quarta-feira, 8 de agosto de 2012

SABERES E SABORES

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho, com os agradecimentos do De Rerum Natura
Cocaria . Pintura de Henrique Leonor Pina

Entre os muitos saberes a que vamos tendo acesso ao longo da vida, uns situam-se nas áreas das chamadas ciências em geral, incluindo as humanidades, outros no domínio das artes, outros no das tecnologias e, ainda outros, tidos por menos eruditos, ligados a um sem número de ocupações laborais e de vivência quotidiana. Entre estes últimos, incluem-se todos os que dizem respeito à utilização e confecção de alimentos, reserva cultural imensa, transmitida de geração em geração, vendo fazer e fazendo, copiando e inovando, numa história quase tão longa quanto a do Homo sapiens.

Nesta caminhada de milénios, a procura e a descoberta de sabores foram transformando os simples actos de comer e beber, para viver, num outro marcado pelo prazer onde, aos sabores se associam os odores e as cores (os olhos também comem, diz-se). São ainda saberes os do vinicultor, ao apurar e seleccionar os sabores do vinho, que, com outros nascidos dos saberes da cozinha, dão sabor à vida. São os bons sabores da mesa que, com o evoluir da humanidade, foram dando sentido estético e convivial à necessidade meramente fisiológica da nutrição. Aliás, comer, do latim comedere, significa tomar os alimentos em companhia, posto que radica no verbo edere que, por si só, significa esse acto de ingestão, antecedido do elemento cum, que alude à ideia de companhia e que é o mesmo prefixo com que se fizeram as palavras convivência e companhia.

Quem como eu, desde sempre curioso das lides da cozinha, acabou por fazer vida entre a comunidade científica, tem matéria para divagar em torno dos muitos pontos de ligação existentes entre os sabores da cozinha e os saberes, tidos por eruditos, cultivados por esta comunidade. Sabores gastronómicos e saberes científicos andam, assim, de mãos dadas, como se verá nas linhas que se seguem.

Uma rápida passagem sobre a imensa diversidade de “cheiros” e “temperos”, de hortaliças, de cereais e de tudo o mais que consumimos entre os produtos vegetais, basta para evidenciar a grande e imediata ligação entre os saberes da botânica, ou da biologia vegetal, como agora se diz, e os sabores dos nossos cozinhados. Poderia começar por evocar Garcia de Orta, contemporâneo de Luís de Camões, e falar da sua contribuição na introdução das ervas aromáticas do oriente na cozinha regional do Alentejo. Grande botânico, este ilustre cidadão de Castelo de Vide é igualmente conhecido entre os mineralogistas pelas referências às pedras preciosas (gemas) que nos deixou no seu livro “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, publicado em Goa, em 1563.

Dentro desta ciência poderiam os seus cultores dissertar sobre a fisiologia e a bioquímica do mundo vegetal e das implicações de toda essa fenomenologia nas sensações que nos atingem o cérebro através da pituitária e das papilas gustativas. O raminho de hortelã escaldado nas “sopas da panela” e o aroma que, de imediato, se espalha no ar tem por base essências elaboradas pela respectiva planta e que são diferentes das dos orégãos, dos poejos, do louro, do limão, do cravinho, da canela, dos cominhos e do alho de todos os dias. E a couve do caldo verde, o feijão das feijoadas, a alface, o pepino e os pimentos das saladas, a cebola e o tomate das ceboladas e tomatadas, o marmelo e a goiaba das marmelada e goiabada, não são todos produtos do chamado “Reino Vegetal”? E o azeite, o vinho, o pão de milho, de trigo ou de centeio, não são eles, também, parte desse grande reino?

No que se refere à zoologia, outro grande domínio do mundo biológico, são igualmente imediatas as associações que se podem fazer entre a gastronomia e o saber que nele se cultiva. Nesta ciência o difícil é seleccionar os exemplos, tantas são as fantasias alimentares dos habitantes dos quatro cantos do mundo. Das tradicionais “tripas” à moda do Porto, à expectativa de risco para a saúde face ao espectro da tão falada encefalopatia espongiforme bovina ou “doença das vacas loucas”, das perfumadas e gostosas sardinhas na brasa e dos benefícios da respectiva gordura na regulação do colesterol, à caldeirada comida ali, na fragata, a meio do Tejo e a saber a maresia, muitos são os pontos de conexão entre o “Reino Animal” e muito daquilo de que nos alimentamos e são motivos de prazer gastronómico.

Aos químicos, também eles com “muito pano para mangas” numa dissertação deste teor, não faltam temas. O sal, cujo valor na culinária ficou glorificado no conto tradicional da princesa que, à pergunta que o rei lhe fizera e às irmãs, respondeu «Eu quero tanto ao meu pai, como a comida quer o sal...», é cloreto de sódio, um apenas entre os ácidos, as bases e os sais da ciência, mas também os da poesia de António Gedeão (ou Rómulo de Carvalho). Os ácidos oleico e acético têm total cabimento no portuguesíssimo bacalhau cozido ou nas saladas bem temperadas. Carbo-hidratos, lípidos e prótidos, álcoois e aldeídos, e suas propriedades organolépticas, isto é, os seus odores e sabores, estão sempre na cozinha e na mesa. A sacarose bem docinha e em excesso no pacotinho de açúcar, e a cafeína que faz a delícia da “bica”, dois perigos para a saúde, mas também dois prazeres, têm aqui o seu espaço. Todos estes produtos e muitos mais, e as reacções que possibilitam, fermentação, hidrólise, oxidação, redução, etc., são a ponta do iceberg da participação dos saberes da química na arte de cozinhar.

Os físicos têm, aparentemente, menos por onde se movimentar neste exercício e tal acontece apenas porque as ligações dos seus saberes aos sabores não são tão evidentes. Podem explicar o aquecer e o arrefecer, a condução e a convecção térmicas, o gelo e o degelo, a fervura e a fritura e as diferenças entre cozer, estufar ou guisar e assar. Podem discorrer acerca do verde da alface, das couves e demais verduras, do vermelho do tomate, dos morangos e das beterrabas, do laranja da cenoura ou do amarelo do limão, outros tantos “sabores” para os olhos, cores estas que sabem explicar pelo conhecimento que têm da natureza electromagnética e policromática da luz e do modo como os corpos lhe absorvem algumas das suas radiações.

Podem, ainda, a partir da sempre apetitosa “tarte de maçã”, fazer a ponte para a gravitação universal que Isaac Newton tão bem explicou no séc. XVII, ou, ainda, aventar que esta era a sobremesa preferida de Albert Einstein e criar assim pretexto para falar da obra de uma das figuras mais ilustres da humanidade, não só como físico, mas também como homem.

No domínio das ciências da Terra, parcela do conhecimento em que profissionalmente me envolvi, tirando a água de consumo corrente ou as chamadas águas minerais ou de mesa, não são muitos os temas que permitam a continuação do exercício que tenho vindo a fazer. O sal do nosso saleiro, cujo uso não é demais acautelar, produzido nas salinas à beira-mar, pouco difere do sal-gema que se explora em Loulé, Matacães (Torres Vedras) e na Fonte da Bica, em Rio Maior. Intercalado nas séries sedimentares da base do Jurássico, este mineral testemunha um tempo, de há cerca de 200 milhões de anos, em que a Eurásia ainda estava unida à Laurência e se começou a esboçar o que é hoje a parte norte do Oceano Atlântico.

O perfumado cozido que se faz nas caldeiras das Furnas, em S. Miguel, num ambiente marcado pelos odores do gás sulfídrico das fumarolas locais, só é possível graças à actividade vulcânica ainda existente nas ilhas açoreanas e à energia geotérmica com ela relacionada, dois temas indesligáveis da dinâmica interna do globo terrestre, hoje bem explanada na Teoria da Tectónica de Placas. Saberes acerca de rochas e sabores com elas relacionáveis, só se forem os possíveis de abordar a propósito dos tão apreciados “nacos na pedra”, posto que há rochas boas para o efeito, como é o caso do basalto, que suporta bem a elevada temperatura a que tem de ser aquecido, outras más, como são o mármore e o calcário, que se decompõem facilmente pelo calor, e outras assim-assim, como é o vulgaríssimo granito.

Mas se optasse por dissertar em torno do gás natural, que consumimos no fogão, ou das matérias-primas com que se fabricam os barros, os vidros, os tachos e panelas de ferro ou de alumínio, os talheres, desde os vulgaríssimos “inox” aos cristofle ou aos de prata, os estanhos, os cristais e as porcelanas e faianças, todos eles objectos das cozinhas e das mesas de pobres a ricos, ter-se-ia de referir os combustíveis fósseis, o quartzo (no vidro), o caulino (na faiança e na porcelana), o bauxito (minério de alumínio) e um nunca mais acabar de minerais e rochas.

Por último, nos domínios da história e da pré-história, da etnografia, da sociologia e da geografia física e humana, são particularmente evidentes as profundas ligações entre os respectivos saberes e os sabores próprios dos hábitos alimentares da humanidade ao longo dos tempos, nas múltiplas sociedades e nas várias latitudes, longitudes e altitudes. Da gordura de foca ou de baleia consumida crua por esquimós, no árctico, à moamba de galinha angolana, passando pelo Eisbein, alemão, pelo caçolet francês, pela paelha dos nossos irmãos ibéricos, pela pizza italiana, pelo caril de Goa, pelo chau min de Cantão e pelo portuguesíssimo cozido à portuguesa, contam-se por milhares e milhares as propostas gastronómicas que não é difícil relacionar com o enquadramento fisiocrático, cultural e social das respectivas comunidades humanas. Uma tal diversidade de sabores, muitos deles patentes nos cardápios dos restaurantes e tascas de todo o mundo, está hoje ao nosso alcance no cada vez maior número de livros de cozinha disponíveis no mercado, nos muitos programas de televisão que nos entram em casa e, ainda, no monitor do nosso computador, graças à universalidade da Internet.

29 de Julho de 2012
A. M. Galopim de Carvalho


[1]  - No Alentejo, dá-se o nome de cocaria a uma série de panelinhas de barro, aconchegadas a um brasido, onde, não há muitos anos, cada trabalhador tinha o seu ”jantar” (refeição do meio-dia) em preparação. Havia sempre uma mulher encarregada de vigiar o conjunto,

2 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Ao professor Galopim de Carvalho





Inflorescência

Oh'campo em cascata, vencem montes
adornados aromas a aragem atende
per libera gente sois do talho serra
na marra distinta que a lança expande.

Voz a face, floresce quão cerne o rijo
o bem conhece da réstia a mora o cativo,
plantara força e a terra eleva-o ao beijo
que germinar é destino a nem desejo.

Foras divino em presente a nascente
trouxera n'alma, qual canção a traga?!
Teu povo a semente viceja assente

aos filhos: a criação a parra a parga
em ser canto do canto o vívido pano
cinta d'este verde manto alentejano!

João de Castro Nunes disse...

No que toca às iguarias
citadas neste trabalho,
eu me rendo às teorias
de Galopim de Carvalho!

JCN

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