sexta-feira, 3 de agosto de 2012
FOGO
Novo texto da escritora Cristina Carvalho:
Nada. Uma pessoa não pode nem consegue fazer nada! Fica-se para ali a olhar a espiral de um fumo sólido a agarrar-se ao ar, a subir em volutas na direção do abismo vertical que é o próximo céu. O ar escurece. A capa sufocante envolve-nos e começa a perseguir-nos e por mais velozes que sejamos seremos sempre alcançados e, inexoravelmente, cobertos nesse rodopio de asfixia.
No final desse dia, depois de tudo ardido, tudo o que restou, tudo o que se podia ver era um palco cinzento de cujo chão, em perigoso silêncio, nasciam fumarolas também cinzentas que se enovelavam e espalhavam por todo aquele cenário incrível e arruinado, composto por troncos queimados e retorcidos, os troncos fantasmagóricos das árvores que foram.
Aqui e ali uns casebres espalhados monte acima donde saíam, em pânico, seres humanos de rostos desfigurados pela assombração, como se fossem coelhos assustados a escapar das tocas incandescentes. Coelhos-homens, coelhos-mulheres e coelhos-crianças sem fala, sem grito, sem tom nem som, apenas a fugir doidamente, a querer a salvação da planície lisa e verdejante mais ali abaixo, onde o terror ainda não tivesse chegado. E por ali à volta, o estalidar sinistro da erva toda a arder, um remexer, uma inquietação, uma insignificância de fim de vidas, animais e vegetais.
Os homens avançam nesta desordem desgraçada, puxando as mangueiras inchadas de água que não chega para nada, todos eles negros de fumo, secos de garganta, secos de secas, secos de secos. Os homens nem falam, nem gritam, nem nada! São apenas umas tristes figuras desgovernadas que, não temendo a chaga da floresta em chamas e não ligando às suas próprias chagas, ali se perpetuam, ali se excitam em ensaios de um espetáculo que nunca desejaram ver. Esses homens, ao nascer, pediram o céu, não pediram o inferno.
Estamos todos por nossa própria conta e risco. Nós os que corremos, nós os que desesperamos, nós os derradeiros suplicantes estrada acima e estrada abaixo com pacotinhos de leite entre os dedos acenando lenços brancos para quem os quiser ver e tanto servem para secar as lágrimas como para tapar bocas, empurra, empurra, eu grito, eu chamo, nasceu mesmo aqui uma pequena labareda que ninguém ainda a viu, talvez nunca seja vista, o que fazer? o que fazer?, grita o grito mais além, ecoando em mil trovões e depois o estalejar, o ramo que se contorce, o telhado que se abate, a negridão que se alastra, o sufoco que consome e não há nada a fazer.
Foram dias após dias da morte mais viva até acontecer sermos todos moribundos.
CRISTINA CARVALHO
www.cristinacarvalho.org
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