usar tanto como queria. Vou tentar fazê-lo agora. 

Dos quarenta e dois papéis que recebi, quase todos indicavam livros diferentes, com poucas exceções (o que já é bastante interessante): a maior quantidade de repetições correspondeu a três pessoas que referiram o “Orgulho e preconceito” da Jane Austen. Quatro pessoas escreveram “Primo Levi”, mas só duas indicaram livros: “Se isto é um homem” e “Assim foi Auschwitz”.  E, finalmente, duas pessoas referiram “Os Filhos da droga” - uma destas pessoas escreveu ter sido “o único livro que leu até ao fim”. Curiosamente, era algo sobre o qual já estava a pensar falar. Podemos não ler até ao fim, saltar páginas, voltar atrás, não ler de todo, não concordar com o que está escrito, duvidar ou corrigir, ver os filmes, indagar sobre as vidas dos autores e as sociedades em que eles viveram, ler os resumos e comentários, mas … se quisermos mesmo perceber o livro, e ter a experiência da obra, temos de ler o original. Comentei, em geral, que os livros revelam as sociedades do tempo em que foram escritos e, claro, os sentimentos das pessoas, e que tudo isso está relacionado com a química. No caso particular de Primo Levi, temos outras coisa: este foi químico e muitos dos seus livros revelam isso, em particular será essa atividade que lhe vai salvar a vida em Auschwitz.   

Deste conjunto de mais de quarenta livros, vinte e seis eu já tinha lido ou folheado (apresentados aqui sem qualquer ordem): “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai (comentei este livro, mas não tenho aqui tempo para referir tudo), “Veronika decide morrer” e “O Alquimista” de Paulo Coelho, “O triunfo dos porcos” de George Orwell, “Fahrenheit 451” de Ray Badbury (este também comentei, mas apenas sobre o título que é a temperatura a que o papel arde espontaneamente, que em Celcius seria cerca de duzentos graus) e “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. No livro “As intermitências da morte” comentei como a literatura nos ajuda a perceber a vida e  como a imortalidade poderia ser uma maldição (nesse contexto, acabei por referir os livros de vampiros e uma aluna referiu a série “Crepúsculo”) e “O memorial do convento“ (que era o único livro que era referido na palestra), de José Saramago. Achei interessante referirem “O principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, estando ainda por cima o papel muito amarfanhado (pensei logo numa explicação - uma das coisas que comentei foi exatamente essa nossa apetência por narrativas), a “Odisseia” de Homero e “O perfume” de Patrick Süskind foram também referidos e são dois livros que envolvem química como referi em “Jardins de Cristais”. Foram também indicados “Mulherzinhas” de Luisa May Alcott, “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald, “O amor de perdição” de Camilo Castelo Branco (este bastante comentado em “Jardins de Cristais”, mas a propósito deste livro referi a questão dos audiobooks – há uma versão completa na Librivox - e outras formas de “ler”, até por haver um aluno que disse não gostar de ler). Finalmente, foram indicados “A crónica dos bons malandros” de Mário Zambujal e “O pintor debaixo do lava-loiça” de Afonso Cruz. 

Como sempre me acontece nestes casos (imagino que seja sempre assim, pois é impossível ler tudo o que se publica), havia livros que eu não conhecia, neste caso foram quase metade, dezassete: “O telefone preto & outras histórias” com quinze contos fantásticos e de terror de Joe Hill (diz a Internet), “O psicopata mora ao lado” de uma autora neurologista, Ana Beatriz Barbosa Silva (diz também a Internet), “O Assassinato de Sócrates” de Marcos Chicot, “The Spanish love deception” de Elena Armas, “O Vendedor de passados” de José Eduardo Agualusa (este livro conhecia, mas por acaso nunca o folheei). Houve uma pessoa que indicou dois livros: “Viver depois de ti” de Jojo Moyes e “A arte subtil de Saber dizer que se f*da” de  Mark Manson. Continuando, referiram o “O Espião Perfeito - Richard Sorge: o Melhor Agente Secreto de Estaline” de Owen Matthews, “A distância entre nós” de Mikki Daughtry, Rachel Lippincott e Tobias Iaconis, “Como se fôssemos vilões” de  M. L. Rio, “A devoção do suspeito X” de Keigo Higashino, “A Minha vida é um filme” de Paula Pimenta, “Outros jeitos de usar a boca” de Rupi Kaur, livro de poemas sobre a sobrevivência, a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade (diz a Internet) e “Um Gato em Tóquio” de Nick Bradley. Foram também referidos “Nick e Charlie” de Alice Oseman e “Vermelho, Branco e Sangue Azul” de Casey McQuiston que envolvem relações amorosas entre homens. Finalmente, referiram “Estoico todos os dias : 366 reflexões sobre sabedoria, perseverança e arte de viver”, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, livro de pérolas inspiradores de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio e “As 48 leis do poder” de Robert Greene e Joost Elffers. Trata-se em boa parte de novidades e de best-sellers, tratando uma parte de temas complexos, além de alguns livros de autoajuda ou entendimento do mundo (embora toda a literatura acabe por tratar desse aspeto). 

Em qualquer dos casos estive na presença de uma amostra de pessoas que leem e que têm com certeza opiniões sobre o mundo. Acho que não nos podemos queixar. Fiquei bastante interessado em “A distância entre nós” que trata de um romance entre duas pessoas com fibrose cística. Seria interessante, penso eu, perceber como a evolução da ciência melhorou a qualidade de vida destas pessoas e modificou os seus quotidianos. 

Não vou falar muito da palestra que constava de algumas reflexões sobre as narrativas e a ciência e a tecnologia, em particular as de natureza química. Começava com um livro que estou a ler sobre as mulheres na ciência, que, não sendo de ficção, começa de uma forma narrativa bastante intimista e de como isso é eficaz. Seguia depois para o exemplo do "Fiel Jardineiro" de John le Carré (que um aluno conhecia) e que servia para discutir as tensões entre a realidade e a ficção, assim com a evolução dos testes clínicos de moléculas usadas como medicamentos. Comentava também os Lusíadas de Camões e as moléculas associadas. Seguia depois para os aspetos tecnológicos e químicos no século XIX e XX e a sua relação com os livros de Eça de Queirós apresentados nas aulas de Português (Os "Maias" e a "Ilustre Casa de Ramires"). Referia alguns aspetos de "A tragédia da Rua das Flores" e do espírito crítico que devemos ter ao ler e terminava com dois livros de Saramago ("O memorial do Convento" e "O ano da morte de Ricardo Reis").  

Li há pouco tempo que "tudo é estágio". Sim, eu considero que também aprendi bastante com esta palestra.

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