quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Um malandro é um malandro!

Por estes dias de Agosto, ligando a televisão no canal Odisseia, apanhei, por duas vezes, já a meio, um programa com marca da BBC que tem por título Mulheres na Tribo. Tanto quanto pude perceber, a ideia é a seguinte: diversas mulheres ocidentais, talvez inglesas, foram, com uma equipa técnica, passar uma temporada a sociedades mais ou menos isoladas da dita civilização.

Percebe-se que a abordagem tende a ser o que vulgarmente se designa por "cultural", distanciando-se de um certo tipo de reality show, que já conta com versão portuguesa. Mas sendo "cultural" tem algo de muito comum, tornado senso-comum: cada uma das mulheres começa por estranhar os costumes do povo que a acolhe e fazer comparações com os "nossos" costumes, mas acaba por tudo compreender e acolher com base no princípio de que nada há que possa ser classificado indubitavelmente como "certo ou errado", "bom ou mau", porquanto "tudo depende..."

A mulher ocidental do primeiro episódio que vi (na fotografia ao lado) mostrava-se muitíssimo constrangida com a cena dum casamento de duas crianças africanas (na nossa classificação de idades) que havia sido determinado pelo ancião. À medida que a miúda era literalmente arrastada pelas mulheres da tribo para cumprir o compromisso, o choro e a contestação da mulher ocidental aumentavam e, num certo momento, não aguentando mais, refugiou-se algures. As mulheres da tribo explicaram-lhe que o mesmo tinha acontecido com elas; ao fim de uns dias a miúda recuperou o sorriso; o chefe teve algumas amabilidades que lhe fizeram relativizar o facto de "os homens mandarem e as mulheres trabalharem".

A mulher ocidental do segundo episódio que vi ia em busca de si própria, procurava a essência da vida, que só poderia estar na proximidade da natureza. A tribo da América do Sul que a acolheu mostrou-lhe isso mesmo, apesar da sua maior aproximação à cultura ocidental.

Ambas saíram das "suas" tribos com muita pena porque, diziam, deixavam o paraíso para trás.

Não vou entrar na discussão etnográfica clássica, esgrimindo argumentos sobre o tipo de sociedade - "natural" ou "tecnológica" - que mais contribui para a bondade e para a felicidade, apenas gostaria de destacar que, já entrados na segunda década do século XXI, ainda recorremos à estafadíssima grelha de leitura rousseauneana, recuperada e para tudo usada a partir de finais do século XIX. Tal grelha, embora nada original, marcou, nomeadamente, os trabalhos de Margaret Mead.

A este propósito, recupero a leitura que fiz da obra Dez livros que estragaram o mundo, de Benjamin Wiker (Aletheia, 2011), que dedica um capítulo a esses trabalhos, mais ideológicos do que científicos mas inequivocamente icónicos, dados à estampa em 1928 sob o título de Corning of Age in Samoa (Crescer em Samoa). A passagem que se segue (páginas 225-226) é muito representativa do espírito da série a que me referi.
"Quando Hobbes, Rousseau e Freud imaginaram o estado pré-civilizado do homem, não o fizeram com base em dados históricos, mas apoiados em pressuposto; subjacentes a esses pressupostos está a convicção de que aquilo que é natural e original é melhor. Esta análise também se aplica a Thomas Hobbes, cujo estado de natureza era um estado de guerra, porque embora a sociedade civil constitua uma fuga a esta terrível situação, nem por isso os homens deixam de desejar fazer tudo o que querem e alcançar tudo o que procuram. Margaret Mead tentou efectivamente encontrar exemplos vivos dos primitivos seres humanos mas o famoso retrato que fez dos libidinosos samoanos não passa, na realidade, de uma ficção moderna – e não deixaria de ser uma ficção mesmo que os samoanos fossem exactamente como ela os descreve em Crescer em Samoa. A investigação de Mead estava condenado à partida, porque mesmo que encontremos um “povo primitivo” libidinoso, não podemos deduzir que, pelo simples facto de nos parecer mais primitivo, esse povo se encontra mais próximo daquilo que é natural e bom, sendo por isso, um bom correctivo para o nosso modo de vida. O referido povo pode muito bem, se mais primitivo também mais perverso; a sociedade deste povo pode muito bem ter declinado, em vez de ter progredido. O ponto essencial é que o desenvolvimento tecnológico é moralmente neutro. Um malandro é um malandro ande ele armado com um pau ou com uma AK 47; há bárbaros primitivos e bárbaros sofisticados. A falácia que consiste em supor que os homens primitivos são superiores a nós porque são, alegadamente, mais naturais é especialmente perniciosa quando é usada como foi por Margaret Mead, a saber como forma de propor uma teoria sofisticada e altamente questionável sobre a natureza humana."

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Há bárbaros primitivos e bárbaros sofisticados, concordo. E, nem por isso justifica-se da grelha e, simbolicamente do - ainda recorremos - da grelha de leitura rousseauneana.

Termo a nem descrição do componente histórico, enquanto religioso.

O TIM VEM ÀS CONVERSAS ALMEDINA