quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A ressurreição de Guilherme Centazzi, segundo P.A.V.

aqui fiz uma breve apresentação de O Estudante de Coimbra, de Guilherme Centazzi. Mas o livro merece mais.

Não pretendo fazer crítica literária, até porque o volume vem enriquecido com uma boa introdução de Pedro Almeida Vieira, que o descobriu e reeditou cento e setenta anos depois, e um longo estudo de Maria de Fátima Marinho. E outros estudos virão, por certo. Mas um simples leitor pode também dizer alguma coisa, para aguçar o apetite de outros leitores.

O livro começa por ser muito interessante em termos históricos. Não um histórico de tratado ou manual mas feito de acontecimentos vividos, ou ouvidos, enfim, conhecidos, o que o afasta de um romance histórico propriamente dito. Sem gastar muito tempo com esses acontecimentos (embora à medida que o enredo se desenrola esta vertente se vá acentuando), utiliza-os com a medida necessária para situar as peripécias do seu romance, trazendo até nós factos que estão de todo esquecidos hoje mas foram, muitos deles, determinantes na altura, conseguindo, ao mesmo tempo, dar-nos a ambiência geral e o sentir dos tempos.

Todas estas ocorrências foram dramáticas para os que as viveram, e como é disso que se faz a matéria dos romances e das crónicas, e como é isso que permite compreender verdadeiramente um conflito e, sobretudo, uma época tão atribulada como aquela, o romance acaba por ser um quadro complexo, dinâmico, colorido, mas muito doloroso do Portugal oitocentista.

Trata-se de qualquer modo de um romance e, como tal, mesmo reproduzindo ou referenciando situações reais não perde a dimensão ficcional delas, que é o que as determina e por onde se revela a qualidade. Ou seja, sem pretender fazer história, acabou por retratar uma época como poucos terão conseguido, e não tendo, ou parecendo não ter grandes pretensões literárias, acaba por produzir boa literatura pelo estilo solto e irreverente como os factos são relatados e o enredo segue o seu caminho.

Acontecimentos e situações onde, note-se, o autor entra com frequência a fazer comentários e considerações morais, à moda dos românticos, mas donde é posto fora por sua própria decisão, quando reconhece que está a exagerar, retomando a narrativa. Com episódios e situações tão depressa dramáticos, como cómicos e com caracterizações umas vezes sintéticas e caricaturais, outras descritivas e mais compreensivas, e tão facilmente produzidos contra os outros como contra si próprio. As sequências de episódios são pois, em geral, rápidas, embora entrelaçadas e com uma linguagem algo cinematográfica, o que lhes dá um tom literário particular e vivo, despretensioso mas não descuidado.

Apesar das tiradas moralista (quase sempre a propósito, com substância e muita atualidade) o livro é fluente, através de uma maleabilidade sintática e lexical elegante e envolvente. Quase sempre segura, sem presunção, e leve, sem ser frívola, é dum realismo que em certas situações e passagens vai ao olho do furacão com grandes precisão descritiva e sínteses acutilantes e oportunas.

Finalmente, Guilherme Centazzi não resiste a um humor vivo e a tiradas inesperadas e por vezes hilariantes, sem lhe faltarem observações acertadas (acertadíssimas) não só sobre nós, portugueses, mas também sobre os espanhóis, os ingleses, os franceses e outros figurões, o que o torna o livro muito ilustrativo e instrutivo.

Guilherme Centazzi faz ainda análises: sobre Portugal e os portugueses e, sobretudo, sobre os governantes do seu tempo, as decisões e os decisores políticos, os gastos públicos, os oportunistas e os vigaristas de todas as épocas – que o poder não os consegue meter na linha, ou que ascendem ao lugares de poder para melhor nos torpedearem impunemente – enfim, os corruptos e os oportunistas em geral, com o que faz um bom retrato do seu tempo. E, pelos vistos, também do nosso...

João Boavida

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