domingo, 19 de agosto de 2012

No dia mundial da fotografia...

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.

A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chavena,
são loucos todos os objectos. 
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

Herberto Helder [1]

As feiras de antiguidades e de velharias ou dos dois tipos estão na moda - isto digo eu, que não conheço nem a sua origem, nem a sua evolução, nem a sua expressão. Falo apenas do que me é dado ver, que não é muito: sei que tínhamos no país uma feira regular, grande e famosa na capital, duas ou três outras mais modestas e, penso ser por isso, que se ia a feiras pela Europa em busca de objectos em segunda, terceira, quarta mão. Agora temos por cá muitas feiras com cobres, roupas de enxoval, imagens e pias de pedra, candeeiros, azulejos, ouro e prata, lavatórios, mobílias inteiras ou em peças soltas, vidros e louças, armas e armaduras, instrumentos de lavoura, de sapateiro, máquinas de costura, de café e outras, brinquedos, livros, cartas, postais e... fotografias.

Detenho-me sobretudo nas fotografias: a sépia e a preto e branco quase todas. Um bebé pousado num cenário florido: os cuidados a mãe teria para o vestir daquela maneira, porque era assim que queria recordá-lo, consciente da devastação de que a memória é capaz. Uma família alinhada com o melhor dos fatos, uns sentados outros de pé, adivinham-se os ensaios necessários à pose sincronizada, as indicações milimétricas do fotógrafo. O mesmo para o casal que só passada a boda registou a solenidade junto a uma floreira: ambos saberiam que aquele não tinha sido o momento do enlace, mas passariam a fingir que tinha sido. E o mesmo para o jovem ligeiramente inclinado, de bengala numa mão e cotovelo apoiado numa parte de móvel com entalhes, ou para a rapariga enfeitada com uma gola de peles, sentada num maple, com os olhos ligeiramente desviados da objectiva e mãos com anéis no regaço.

Ainda se encontram as fotografias tipo-passe, as de guerra mas em ambiente sereno, também as de viagem, as de ruas e de casas, de turmas da escola primária e de liceu com meninos ou meninas e professores de bata...

As fotografias podem aparecer avulsas, em montinhos de diversa origem, em quadros e criteriosamente arrumadas em albúns. Os albúns completos e anotados não são fáceis de folhear: as imagens contam uma história pessoal e/ou duma família que provavelmente se extinguiu. Impossível não pensar que tanto aprumo redunda em Nada.

Conheço investigadores e coleccionadores que percorrem regularmente feiras à procura do que querem ou passam a querer, com sorte encontram o tal albúm que conta um percurso de vida ou uma viagem... negoceiam o preço, pagam e correm a deter-se no material, como se fosse um material como outro qualquer: reconstituem o passado, modos de vestir, espaços, edifícios... Tão pouco os tenho visto a perguntarem-se que pessoas eram aquelas ou, então, guardam essa pergunta tão delicada para si próprios...

É evidente que tudo o que acima disse acontece em certas casas comerciais como os alfarrabistas, mas aí parece que as imagens estão mais resguardas, há ainda paredes a protegerem o que resta dos seres que representam. Impressão minha, certamente. Mas usando as palavras de Herberto Helder não consigo afastar a ideia de que as fotografias guardam "um tremor oculto".

[1] In Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, de Eugénio de Andrade (Campos das Letras, página 521).

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