quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Um caso de invisibilidade da química e os seus contrapontos
Aparentemente, também não deveria ser fácil escrever um livro cujo tema é a ciência e a cultura nos séculos XIX e XX sem referir a Química, como defendi em Jardins de Cristais - Química e Literatura. Encontrei, no entanto, recentemente um caso extremo de invisibilidade da Química: Ciência e Cultura (edição coordenada por Filipe Furtado e Gabriela Gândara Terenas). A propósito da explosão científica no século XX refere-se (seguindo por alto o texto) a Física, os quanta, a relatividade, a Física Nuclear (que já foi Química Nuclear), a Física de Partículas, a Matemática e Ciências Exactas, Engenharia, Economia, Teoria dos Jogos, Computação, Cosmologia, Física Teórica, Astrofísica, Astrobiologia, Ciências da Vida, Geociências, Climatologia, Hidrologia, Oceanografia, Geografia, Geocronologia, Biologia Molecular, Biofísica, Genética Molecular, Genómica, Biotecnologia, Bioquímica (que também pode ser designada Química Biológica), Etologia, Medicina (antibióticos, transplantes e meios complementares de diagnóstico), Aeronáutica, Astronáutica, Informática, Engenharia de Materiais, Nanotecnologia, Psicologia e Neurociências, entre outras áreas. Mas não a Química (que espreita por todos os lados nas áreas acima, mas que não aparece como palavra)! E isso é tão mais surpreendente quando uma das referências do livro é a Breve História de Quase Tudo do Byll Bryson, a qual além de referir bastante a Química, contou com o conselho e leitura do químico Roald Hoffmann, prémio Nobel e poeta.
Ora, no século XX qual foi a área científica que mais contribuiu para a transformação do mundo (e ainda está a contribuir no século XXI)? Que esteve envolvida na descoberta dos adubos sintéticos que ajudaram (e ainda ajudam) a alimentar o mundo? Qual foi a área que mais trabalhou para a descoberta, síntese e produção de antibióticos e medicamentos para doenças como a sífilis, malária, cancro, tuberculose, lepra, perturbações nervosas, entre tantas outras? Qual foi a ciência que desenvolveu o tratamento das águas, higiene e desinfecção, contribuindo para o desaparecimento das epidemias de cólera e febre tifóide e diminuição de muitas infecções? Como apareceu a anestesia, a assépsia e os imunossupressores que permitem muitas das operações modernas? Qual foi a área que desenvolveu os polímeros sintéticos e artificiais? Os novos materiais? os tecidos sintéticos e artificiais? Os corantes sintéticos? A agricultura moderna? O controlo de qualidade e a segurança alimentar? Foi a Química através das suas muitas áreas: Química Analítica e Bioanalítica, Síntese Química, Química Orgânica, Inorgânica e Bioinorgância, Fotoquímica, Química Teórica e Computacional, Química Supramolecular, Química de Colóides, Química de Materiais, Química Verde, e tantas outras áreas da Química, quase todas, por si só, pelo menos tão sexys, produtivas e modificadoras do mundo, como as áreas científicas referidas no livro (sobre o qual não está em causa a qualidade e interesse, mas apenas a desaparição da Química)!
Também sobre a divulgação e popularização da ciência não detectei neste livro qualquer referência a Jane Marcet, pioneira da divulgação de ciência britânica com centenas de milhares de exemplares vendidos das suas conversas sobre Química. Veja-se, sobre Jane Marcet, o artigo de João Paulo André (de onde copiei a imagem acima) e atente-se à comunicação de Marília Peres (com a minha co-autoria) sobre as invisibilidades desta autora nas suas traduções para francês e português a apresentar na International Conference on the History of Chemistry (10th ICHC) em Aveiro no início de Setembro.
Como contraponto a esta injusta invisibilidade da Química no século XX, aproveito para recomendar, para além do livro do Bill Bryson, uma outra obra surpreendente e muitíssimo agradável de ler que trata a ciência do século XX (incluindo a Química) com toda a justiça: Uma breve história do século XX de Geoffley Blainey. Tirando uma ou duas questões mínimas de tradução (o nome do polímero silicone é usado em vez do elemento silício uma vez) e a necessidade de síntese deixar alguns assuntos incompletos é um livro a não perder. Para mais é um livro em que Portugal, para além da Química, não é invisível.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Helena Cidade Moura: um testemunho pessoal

“Com 88 anos, faleceu, no passado dia 20, Helena Cidade Moura, que deixou uma marca inconfundível, como campeadora melhorista, antes e depois do 25 de Abril. Co-fundadora do MDP-CDE,deputada por este mesmo partido, activista da CIVITAS, lutadora pela liberdade, pela alfabetização, pelo desenvolvimento e pelo emprego, Helena Cidade Moura caracterizou-se sempre por uma grande obstinação, na luta por aquilo que visava. Conheci-a, há cerca de dez anos, na sua casa, no Monte Estoril, quando me convidou para o cargo de Presidente da Direcção da CIVITAS de Cascais. Quando fui vê-la, sabendo, antecipadamente, do que se tratava, ia determinado a não aceitar o seu convite. Tinha as mãos cheias de trabalho e era um trabalho que me convinha: fazer aquilo de que gostava, no tempo que tinha disponível e numa idade em que já ganhara o direito de ser eu a definir a minha própria agenda. Ia, pois, bem preparado: para tudo, excepto para lidar com a teimosia da Helena, como todos, carinhosamente, lhe chamávamos.
A Helena era o tipo de pessoa à qual só havia uma maneira de se resistir: cedendo. E foi o que acabei por fazer. Exerci o cargo, durante três anos, tão bem quanto pude, com uma excelente equipa de colaboradores, concentrando-nos, sobretudo, em cursos de cidadania. Durante anos, fui vendo, regularmente, a Helena, que nadava em ideias e projectos. Telefonava-me, com frequência, anunciando planos magnos e magníficos para a alfabetização do país inteiro (eu sugeria-lhe, ironicamente, que devíamos começar pelos ministros...).
Mas, após os três anos na CIVITAS, comecei a resistir à Helena: expliquei-lhe, repetidamente, com amizade e firmeza, que a minha agenda não coincidia com a dela, que respeitava, enormemente, o seu trabalho, a sua determinação e a sua entrega, mas pedia-lheque aceitasse, também, a valia do meu. Que me permitisse fazer o que eu queria fazer e não o que ela queria que eu fizesse. A Helena, suavemente, parecia ceder, mas voltava sempre à carga, com determinação e doçura redobradas. Que desse, apenas, o nome, que o trabalho ficava para ela. Eu cedia, desconfiado... Depois, pedia-me que lesse certos papéis e lhe desse a minha opinião. Que fizesse sugestões. Não quereria eu, por acaso...? O trabalho de sapa ia fazendo o seu caminho. Às tantas, encontrava-me quase envolvido. Resistia, escabujava, resmungava. Mas a Helena não desarmava. Depois, as coisas, tristemente, começaram a tornar-se mais complicadas. Combinávamos encontros, mas a Helena, com a memória já muito afectada, esquecia-se, perdia os papéis, não aparecia. Eu não tinha coragem de lhe perguntar por que faltara... Com tristeza, fomo-nos distanciando.
Agora, como bom soldado, afastou-se, desvanecendo-se suavemente, mas deixando connosco aquela boa imagem de uma grande senhora, que toda a vida se entregou aos outros, às boas causas – e morreu quase pobre, isto é, com uma pequeníssima reforma, que aflitamente se encolhia, humilde, ao lado das pensões obscenas, que por aí se passeiam, nas mãos de gente sem estilo e sem coração.
Como aconteceu ao velho pescador, que Hemingway congeminou, em Cuba, a Helena foi destruída, mas não foi vencida. Ninguém conseguia vergá-la: atacava sempre de novo. Sempre. Morreu, como se diz, de pé.”
Eugénio Lisboa
Um malandro é um malandro!
Percebe-se que a abordagem tende a ser o que vulgarmente se designa por "cultural", distanciando-se de um certo tipo de reality show, que já conta com versão portuguesa. Mas sendo "cultural" tem algo de muito comum, tornado senso-comum: cada uma das mulheres começa por estranhar os costumes do povo que a acolhe e fazer comparações com os "nossos" costumes, mas acaba por tudo compreender e acolher com base no princípio de que nada há que possa ser classificado indubitavelmente como "certo ou errado", "bom ou mau", porquanto "tudo depende..."
A mulher ocidental do primeiro episódio que vi (na fotografia ao lado) mostrava-se muitíssimo constrangida com a cena dum casamento de duas crianças africanas (na nossa classificação de idades) que havia sido determinado pelo ancião. À medida que a miúda era literalmente arrastada pelas mulheres da tribo para cumprir o compromisso, o choro e a contestação da mulher ocidental aumentavam e, num certo momento, não aguentando mais, refugiou-se algures. As mulheres da tribo explicaram-lhe que o mesmo tinha acontecido com elas; ao fim de uns dias a miúda recuperou o sorriso; o chefe teve algumas amabilidades que lhe fizeram relativizar o facto de "os homens mandarem e as mulheres trabalharem".
A mulher ocidental do segundo episódio que vi ia em busca de si própria, procurava a essência da vida, que só poderia estar na proximidade da natureza. A tribo da América do Sul que a acolheu mostrou-lhe isso mesmo, apesar da sua maior aproximação à cultura ocidental.
Ambas saíram das "suas" tribos com muita pena porque, diziam, deixavam o paraíso para trás.
Não vou entrar na discussão etnográfica clássica, esgrimindo argumentos sobre o tipo de sociedade - "natural" ou "tecnológica" - que mais contribui para a bondade e para a felicidade, apenas gostaria de destacar que, já entrados na segunda década do século XXI, ainda recorremos à estafadíssima grelha de leitura rousseauneana, recuperada e para tudo usada a partir de finais do século XIX. Tal grelha, embora nada original, marcou, nomeadamente, os trabalhos de Margaret Mead.
A este propósito, recupero a leitura que fiz da obra Dez livros que estragaram o mundo, de Benjamin Wiker (Aletheia, 2011), que dedica um capítulo a esses trabalhos, mais ideológicos do que científicos mas inequivocamente icónicos, dados à estampa em 1928 sob o título de Corning of Age in Samoa (Crescer em Samoa). A passagem que se segue (páginas 225-226) é muito representativa do espírito da série a que me referi.
"Quando Hobbes, Rousseau e Freud imaginaram o estado pré-civilizado do homem, não o fizeram com base em dados históricos, mas apoiados em pressuposto; subjacentes a esses pressupostos está a convicção de que aquilo que é natural e original é melhor. Esta análise também se aplica a Thomas Hobbes, cujo estado de natureza era um estado de guerra, porque embora a sociedade civil constitua uma fuga a esta terrível situação, nem por isso os homens deixam de desejar fazer tudo o que querem e alcançar tudo o que procuram. Margaret Mead tentou efectivamente encontrar exemplos vivos dos primitivos seres humanos mas o famoso retrato que fez dos libidinosos samoanos não passa, na realidade, de uma ficção moderna – e não deixaria de ser uma ficção mesmo que os samoanos fossem exactamente como ela os descreve em Crescer em Samoa. A investigação de Mead estava condenado à partida, porque mesmo que encontremos um “povo primitivo” libidinoso, não podemos deduzir que, pelo simples facto de nos parecer mais primitivo, esse povo se encontra mais próximo daquilo que é natural e bom, sendo por isso, um bom correctivo para o nosso modo de vida. O referido povo pode muito bem, se mais primitivo também mais perverso; a sociedade deste povo pode muito bem ter declinado, em vez de ter progredido. O ponto essencial é que o desenvolvimento tecnológico é moralmente neutro. Um malandro é um malandro ande ele armado com um pau ou com uma AK 47; há bárbaros primitivos e bárbaros sofisticados. A falácia que consiste em supor que os homens primitivos são superiores a nós porque são, alegadamente, mais naturais é especialmente perniciosa quando é usada como foi por Margaret Mead, a saber como forma de propor uma teoria sofisticada e altamente questionável sobre a natureza humana."
quinta-feira, 31 de maio de 2012
TRÊS ANOS DE “AS ARTES ENTRE AS LETRAS”
Meu artigo que acaba de sair no número de aniversário de "As Artes entre as Letras":
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012
Estrangeirados visitam Portugal

Informação chegada ao De Rerum Natura (há sessões semelhantes na próxima semana em Lisboa e no Porto):
A próxima sessão de milplanaltos é já na próxima terça, 14 de Fevereiro. Amadeu Lopes Sabino, Manuel Paiva, José Morais e Jorge de Oliveira e Sousa apresentam "Estrangeirados visitam Portugal". Contamos com a vossa presença na Casa da Escrita, às 17 horas.
"Três portugueses e um belga de origem portuguesa, nascidos nos anos 40 do século XX e cujos caminhos se cruzam em Bruxelas, combinaram reencontrar-se na terra de ninguém entre a memória e o esquecimento, os tempos e os espaços em que o futuro foi uma realidade: o Estado Novo e a guerra colonial que todos recusaram, escolhendo a experiência amarga e enriquecedora do exílio; a oposição à ditadura, vivida por cada um de diferentes modos e com diferentes expectativas; as miragens da evolução e da democracia e, encerrado o ciclo do império, o regresso de Portugal ao rectângulo europeu. Em torno da integração política na Europa e das turbulências do início do terceiro milénio reacendem-se os debates do passado revisitado. O diálogo aguça e lima arestas, contradições, interrogações. Chegou a hora de cada um se dedicar a cultivar o seu jardim? Será a Utopia ainda possível ou mais do que nunca nefasta? Quem vence a partida: o descobridor de novos mundos ou o Velho do Restelo?
Amadeu Lopes Sabino (Elvas, 1943). Foi advogado, jornalista e docente universitário em Portugal. Exilou-se na Suécia na fase final do Estado Novo. Funcionário da União Europeia,em Bruxelas, a partir de 1984. Conselheiro do presidente da Comissão Europeia para as questões institucionais. Ficcionista e ensaísta.
Manuel Paiva (Porto, 1943) naturalizou-se belga em 1972. Físico, exilou-se na Bélgica em 1964. Professor honorário da Universidade Livre de Bruxelas, onde leccionou e dirigiu o Laboratório de Física Biomédica. Autor de obras de divulgação científica.
José Morais (Lisboa, 1943). Neuropsicólogo, exilou-se na Bélgica em 1968. Professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas onde leccionou Psicologia Cognitiva e dirigiu o Laboratório de Psicologia Experimental. Ensaísta e romancista.
Jorge de Oliveira e Sousa (Lisboa, 1945). Politólogo, exilou-se em 1966. Assistente da Universidade Católica de Lovaina, funcionário da Organização das Nações Unidas, posteriormente director-geral da Comunicação na União Europeia e professor no Colégio da Europa (Bruges). Docente do Colégio Europeu."
domingo, 29 de janeiro de 2012
Ler devia ser proibido
"Pensando a respeito, eu acho que ler devia ser proibido.
sábado, 28 de janeiro de 2012
"Linguagens"

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Ainda a polémica entre António Sérgio e Abel Salazar

Novo post do historiador António Mota de Aguiar:
A contenda que António Sérgio e Abel Salazar tiveram nas páginas de vários jornais e revistas no segundo lustre da década de 1940 foi abordada neste blogue em artigos anteriores. Dei como causa principal para o dito diferendo o descontentamento de Sérgio (já o tinha tido também Casais Monteiro) pela forma como Salazar tratou a metafísica, isto é, pelo anúncio da sua falência. Não tivessem havido as críticas à metafísica e, provavelmente, não teria havido o rastilho para toda a polémica.
Faço a seguinte síntese: Tanto Casais Monteiro como Sérgio sentiram-se melindrados ou mesmo ofendidos nas suas convicções religiosas pela forma, seca e fria, como Salazar tratou esta temática.
Abel Salazar era visto com estima no campo republicano e junto de certas camadas da juventude. Os seus artigos fortificavam a sua posição junto destes grupos, o que certamente Sérgio não via de bons olhos, ele que também procurava simpatias junto dos “jovens leitores” (Ensaios, vol. II, pp. 10 e seguintes). As investidas dele contra a metafísica parecem, porém, desproporcionadas no país religioso de então, feitas como eram através de jornais, muitos da província, de reduzido público. Podemos por isso perguntar se seria rentável um ataque tão directo à religiosidade das pessoas. Daria isso alguns louros políticos ou culturais? Atingiriam esses ataques algum alvo sensível da ditadura? Penso que não. Abel Salazar caiu na armadilha que lhe estendeu a ditadura, uma ditadura que não permitia discussões sobre temas sociais e políticos, mas apenas sobre temas eruditos e speculativos, discussões que a população na sua totalidade (cerca de 75% eram analfabetos) não compreendia. Salazar pensou que aquela era a única via para se exteriorizar contra a ditadura: atacou a metafísica, e, por este meio, a Igreja, um dos pilares da ditadura. Pensou bem, mas fê-lo, a meu ver, mal, de uma forma desajustada, ofendendo os crentes que não apoiavam a ditadura, como era o caso de Casais Monteiro e Sérgio.
Se Abel Salazar tivesse feito uma divulgação da filosofia das ciências da Escola de Viena sem recorrer à falência da metafísica, Sérgio, provavelmente, não teria criticado o modo, mas a filosofia das ciências tout court. Isso sim seria uma “trapalhada” (uma expressão que ele próprio usa) porque não dispunha de bases científicas para fazer incursões nesse domínio. Nas Cartas de Problemática, em particular na C1, Sérgio deixa a ideia de que a filosofia só se pode abordar quando se tem uma sólida formação científica, mas, como veremos à frente, Sérgio não a tem. Por isso, embora possa não se estar de acordo com a forma pouco elegante empregue por Abel Salazar ao “ir divulgar ao público o bluff António Sérgio”, compreende-se a sua irritação ao dar-se conta do fraco saber científico do seu adversário. Discordo dos que dizem que, se Sérgio tivesse nascido num outro país, por exemplo, na Inglaterra ou na Suíça, teria sido um grande homem. Um grande homem em quê? Foi um homem do seu tempo, com uma obra sincrónica. Passadas essas décadas a sua obra não tem mais ressonância.
Voltando de novo ao tema principal, foi em torno da divulgação da ciência que os dois homens elaboraram as suas acusações recíprocas. Resumirei a seguir os pontos em que há, de uma forma geral, concordância de opiniões entre Sérgio e Salazar. Pretendo ver se, do diferendo ocorrido, podemos colher algum enriquecimento para os dias que correm.
Sérgio e Salazar estavam de acordo em perguntar como se devia vulgarizar a cultura de modo a fazer dela uma força de transformação efectiva da realidade, quer individual quer colectiva. Ambos concordavam que a cultura, quando reduzida a uma soma de conhecimentos, representava muito pouco, como acontecia com certa “gente culta”, dizia Abel Salazar, sempre pronta a discorrer sobre tudo, com superficialidade e sobranceria. Como vulgarizar a cultura? O que significa ser culto, perguntavam?
Significava, para Salazar “lograrmos desfazer-nos das limitações de espírito, para alcançarmos a objectividade e o universal”, em última instância, ser culto significa a conquista da liberdade. Sobre este ponto - conquista da liberdade - escreve Bento de Jesus Caraça em Cultura Integral do Indivíduo:
“ (…) A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a «conquista da liberdade».”
Este ideal de cultura, de um homem com sólida formação moral e intelectual, a par de um desenvolvimento sempre crescente de todas as qualidades potenciais, era partilhado por Sérgio e Salazar. Ambos defendiam que o mais importante na formação cultural de um cidadão era a ginástica mental, o espírito crítico e científico. Ser culto era ter um método mais que um ideário, era passar da credulidade ingénua e do dogmatismo espontâneo para o nível mental da disciplina crítica. A verdadeira cultura era um esforço de auto-direcção intelectual, de reflexão e assimilação dos assuntos, de justo equilíbrio de raciocínio, de apreensão clara dos conceitos, dos processos e métodos de pensar. Os conhecimentos eram um meio e não um fim, um meio ao serviço da disciplina e do serviço intelectuais, da autocrítica e da reflexão, de um método de pensar e não de uma doutrina.
Dizia Salazar que a verdadeira cultura atira o indivíduo para um mundo onde tudo flui, para um reino de dúvida e de hipóteses, para a renúncia aos princípios absolutos e definitivos, para uma filosofia relativista e fenomenalista (em contraste com as metafísicas apriorísticas), embora neste último ponto não tivesse a anuência de Sérgio. Sérgio, por seu lado, defendia que na vulgarização cultural se deveria privilegiar a aprendizagem de problemas, de uma maneira de pensar, sendo os conhecimentos um mero pretexto para adestrar ou exercitar essa ginástica mental. Salazar, sem rejeitar esta ideia, defendia, porém, que ela devia ser precedida por um certo grau de informação.
Ambos partilhavam a ideia do papel determinante das ideias, especialmente das ideias científicas e filosóficas, na transformação da realidade político-social, a importância do debate de ideias para dirimir conflitos.
Para Salazar devia-se vulgarizar as conclusões e os resultados das ciências. Dava como exemplo uma obra de arte: não é necessário saber como foi criada mas sim apresentá-la bem de modo que o público se interessasse por ela. A vulgarização científica deveria levar o público a uma maior consciencialização da sua relação com o cosmos, com a vida e com o próprio.
Estes são os temas, grosso modo, em que havia concordância entre os dois; o diferendo estava, portanto, no modo como Salazar efectuava a divulgação cultural. Foi essa a base a toda esta polémica.
Uma nota final para sublinhar que, para Salazar, a vulgarização científica podia muito bem ser efectuada por um não especialista, sem que isso implicasse deformação e simplismo; foi precisamente o que aconteceu com Sérgio que, não sendo cientista, polemizou com Salazar sobre temas científicos.
O histologista Salazar ocupa na história da ciência portuguesa do século XX um lugar incontestável. Foi um investigador com provas dadas em trabalhos sobre a estrutura e evolução do ovário, tendo criado o método de coloração tano-férrico, que tem o seu nome. Para além de médico e investigador, notabilizou-se ainda como artista plástico (desenho, pintura e escultura).
A análise sobre Sérgio é mais complexa. Escreveu ele nas Notas de Esclarecimento:
“as minhas hipóteses não se formaram em mim pela dócil leitura de qualquer autor filosófico (…) desenvolveram-se a partir de uma reflexão pessoal sobre a geometria analítica e sobre a física matemática (…) foram a matemática e a física matemática que impeliram o meu espírito para o Platão da caverna.”
Com certa ironia António da Silveira observa:
“A matemática e a física matemática dos preparatórios de um ano para a Escola Naval? Ah!!... mas Sérgio o diz.. A cada um o seu mistério, a cada um o seu mito, a cada um a sua quimera!” (Recordando António Sérgio, p. 27)
Silveira, referindo-se ainda ao pensamento do seu amigo Sérgio, escreve o seguinte:
“(…) Mas a experiência de laboratório tornou céptico os físicos em face das ideias dos filósofos. Estes não são profissionais da investigação científica, não foram levados às suas teorias por uma actividade própria de cientistas” (idem, pp. 28/29).
Sérgio não é um cientista, não foi levado às suas teorias por uma actividade de cientista, foi um filósofo idealista (António José Saraiva considera-o um «idealista moderno»), comunicando, sobretudo, através de ensaios e polémicas. Em geral, o que mais se conhece de Sérgio é a sua faceta polemista. Mas a sua acção na sociedade portuguesa destas décadas foi bastante maior. Ele teve influência nos intelectuais destas décadas, em particular no grupo da Seara Nova, do qual foi director, além de manter uma certa influência sobre uma parte da juventude desta época, como já escrevi atrás. Sérgio foi também pedagogo, perito em assuntos de educação - foi ministro por três meses - filósofo e um intelectual empenhado na reforma cultural do país, crendo-se com a missão de protagonizar uma alternativa positiva.
A sua personalidade – a sua faceta multicultural - foi a sua principal arma. Homem muito inteligente, de sólida formação moral e de vasta cultura, não pôde todavia aprofundar nenhum tema, como fez Salazar. Talvez seja esta a razão do apagamento da obra de Sérgio nos nossos dias. Contudo, não foi um adversário fácil: o seu vasto saber obrigou os seus adversários a estudarem melhor as suas posições para polemizar com ele, contribuindo para o enriquecimento cultural desta época. A sua presença na cultura portuguesa destas décadas como agente cultural foi notável. Pegou-se com todos, a todos moveu polémicas usando o género epistolar. Para avaliarmos a sua contribuição para as ideias do seu tempo temos que ter em conta o cenário. Quão difícil devia ser a vida que os Portugueses tinham na década de 1930, sobretudo no segundo lustre, com uma ditadura férrea dentro das fronteiras, e, para onde quer que olhassem, ferozes ditaduras em volta, com uma guerra civil calamitosa ao lado, e em vésperas de uma catástrofe mundial. Que fazer numa época destas? As ideias não podiam morrer!
Sérgio com os seus Ensaios, as suas polémicas, as suas Cartas de Problemática, etc., enriqueceu culturalmente a sociedade portuguesa do seu tempo. Contribuiu – «Se não se peca contra a razão, não se chega em geral a nada», escreveu Einstein - para nos manter agitados, críticos, nesses tempos asfixiantes. E fê-lo, porque, como recorda Silveira, “as conversas de Sérgio tinham sempre um efeito, libertador, vivicante, estimulante e tónico”.
António Mota de Aguiar
domingo, 22 de janeiro de 2012
Primitivismos como utopias

recordar-se-á, tinha descrito as tribos germânicas do século I de maneira a fazer corar de vergonha os cidadãos de Roma. Essas tribos levavam uma vida simples, em que a honestidade, o amor, a verdade, a coragem e a lealdade eram tão normais como a falsidade, o ludíbrio, a traição e o medo cobarde da morte na civilização. Este contraste foi exemplificado para o século XVI por um certo número de tribos americanas – pelo menos tal como elas se afiguravam aos observadores situados a cerca de 5000 quilómetros de distância. Assim surgiu a figura do Bom Selvagem, que desde então tem fortalecido os sucessivos PRIMITIVISMOS (...)"
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
A Universidade da Vida

Nova crónica da escritora Cristina Carvalho:
É boa, mas não chega! Tem bons mestres, mas não chega! A universidade da vida, ou seja, subentendendo-se um longo caminho já palmilhado, ensina algumas coisas, traz a atenção de certas atitudes, prevê desgraças previsíveis, atenta em quase todas as reações, percebe, ao longe, intenções de variada natureza. O longo caminho da vida adivinha muita coisa e não se deixa enganar com facilidade. Mas não chega!
Servirá de pouco no que se refere a conversas mais ou menos elaboradas e filosóficas porque a experiência de cada um conta muito para um todo, mas conta pouco, individualmente. Individualmente é apenas uma experiência que, a longo prazo, poderá frutificar ou não. Sem conhecimento teórico não se vai a lado nenhum. É esse estudo, esse aprofundar do conhecimento teórico que faz com que saibamos aplicar a nossa própria defesa, que faz com que saibamos escutar outras opiniões. É esse conhecimento teórico que faz com que saibamos usar a tolerância e não desperdicemos o amor que temos para dar. Podemos olhar para muito longe se não desprezarmos a cultura, a leitura, o que outros estudaram e nos transmitiram com boa vontade e sempre no intuito de ser útil. Podemos avançar se tivermos confiança na Ciência, se nos lembrarmos que, se estamos por aqui a viver rodeados de tanta tecnologia, de tanta descoberta em diversos campos de atuação – médica, social, urbana, cívica, agrícola, em suma, universal – é porque alguém não se ficou pela universidade da vida. Frequentou outras universidades. Se não quisermos aceitar todas estas transformações – e só no século XX foram incontáveis! – podemos sempre evitá-las indo viver para o alto dum monte rodeados de cabras monteses aos saltos de pedregulho em pedregulho em busca de alimento, aspirando o ar gelado das noites de inverno, amolecendo nos dias quentes do verão e comendo bagas. Podemos! Mas cá em baixo, no sopé do monte, criaturas espevitadas, ágeis e inteligentes velam para que, se adoecermos, alguém possa dar um aviso e enviar um helicóptero para nos salvar. Ninguém é indiferente à indigência e à morte.
Devemos ouvir e ler e olhar apenas o que vale a pena e esse “valer a pena” é altamente subjetivo ainda que os conceitos e padrões culturais estejam, há muito, bem definidos. Para ser prosaica, direi que “quem gosta do amarelo, não pode gostar do azul” e quem diz que já aprendeu tudo o que havia para aprender uma vez que andou na universidade da vida porque já tem muita idade, demonstra apenas ralo saber. Também a frase “um burro carregado de livros é um doutor” tem a sua razão de ser. Burros carregados de livros é o que há mais. Cavalos sem sela e sem arreios há poucos e os que existem galopam livremente por todos os campos do saber. Se for caso disso, deixam-se acariciar e até montar!
Ao perpassar por todas estas questões, interrogo-me sempre, para que lado uma pessoa se deve voltar. Se estudar, ouvir, ler, participar, conhecer ou se, por outro lado, seguir um caminho mais fácil e seguro, um caminho definitivo e, em situação saudável, um caminho certeiro ainda que com altos e baixos, daquelas veredas que conduzem, inexoravelmente, ao fim da vida e aceitar tudo “isto” tal como é.
É que, na verdade, todos se encontram com razão. A verdade é essa! A razão é de cada um. A razão é sempre de cada um! Portanto, quando dizemos que isto ou aquilo não presta, que não tem interesse nenhum, que não se aprende nada, não é verdade! Se há questões difíceis de aceitar, esta é uma delas: eu não gosto! Como é que tu gostas? Não acho que preste! Como não presta? É magro? Não! É menos gordo! É gordo? Não! É menos magro!
Depende, unicamente, do ponto de vista do indivíduo.
Não me venham é com conversas da “universidade da vida”! Isso é que eu não aguento!
Aguentas? Aguento!!
É a nossa geocentricidade!
Eu sou sol. Tu, sistema solar.
CRISTINA CARVALHO
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Apontamentos para a compreensão da polémica António Sérgio (1883-1969) vs. Abel Salazar (1889-1946) - I

Novo post do historiador António Mota de Aguiar (na figura António Sérgio):
António Sérgio foi um pensador polemista por natureza e avezo a sistematizações, tendo ao longo da vida mantido polémicas com vários intelectuais do seu tempo: na década de 1910 polemiza com Jaime Cortesão e Teixeira Pascoaes a respeito de matérias de identidade nacional; na década de 1920 polemiza com António Sardinha do Integralismo Lusitano em torno da interpretação da História de Portugal e com Cabral de Moncada a respeito do pensamento político português; na década de 1930 será com Casais Monteiro e João Gaspar Simões do grupo literário "Presença." Ainda na década de 1930 com Abel Salazar sobre divulgação da ciência e com Leonardo Coimbra sobre educação. As suas últimas polémicas foram com Bento Jesus Caraça e António José Saraiva.
António Sérgio tinha da polémica uma concepção elevada no debate das ideias, dizia ele que: "A polémica é necessária ao progredir científico, ao avançar da cultura." Contudo, na defesa das suas teses, Sérgio não teve sempre razão, sobretudo em matérias de ciência, uma vez que a sua formação científica não era muito profunda, por isso se discorda tanto das suas teses, e se compreende algum apagamento a que chegou hoje o seu nome.
Isso não impede que Sérgio tenha sido um dos grandes animadores culturais da primeira metade do século XX, de pensamento insubmisso e livre, lutou contra as ideias totalitárias do Estado Novo, sendo várias vezes preso.
António Sérgio nasceu em Damão em 1883, tinha origem indiana por parte da mãe, além de uma ascendência nobiliárquica por parte do avô, o almirante Sérgio de Sousa, ajudante-de-campo do rei D. Luís e governador-geral do Estado da Índia. Seu pai fora vice-almirante e Governador do Distrito de Damão. O jovem António Sérgio é, portanto, oriundo de uma família fidalga do liberalismo português quando ainda com 2 meses de idade o trazem para Lisboa. Com a idade de 6 anos acompanha o pai para Angola onde este ocupará o lugar de governador do distrito do Congo.
Com 11 anos ingressa no Real Colégio Militar e, aos 18 anos, entra para a armada, onde terminou o curso da Escola Naval. Em 1905 parte para Macau, no ano seguinte está em Newcastle. Em 1907 é promovido a segundo-tenente e colocado na Estação Naval de Cabo Verde.
António Sérgio não foi afecto à Monarquia, mas tão pouco via na República a solução dos problemas de Portugal, porém, quando em 1910 se implanta a República, dá um giro à sua vida e liga-se às correntes republicanas intelectuais do seu tempo, pondo em evidência o seu perfil de pedagogo, que manterá até ao fim da vida.
Até ao princípio da década de 1930 participará nas principais revistas literárias de então: Serões, Águia, Seara Nova, e participa no movimento Renascença Portuguesa, ao lado de intelectuais do seu tempo, afirmando-se "aristocrata" e "socialista",
Nestes 20 anos seguintes à implantação da República Sérgio viajará muito: viverá no Brasil, visita várias cidades da Europa, faz estadias prolongadas por razões de saúde na Suíça e em Nice e constrói o seu sistema de análise crítica da História de Portugal e da Europa. Ligado aos movimentos culturais da capital, fortalece nesses 20 anos os seus principais ideais filosóficos.
É principalmente neste período que construirá o seu sistema filosófico-científico e as suas teses económicas, ao qual o seu nome ficou associado como cooperativista.
Quando começa a década de 1930 António Sérgio tem 47 anos, sendo seis anos mais velho que Abel Salazar. Porém, o seu percurso humano, existencial, é completamente distinto daquele efectuado por Abel Salazar.
Ao contrário de António Sérgio, filho de monárquicos, o pai de Abel Salazar foi um homem afecto aos problemas da 'res-publica'. No ano lectivo de 1881-1882, foi, por razões profissionais, enviado para o Porto, tendo deixado Abel Salazar e seu irmão Camilo em Guimarães, entregues aos cuidados da avó e da tia. No ano lectivo de 1899-1900, com dez anos de idade, ingressou no Seminário-liceu de Guimarães de onde guardou deste tempo amargas e perduráveis recordações, pela obscura e intransigente educação religiosa ministrada neste estabelecimento.
Provavelmente, a sua infância e adolescência foram influenciadas por estes anos de seminário e concorreram para a sua posterior "instabilidade emocional." Acrescente-se ainda uma união conjugal infeliz, que o terá atormentado ao longo da vida.
Ao contrário de Sérgio, que como já dissemos, não fora afecto à Monarquia, mas que também não via na República a solução milagrosa dos problemas nacionais, e que na correspondência com Raul Proença escreveu várias vezes que “para mim a Monarquia vale a República”, e que colocava os seus ideias de progresso para Portugal numa solução que estaria para lá dos dois sistemas jurídico-políticos, Abel Salazar ainda jovem aderiu ao ideal republicano e via na República o passo necessário para o progresso de Portugal. Nas primeiras décadas do século XX, são duas concepções diferentes de ver a História de Portugal.
Em 1915, quando terminou o curso universitário, Abel Salazar enveredou pela carreira de investigador científico na área de histologia e, no ano seguinte, é nomeado pela Faculdade de Medicina do Porto para reger esta cadeira. Pouco tempo depois, com 30 anos, é nomeado Professor Catedrático de Histologia e Embriologia da mesma Faculdade, fundando algum tempo depois o mesmo Instituto. Começaria por estes anos a sua carreira de investigador científico que o tornariam internacionalmente conhecido.
Em 1927 Abel Salazar sofreu um esgotamento, motivado por várias causas: excesso de trabalho, conflitos com os colegas na universidade, pela doença grave que sofria a mãe, e por excesso de tabaco, esgotamento também facilitado pela sua "instabilidade emocional". Retira-se então para uma casa de repouso (no fundo, uma casa para alienados mentais), durante cerca de 4 anos.
Em 1931, quando regressa, encontra o seu gabinete desmantelado. É por essa altura que começa a sua intervenção como filósofo neo-positivista, através de conferências de divulgação científica e, a partir de 1935, escrevendo em vários periódicos: O Trabalho, A Voz da Justiça, O Diabo, O Sol Nascente, a Seara Nova, Pensamento, etc., e em muitos jornais da província, como A Ideia Livre de Anadia. Neste último, iniciou uma série de artigos sobre A Falência da Metafísica, cuja síntese iniciei neste blogue em Maio de 2011.
Nestes artigos Abel Salazar defendia, por um lado, a irredutível incompatibilidade entre a ciência e a metafísica, a irreversível decadência histórica da metafísica e sua carência de sentido e, por outro lado, a visão do mundo e da vida que o empirismo lógico da Escola de Viena veiculava.
É também por esta altura que começa a ser seriamente perseguido pela ditadura fascista que, nos anos 1930 redobrava de vigor, quer pela implementação da Constituição de 1933, quer pela força que o fascismo e o estalinismo ganhavam e exerciam tragicamente no mundo inteiro.
Neste sentido, também António Sérgio fora (e seria) perseguido pela ditadura, e algumas vezes preso. Como opositores da ditadura, ambos contribuíram, cada um à sua maneira, para o seu posterior derrube. Ambos pertenceram a movimentos de esquerda opositores ao regime político de então, ambos cobriam o espaço político não comunista, embora certamente fossem de famílias políticas diferentes. Não foi, portanto, por razões políticas que se desentenderam.
As breves biografias que acima tracei destes dois homens, mostram bem que tiveram percursos de vida bem diferentes um do outro, o que ajuda a compreender as posições que tomaram quando da polémica que viriam a ter sobre a divulgação da ciência. Diga-se, contudo, que, se não fosse pelo tom exaltado que esta polémica suscitou, seria apenas uma polémica mais para a História da cultura portuguesa.
(Continua)
António Mota de Aguiar
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
ÉTICA DO TRABALHO E DA JUSTIÇA

Se há coisa que ninguém deseja – e os portugueses habituaram-se a ouvir esse comentário redobradas vezes ao dia – é ser comparado à Grécia.
Triste ironia esta, a de um tempo vergado à omnipotência de uma especulação globalizada e sem rosto, que nos leva a negar as evidências da própria história. A mesma Grécia que representa o primeiro e brilhante fulgor da cultura ocidental é hoje repetidamente acossada para o posto envergonhado de bode expiatório da falência da ideia de Europa.
E no entanto, há quase três milénios que a Hélade vem alimentando o caudal vagaroso do desenvolvimento civilizacional, depois que Homero (mantenhamos o nome transmitido pela tradição) compôs esses dois primeiros monumentos literários - a Ilíada e a Odisseia -, que, tal como representam um espelho interactivo das contradições motivadas pela guerra, expõem igualmente uma galeria de heróis dedicados a grandes causas e ilustram as marcas do engenho que produz conhecimento e progresso, mesmo sendo inseparável de momentos de privação e sacrifício.
Falar da Grécia implica sempre, de uma forma ou de outra, falar de Homero, mas a nossa atenção iria centrar-se agora num outro autor, menos conhecido, embora deva situar-se também no séc. VIII a.C., ainda que anunciando já uma nova mentalidade, marcada pela crescente afirmação do indivíduo.
Trata-se de Hesíodo, pastor e poeta, de cuja produção nos chegaram duas obras maiores: a Teogonia e os Trabalhos e Dias. A primeira constitui uma das fontes mais importantes para o conhecimento das famílias divinas e do mito – essa metáfora eternamente plástica e expansível, que nos permite aprofundar a leitura do mundo e do lugar que a humanidade nele ocupa; a segunda, embora menos preparada, numa abordagem mais superficial, para servir as exigências da imaginação criativa, mostra ainda assim os primeiros indícios da afirmação progressiva da lei na vida em comunidade.
E é particularmente significativo que o faça através do elogio de dois princípios essenciais: o trabalho e a justiça. O trabalho é visto como um bem em si mesmo, que dignifica a humanidade e lhe acrescenta valor, e não como um simples instrumento necessário para afastar a rude pobreza. A justiça, por seu lado, é apresentada como uma dádiva do próprio Zeus, o chefe supremo dos Olímpicos, e como o maior dos bens: é ela que distingue os homens dos animais e impede que aqueles se vejam simplesmente como presas e predadores uns dos outros.
Neste nosso tempo, marcado por índices crescentes de desemprego, pelo desaparecimento de critérios de estabilidade profissional que julgávamos inatacáveis, pela dificuldade em inserir, ao fim de muitos anos de estudo, os jovens licenciados numa actividade que esteja ao nível do investimento feito, afiguram-se miragens cada vez mais distantes o princípio da justiça directamente retributiva e o direito ao trabalho. E o Estado, baluarte último da protecção social, parece não ter outra saída que não seja recuar em toda a linha de actuação.
Num cenário assim marcado pelo pessimismo, pode o passado servir de alento e inspiração? Hesíodo diz-nos claramente que sim, pois na mesma altura em que os males se espalharam pelo mundo, também se desvelou, para a humanidade, a consciência da sua capacidade para inovar. E se o Estado demora a encontrar uma saída global para a crise, cabe ao indivíduo encontrar, em cada dia, as próprias soluções e transformá-las em motor de progresso colectivo. Este impulso criador está identificado e aparece incessantemente referido por políticos e economistas pelo nome de empreendedorismo. Hesíodo e os Gregos davam-lhe um nome menos pomposo: elpis. Simplesmente ‘esperança’.
Delfim F. Leão
quinta-feira, 14 de julho de 2011
GUIMARÃES, CAPITAL DA CULTURA?

Leio nos jornais que o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, que tem a legitimidade proveniente de ser o representante eleito da população vimaranense, perdeu a confiança na pessoa que está à frente da organização da Capital Europeia da Cultura. Estará cansado de esperar por uma organização decente.
Parece-me que aqui está uma magnífica oportunidade de poupar dinheiro público. A extinção dos Governos Civis foi apenas um gesto simbólico. Não se sabe ainda se outras extinções se seguirão, como a das Direcções Regionais de Educação. E por que não extinguir as Capitais da Cultura? Tudo leva a crer que têm sido um regabofe no gasto de dinheiros públicos, mesmo quando a procissão ainda só vai no adro. Até há uma Fundação (Fundação Cidade de Guimarães, com iniciais FCG que se confundem com as da Fundação Calouste Gulbenkian), para organizar o evento...
De Capitais da Cultura tenho uma modesta experiência. Não propriamente Capitais Europeias, mas sim Capitais Nacionais da Cultura. Há um bom par de anos convidaram-me para ajudar na organização de Coimbra - Capital Nacional da Cultura, com o pelouro da ciência, mas só lá estive poucas semanas. O regabofe que vi deixou-me escandalizado. Os responsáveis chegaram a alugar uma sede vistosa e sumptuária - um palacete - por um preço exorbitante, com a complacência da Câmara na altura PSD. O programa, caríssimo, foi uma verdadeira insignificância pois não ficou nenhuma marca na cidade. Como me vim embora logo, não cheguei a ver o decorrer de toda a desorganização. E, se isto era uma Capital Nacional, imagino o que não será uma Capital Europeia da Cultura...
Imagino também que a desavença seja agora, como é costume, não por falta mas por excesso de dinheiros. Numa altura de crise, com carências de todo o tipo, Guimarães, que é uma cidade muito simpática e onde gosto de ir, não merece isto. E o resto do país, que teve Guimarães como berço, também não...
quarta-feira, 1 de junho de 2011
Abel Salazar e a Falência da Metafísica – 3

Continuação dos posts de António Mota de Aguiar sobre Abel Salazar:
Abel Salazar defendeu as suas ideias em vários jornais da época: A Ideia Livre, de Anadia (1928-1944), A Voz da Justiça, da Figueira da Foz (1904-1937), O Trabalho, de Viseu (1933-1940), O Diabo, de Lisboa (1934-1940), Sol Nascente, do Porto (1937-1940), Síntese, de Coimbra (1939-1941), Pensamento, do Porto (1930-1940), Vida Contemporânea, de Lisboa (1934-1936), A Foz do Guadiana, de Vila Real de Santo António (1935-1936), Democracia do Sul, de Évora (1907-1951), Cadernos da Juventude, de Coimbra (1937) Seara Nova, de Lisboa (1921-1979), A Esfera, do Rio de Janeiro (1938-1940), e outros.
Este grande leque de jornais dá conta do interesse que havia pela cultura na primeira metade do século XX e, mostra-nos a energia de um homem solitário defendendo a divulgação cultural e a renovação mental e moral da sociedade portuguesa, a golpe de artigos, por vezes contra tudo e contra todos, mesmo contra o lado que lhe era ideologicamente afim.
De 1935 até à sua morte, em 1946, Abel Salazar escreveu dezenas de artigos nos jornais mencionados, defendendo a microfísica (Bohr, Heisenberg, etc.), a relatividade einsteiniana e as geometrias não euclidianas, enfim os grandes pilares da revolução da física no século XX, suportes do empirismo na luta contra o idealismo.
Foi necessária uma enorme convicção na justeza das suas ideias para travar uma batalha tão desigual. Para isso, empenhou-se numa cruzada virulenta e implacável contra a metafísica e os seus sequazes, quer internos, como Leonardo Coimbra, quer externos, como Heidegger, Bergson, Driesch, e outros.
Abel Salazar bateu-se contra todos: em primeiro lugar contra os cerca de 75% de analfabetos existentes na sociedade portuguesa desta época. Esse vasto número de portugueses era, sem dúvida, o inimigo número um de quem queria passar uma mensagem, apoiada no empirismo lógico da Escola de Viena, aliás, de tão difícil apreensão.
No campo conservador, por exemplo, o jornal Acção de Águeda, em vários artigos, contestou Abel Salazar por este apresentar – dizia - os seus artigos de forma dogmática, não fundamentando a sua opinião em argumentos sólidos. Era, portanto, uma atitude desonesta servir-se do seu prestígio como professor universitário para fazer passar dados controversos, falando para pessoas que nunca tinham ouvido falar de metafísica, acrescentava o jornalista.
O autor destes artigos, perguntava-se quais seriam os objectivos de Abel Salazar fazendo a apologia da falência da metafísica? Teria objectivos políticos em vez de filosóficos, “uma intenção política, escondida e subjacente” ao afirmar “a impossibilidade do homem atingir o absoluto, Deus”? Perguntava se Abel Salazar não estaria a defender a via do materialismo histórico, fomentando ideias “anti-familiares, anti-nacionais e anti-religiosas”, sob a roupagem de um pretenso artigo de divulgação científica.
O Diário da Manhã, de Lisboa, chamou a Abel Salazar “malfeitor”, um “doente à procura de um psiquiatra” , um “filósofo destrambelhado”. Quanto à Revista Católica, de Viseu, ela via nos artigos de Abel Salazar uma subversão política, nada mais nada menos do que uma divulgação do comunismo.
A Censura foi outro dos obstáculos que Abel Salazar também teve de enfrentar. O oficial censor considerava os seus artigos ofensivos do plano de morigeração; nalguns casos era cortada parte do texto, desfigurando-o, noutros, todo o texto era simplesmente eliminado.
Possivelmente, para Abel Salazar o mais duro foi a polémica que manteve com os intelectuais do mesmo lado político que o seu, pessoas como Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), republicano, poeta, crítico e novelista, director, de 1931 a 1938, da prestigiada revista literária Presença (1927-1940). Professor de liceu no Porto, de onde era natural, afastado da carreira docente por razões políticas, teve de emigrar para o Brasil para ganhar a vida, já que o Estado Novo lhe fechara as portas à carreira docente.
Maior e mais grave foi a polémica com António Sérgio (1883-1969), filósofo, político, e homem de elevado carisma moral na sociedade portuguesa, lutador intelectual anti-fascista, por isso várias vezes preso, intelectual do grupo seareiro, da prestigiada revista Seara Nova (1921-1979), onde ao longo dos anos desenvolveu uma notável acção pedagógica e cultural, marcadamente voltada para a problemática da educação.
O confronto entre estes dois homens e Abel Salazar começou em 1937, tendo como fundo um artigo que este último escrevera no jornal Sol Nascente de 2 de Março de 1937, intitulado: Kretschener e os plotinozinhos, onde o autor atacava os “vaporosos aristocratas da quintessência”, incluindo-os no tipo dos “espiritualistas”, partidários duma concepção metafísica do homem e da vida.
Casais Monteiro, do grupo Presença, foi o primeiro a responder a Abel Salazar, pondo em destaque o modo como Abel Salazar efectuava a vulgarização cultural. Não estava em causa o fundo, não era pois o neo-positivismo do Círculo de Viena que estava em discussão, mas a falta de rigor crítico e de verdadeiro método científico que, segundo Casais Monteiro, Abel Salazar utilizava, acusando-o de fazer uma crítica simplista e dogmática à metafísica, e de não identificar os adversários, os quais não existiam, sendo tudo uma fantasia de Abel Salazar. E escrevia o seguinte:
“Não basta espalhar a Ciência – é preciso, é o mais importante, espalhar o espírito científico. Num país que sofre tradicionalmente de incontinência verbal, é perigoso, quando se tem nome e discípulos, dar largas a certas fraquezas como as reveladas no (seu) artigo (…).
É triste ver um homem de grandes responsabilidades intelectuais, a título de defender a Ciência, incorrer nas mais manifestas atitudes anti-científicas enganando os leitores ignorantes que amanhã irão repetir as (suas) graças”.
Abel Salazar respondeu, identificando os seus adversários, acrescentando que não se dirigia só a estes, mas também a todos aqueles – a grande maioria -
“que neste país viviam intoxicados de filosofismo, ou seja, dum pensamento inquinado pela plétora verbal, pela retórica oca, pelo pedantismo e pela autoridade magistral, onde o sentimento se sobrepunha à reflexão e o espírito metafísico ao científico”.
A polémica com António Sérgio foi muito mais fundo, por isso mais dura...
António Mota de Aguiar
(continua)
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Orquestra de serviço

Já aqui o referi, uma das coisas que impressionou foi o modo como a Orquestra Clássica do Centro começou a trabalhar desde o princípio, com uma vontade e um entusiasmo que nos tocava, e que foi capaz de manter, sempre num ritmo elevado e constante, transformando-se num facto para nós surpreendente.
Lendo agora o que diz a sua Diretora fica-se a saber que foi intenção, desde o princípio, estabelecer uma rede de protocolos com as autarquias para levar a grande música a todo o lado a ao maior número possível de pessoas. E que, portanto, não se tratou de um entusiasmo juvenil, a esmorecer depressa, mas de um programa seguro, pensado e em contínua execução.
E que outro objectivo foi dotar a cidade de Coimbra de uma orquestra residente. E por que não, se Coimbra tem uma tão rica tradição musical? E se Lisboa tem várias orquestras e o Porto tem também a sua, por que não Coimbra? Ah, mas aqui, alto lá, as cordas precisam de mais energia e os metais de mais pulmão. Sabendo que não se pode contar, trabalhando em Coimbra, com os subsídios que, mais perto do poder, flúem melhor, é preciso provar que os merecemos. E a Orquestra arregaçou as mangas e transformou-se logo num agente de difusão musical qualificado trabalhando em grande ritmo por todo o Centro de Portugal, e não só. Se queremos o “luxo” de uma orquestra nós temos que provar que ela aqui não é um luxo para ocasiões especiais e públicos selecionados, aqui uma orquestra tem muito que fazer, não tem mãos a medir. Não faltam cidades e vilas onde nunca chegou nada de semelhante, temos em potência um público vasto, diverso e muito carenciado, que nunca ouviu música clássica ao vivo. Esta é a grande tarefa da Orquestra Clássica do Centro: satisfazer e multiplicar os melómanos da cidade, e ir aos lugares da carência despertar nas pessoas o sentimento e o desejo da beleza que não conhecem, mas adivinham, e que depois agradecem, rejuvenescidos pelo sentimento de haver melhores mundos do que aqueles que sempre lhe deram. Daí também a sua missão pedagógica, nas escolas, nas associações culturais, e as suas ramificações em ação: o Coro, a Orquestra Juvenil e o Canto de Rua.
E se os duzentos mil habitantes de Coimbra talvez não cheguem para manter uma orquestra sinfónica, os dois milhões e meio da Zona Centro são mais que suficientes, desde que haja um programa que leve até eles a música, de modo continuado e regular. E tem sido isso que a Direção da Orquestra tem feito.
Neste trabalho louvável e nesta notável prova de vida os sucessivos Ministérios da Cultura têm reparado pouco. Para além de um ou outro apoio esporádico, tem sido a Câmara Municipal de Coimbra, alguns mecenas e o público, a aguentar a Orquestra. Ora, num país em que há muitos a prometer e poucos a fazer, era de justiça que se começasse a apoiar os que de facto fazem e querem continuar a fazer. E, obviamente, devia ser segundo critérios, a partir de projetos, em concursos públicos e tendo em conta os currículos.
Já aqui falei na diversidade, quantidade e qualidade de realizações que o Museu da Ciência tem mantido desde há quatro anos. Ora bem, a Orquestra Clássica do Centro anda a fazer algo de semelhante há dez anos. Coimbra afinal sabe fazer as coisas. Quando é que começamos a apoiar os que merecem e a recompensar o mérito? Portugal e a cultura portuguesa ficariam muito agradecidos e devolveriam em dobro ou triplo.
João Boavida
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Reportagem do 2º aniversário do CCVRC
Veja o vídeo aqui.
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Tempos extraordinários
- foram encontrados dentes humanos com mais de 400.000 anos; a descoberta deu-se em Israel e, a confirmar-se, permite "esticar" a localização temporal dos primeiros homo sapiens para muito mais cedo do que o que se pensava. O último consenso sobre esta matéria aponta que os primeiros "homens sábios" surgiram há 200.000 anos. Eis um fabuloso desafio para a antropologia...
- O Carlos Oliveira, do blog AstroPT, conta-nos que há novas e interessantes teorias sobre os mistérios do despromovido Plutão! Não, não se trata de uma obsessão por encontrar oceanos em tudo o que é local do nosso Sistema Solar, mas parece que Plutão pode esconder um oceano por baixo da sua superfície gelada... para já, é apenas uma teoria, um modelo computorizado, que indica que o núcleo desse "em tempos planeta" contém materiais radioactivos cujo fenómeno de decaimento poderá ser suficiente para aquecer o gelo. E não será um mero lago; de acordo com o modelo, esse oceano poderá ter 100 a 170 quilómetros de espessura! Eis um fabuloso desafio para a missão New Horizons desvendar em 2015 quando chegar a essas terras distantes do nosso Sistema Solar!
- continuemos pelo sistema solar exterior: neste mesmo dia, mas no ano de 1612, Galileu tornou-se no primeiro homem a observar o planeta Neptuno; terá reparado num "estranha estrela fixa" perto de Júpiter e registou essa descoberta:

Assim, e em honra e memória de Galileu e Neptuno, deixo-vos com o elogio de Gustav Holst fez a esse planeta na sua maravilhosa obra The Planets Suite, escrita na segunda década do século passado.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Adeus Carlos!

Estive com ele há poucos meses numa entrevista que realizou com o Prof. Veiga Simão na Biblioteca Joanina (não sei se a RTP já a transmitiu). Na ocasião, mostrou ao ex-ministro da Educação uma foto que retratava os dois, um jovem repórter e o outro jovem ministro, numa entrevista ao DN, no início dos anos 70, quando a reforma hoje conhecida pelo nome do ministro foi anunciada. Voltei a estar com ele há poucas semanas numa entrevista que me fez na Biblioteca Municipal de Oeiras, a propósito das comemorações da República. No jantar que houve antes fez mais perguntas do que na entrevista, pois interessava-se por tudo e mais alguma coisa. Tanto numa ocasião como noutra, estava vivíssimo, dono de uma excelente memória e senhor de uma grande energia. As histórias que contava eram sempre engraçadas porque eram contadas por ele. Desde há horas que já não está entre nós. Vamos ter saudades de um jornalista singular, de um grande amigo da cultura. Adeus, Carlos Pinto Coelho!
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
A língua e a cultura
Tem andado na ordem do dia o problema da língua portuguesa. Em esferas oficias e não oficiais discursa-se e disputa-se sobre a questão, preceituando o ataque frontal ao estrangeirismo, pedindo a reposição do latim nos liceus, proclamando a necessidade do purismo linguístico, e outras coisas igualmente respeitáveis. É de crer, porém, que o problema da língua portuguesa seja mais vasto e mais fundo.

É mais vasto e mais fundo porque a questão da língua é de cultura e de vitalidade da cultura das massas; é de vitalidade cultural. Há necessidade de defender extrinsecamente uma língua quando ela não é suficientemente viva e dinâmica, quando ela não se defende por si através da desdobradora multivalência das suas formas, da procura e desenvolvimento de virtualidades novas que se vivifiquem e ao mesmo tempo a lancem num caminho de futuro e de tradição. Sem um sentido de futuro toda a tradição é morta e indigna, porque inútil. Uma língua defense-se a si própria crescendo e maturando-se.
Tal como tudo, uma língua que precisa que a defendam é porque não tem defesas próprias; e uma língua só tem defesas próprias quando cria raízes, isto é, tem consciência de si, se desenvolve e está viva. E a vitalidade de uma língua é um problema de consciência cultural, de individualidade cultural (...)
Antes mesmo deste problema andar na ordem do dia, há já algum tempo portanto, apareceu n’ A Capital um notável artigo de António José Saraiva em que, grande parte do problema, era visto e exposto com toda a clareza: «O Português vegeta exuberantemente, multiplica-se com uma sofreguidão animal, mas não se define e não se consciencializa, não assume a sua personalidade cultural».
A medida de uma consciência cultural dá-se ao nível da sua realização e da sua vivência. Só se assume aquilo de que se é consciente. Só se pode defender uma língua depois de a amarmos. E só se pode amar aquilo que existe verdadeira e vitalmente, que é original, dinâmico. E uma língua só é original e dinâmica quando cria os seus dinamismos e é lidada e tratada a nível de património.
Enquanto a escola continuar sendo uma mera campanha de alfabetização (fase que, felizmente, parece estar a ser ultrapassada) e o ensino dos liceus e das escolas técnicas continuar a estar vedado a uma grande parte, senão à maioria da população juvenil, e para a parte a que não está vedado, o ensino do português continuar a revestir o aspecto gramatical e árido, ou falsamente moralista que tem sido tradicional, o problema não pode mudar muito de feição. Nada há a fazer por uma língua se ela não é amada por toda uma população e não apenas por uma elite.
Não se pode conhecer nem amar, a um nível de nação, aquilo que só é ensinado a uma parte, e nem a esta da melhor maneira. Eis pois porque é preciso remodelar o ensino do português e estendê-lo a toda a população. Remodela-lo para o tornar vivo, dirigido no sentido de criar amor à língua, de criar o gosto pela leitura, através do texto, da declamação, da audição de poesia gravada ou lida, do exercício da dicção, de um verdadeiro estudo de sintaxe aplicada. E estendê-lo, para o tornar mais vivo, a toda a população através do livro barato e dos bons autores, das sessões públicas de divulgação a tentar conquistar as fábricas, os meios rurais e pequeno-burgueses.
Fazer isso, o que me parece ser o que há a fazer de imediato, é lançar as bases para a solução de todo o complexo problema que está por baixo e que é muito mais vasto. Com a tendência para o ensino gramatical e seco (...) como é o do nosso ensino médio (...) desapareceu quase completamente o verdadeiro gosto pela leitura. Sendo reduzido o geral gosto pela leitura, diminui imediatamente o comércio do livro, torna-se um produto sem sentido nem utilidade para grande parte da população. A leitura torna-se um gosto de elites, ou objecto de luxo para prateleira enfeitar.
Desgraçadamente os dois aspectos ligam-se, e isto porque, se o público é reduzido, as edições tornam-se pequenas, o que faz com que o livro fique caro para poder pagar a tipografia e os direitos de autor e o mais. Há imediatamente necessidade de justificar o preço com uma tendência para o luxo inútil das edições. Deste modo, uma pequena parte do público que lê livros, e que é a massa estudantil, acaba por pagar aquilo que lê por um preço feito para uma burguesia que, com certeza, não lê, ou lê pouco. Pagando caro o que não pode, compra menos, o que ainda agrava mais a questão. E deste modo a classe dos livreiros explora (ou vê-se forçada a explorar) uma massa que sente pesar sobre a sua bolsa a cultura como um grave prejuízo.
Tudo isto pela ausência de um público vasto a proporcionar grandes edições de bolso efectivamente acessíveis. É aqui que fundamentalmente é preciso actuar, a criação de uma vasta camada efectivamente apreciadora e consumidora de bons autores, com uma cultura linguística e estética de base. Ora, isto tem grandes implicações culturais, mas também, e não menos importantes, económicas. Até onde se poderá actuar com resultados?
Com um público restrito e edições pequenas, a classe dos escritores torna-se uma classe de deserdados em que só uns pouco conseguem um certo público e uma certa aceitação. Daqui até à psicologia do autor consagrado e do nome feito, como tal tantas vezes ameaçado de cristalização e de morte prematura, é um passo. Quer dizer, o ciclo natural do surgimento e da revelação de autores novos fica estrangulado, quer dizer ainda, a língua, também por este lado, não fica nas condições mais perfeitas para o seu desenvolvimento através de novas criações, novas formas, novas tentativa de conjugação e de superação, que são no fundo as condições de vitalidade e da defesa própria de uma língua.
Com o enfraquecimento da promoção de autores aumenta a descrença nas possibilidades literárias dos autores nacionais, realmente enfraquecido pelas condições exteriores, e abre-se a porta ao inculto parolismo de considerar a nossa literatura como somenos e de aceitar quantos autores estrangeiros apareçam. E eis por que a nossa actividade editorial está abarrotando de traduções, muitas de má qualidade e de autores muitas vezes secundários. E assim, como António José Saraiva dizia no citado artigo Mátria e Pátria, «em Lisboa traduz-se; em Coimbra conserva-se; o Porto consegue a custo manter a sua posição de capital do Portugal galego».
Isto é terrivelmente verdadeiro. Que é feito, em Coimbra, da actividade editorial de há vinte e tal anos? Nesta terra actualmente só quase se editam sebentas e manuais de Direito, para além, obviamente, de Miguel Torga. Nesta terra onde se revelaram autores como José Régio, Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, e tantos outros nomes, e movimentos como a Presença e o Neo-Realismo, já não tem escritores? Será que toda a gente se esqueceu disto? Sem literatura não há língua viva; sem público dificilmente há boa literatura. Para haver público é preciso haver cultura e consciência da unidade e vitalidade dessa cultura.
João Boavida
SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.
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