quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Passividade, consumismo e ingenuidade crítica

Parece que, recentemente, uma criança de dois anos e pouco estava ao pé da sua mãe que trabalhava num campo agrícola e, de repente, desapareceu. Foi chamada a polícia e certamente comunicado o acontecido a um canal de televisão: uma equipa apareceu muito afadigada, empolgada e pesarosa para dar notícia e “acompanhar o caso”. Vi num telejornal, em directo ou como se fosse em directo, o que se segue.

Passados dois dias após o desaparecimento, a mãe atendeu um telefonema, o microfone da estação foi-lhe posto junto à boca para que tudo o que dissesse ficasse gravado; deduzi que alguém lhe comunicou que o seu filho havia sido achado. Desligado o telefone, a mãe correu na direcção que lhe tinham indicado, jornalista e câmaras acompanham-na. Avistou-se alguém com a criança, que logo a passou à mãe, esta em pranto, primeiro baixinho e depois alto, pegou-lhe ao colo e abraçou-a profundamente… a câmara de filmar girava, girava em volta da mãe e do filho, apanhando todos os ângulos, todas as emoções; o menino, com ar atónito, curioso, seguia o girar da câmara… a jornalista não se calava, especulava sobre o que teria acontecido, inquiria uma vizinha para que ela dissesse se viu alguém estranho, se a criança tinha sido desviada, raptada, molestada mas a vizinha apenas disse saber de alguém que teria visto qualquer coisa. Ainda assim, excelente! Ficou a suspeita que justifica a continuação da "história de vida" em próximos telejornais. Mãe e filho dirigiram-se para um carro, a jornalista correu para eles e apanhou-os a sentarem-se no bando de trás, ficou a saber-se que iam para o hospital, que a mãe é solteira, que veio de África antes do filho nascer, que o pai não o conhece…

Lazar, num livro muito interessante intitulado Escola, comunicação, televisão (publicado entre nós em 1989 pela Rés Editora), interroga este tipo de desvario, no caso (pseudo) jornalístico: porque aceitamos que alguém exponha a nossa privacidade e intimidade? Acrescento: porque aceitamos que isso aconteça, de modo particular, em situações humanas extremas, como suponho que é a que acima contei?

Como diz Carlos de Sousa Reis, que em Portugal se tem dedicado a esta questão, trata-se de uma combinação de passividade, consumismo e ingenuidade crítica que afecta a nossa sociedade.

2 comentários:

AMCD disse...

Porque aceitamos que alguém exponha a nossa privacidade e intimidade em situações extremas humanas?

Não aceitamos!

Nessas situações estamos nus, desarmados e frágeis.

E podemos ser um corpo tombado que se esvai em sangue ou um corpo morto num campo de batalha, ou um corpo doente na cama dum hospital.

Nessas situações, como disse, estamos nus e desarmados. É quando eles chegam com as câmaras. Lembram-se da criança moribunda cuja morte o abutre aguardava?

A linha que limita a liberdade de informação é mil vezes pisada. A dignidade do ser humano também.

Joachim disse...

O "jornalismo" hoje em dia é assim.
O não assunto pseudo emotivo como guia.
Para encher o olho e para não falar de coisa sérias.
Patrão manda.

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