segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Dois pensamentos sobre a guerra

 


Post de Eugénio Lisboa: 

 O HERÓI É O HOMEM QUE FAZ O QUE PODE. 
 Romain Rolland 


 EM TEMPOS DE PAZ OS FILHOS ENTERRAM OS PAIS. EM TEMPOS DE GUERRA OS PAIS ENTERRAM OS FILHOS. 
 Heródoto 

 NOTA: O primeiro pensamento, o de Romain Rolland, foi escolhido, a pensar no Presidente da Ucrânia, o qual tem feito o que pode e até o que não pode.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

NOVOS LIVROS DA GRADIVA

 

NOVIDADES DE FEVEREIRO  |  já disponíveis
Lonesome, vol. 1 - A Pista do Pregador
Yves Swolfs

 

Kansas, Janeiro de 1861.

Das planícies cobertas de neve do Middle West às ruelas sombrias de Nova Iorque, a a demanda de vingança e de identidade conduzirá o cavaleiro anónimo a um confronto de proporções dantescas, no limiar do sobrenatural. Uma nova colecção de westerns da Gradiva BD.

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aqui as primeiras páginas.

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O Guardião - Agente Secreto do Vaticano, vol. 4: A Persistência do Passado
François Boucq e Yves Sente


«Há doze guardiões em todo o mundo, meu filho. Nem mais um. Agem sempre sozinhos e não se conhecem uns aos outros. Pedimos-te que te tornasses Trias, filho, porque o terceiro Guardião acaba de nos deixar...»
 

Vince, o terceiro Guardião, persegue os dirigentes da «Ordem da Renovação do Templo» e tenta opor-se aos seus planos interessando-se pelas atividades do cardeal Dri Origio. Para isso, tem de mergulhar nas páginas mais negras da História… e da sua própria vida!

Um novo volume da colecção O Guardião - agente secreto do Vaticano.

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aqui as primeiras páginas.
 

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E NOVAS REEDIÇÕES  |  já à venda

O Sonhador
Ian McEwan


«Melhor do que qualquer outro escritor da sua geração, [Ian McEwan] consegue mostrar-nos não só como funciona a nossa mente, mas também o que ela realmente contém.»

Times Literary Supplement

 

Como seria estar dentro do corpo de um gato, apanhar um ladrão em flagrante, desmascarar o rufião da escola ou tornar a família invisível? Peter Fortune é um rapaz de dez anos que pensa nestas coisas e vive algures entre a fantasia e a realidade. Mas os adultos não o compreendem nem imaginam as coisas fantásticas que lhe passam pela cabeça e, por isso, os seus sonhos só lhe trazem problemas.

O Sonhador é a primeira obra de Ian McEwan no domínio da literatura juvenil, mas agradará igualmente a jovens e adultos. As histórias extraordinárias que compõem o livro celebram a imaginação humana, e as ilustrações de Anthony Browne, artista várias vezes premiado, permanecerão também na memória dos leitores muito depois de terminada a leitura.

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O Drama de Magalhães e a Volta ao Mundo Sem Querer
Luís Filipe F. R. Thomaz

 

Um trabalho admirável daquele que, na área, é hoje, porventura, o investigador português com maior prestígio internacional. Em O Drama de Magalhães e a Volta ao Mundo Sem Querer o historiador Luiz Filipe Thomaz sublinha que Fernão Magalhães é, e a justo título, o mais conhecido e celebrado navegador da história universal. O seu nome está ligado a uma façanha inédita — a circum-navegação do Globo terrestre (1519-1522) — que, por ironia do destino, apenas teve lugar porque ele pereceu no decurso da viagem que planeara. Foi praticamente em desespero de causa que a nau Victoria se decidiu a empreender a jornada de regresso, de Maluco a Espanha, pela rota portuguesa do Cabo, transformando assim em volta ao Mundo o que se previa ser uma viagem de ida e volta pelo Pacífico. O mérito de Magalhães está, por um lado, em ter descoberto uma das passagens que ligam o Atlântico ao Pacífico, provando assim a circum-navegabilidade da Terra; mas está sobretudo em ter intuído que o regime de ventos daquele oceano devia ser idêntico ao do Atlântico, o que lhe permitiu escolher a rota certa e assim atravessar à primeira tentativa a sua imensidão, até aí inexplorada.

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O Que É a Arte?
Lev Tolstói


De um autor enorme, conhecido sobretudo como romancista, esta é uma obra influente de reflexão sobre a natureza da arte, intelectualmente provocadora e destemida, só ao alcance de alguém com a coragem e a honestidade intelectual de Tolstói. Um conjunto de reflexões que não perdeu actualidade, pois o debate permanece aceso: afinal, o que pode ser considerado arte? As obras de, por exemplo, Damien Hirst serão arte? Quem as rotula como tal? Com que fundamento? Tolstói faz estas mesmas perguntas, e responde-lhes, relativamente aos artistas seus contemporâneos.

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Introdução à Filosofia em Banda Desenhada
Michael F. Patton e Kevin Cannon

 

Com o interessante e divertido Heráclito como nosso guia, viajamos pelo rio tortuoso da filosofia, descobrindo pensadores influentes de quase três milénios do pensamento ocidental testemunhando grandes debates sobre tudo, da ética ao conceito do eu e à natureza da realidade.
Combinando a arte lúdica de Cannon e a prosa instrutiva e bem-humorada de Patton, este livro coloca a diversão ao serviço da busca de verdades fundamentais. Uma obra de leitura simples e clara, com a qual se aprende.


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É Um Mundo Mágico
Bill Watterson


«É um mundo mágico, Hobbes, velho amigo... vamos explorar!».

Finalmente o relançamento há muito aguardado de um dos álbuns da genial criação de Bill Watterson que marcou e continua a marcar leitores de todas as idades. As tiras do irreverente e desconcertante Calvin e do seu inseparável tigre, cuja profundidade, acutilância e humor se renovam a cada leitura.


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Alexander Dovzhenko- Zemlya 





Entrevista com Desidério Murcho | Como pensar com #06

Fissão versus Fusão Nuclear

Hoje mais uma edição da minha rubrica na Rádio Observador:

https://observador.pt/programas/ciencia-pop/fissao-nuclear-vs-fusao-nuclear/

INTERPELAÇÃO AOS POETAS PORTUGUESES SILENCIOSOS PERANTE A CATÁSTROFE

 POEMA DE EUGÉNIO LISBOA:


1

Mas que merda de poetas,

de liras enferrujadas,

pouco vigor nas canetas

e de iras mal mijadas!

2

Mas que vergonha de gente,

tão indigna de Camões,

de tesão deficiente

e falta de palavrões!

3

Que gente tão sem tomates

(mais são castanhas piladas!)

maricas, tatibitates,

com as tusas congeladas!

4

Onde está a vossa Musa,

bem canora e eloquente,

que ao bandido que abusa

faz frente intransigente?

5

A vossa Musa morreu?

Coragem já não existe?

A honra esmoreceu?

A lira já não resiste?

6

Gente indigna de Bocage,

cuja lira abissal

envigora o ultraje,

tal louco Gomes Leal!

7

À guerra que tudo esmaga,

oponde a lira imortal,

que ao invasor embarga

o seu avanço letal!

8

Acordai a vossa lira,

apodrecida no sono

e instigai-lhe a ira,

que não fique ao abandono!


Eugénio Lisboa

 

 

COMO AUGUSTO SE TORNOU E INSISTIU EM SER MESTRE-ESCOLA

A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Dinis compõe marcantes retratos do "professor das primeiras letras" no Portugal rural do século XIX. Retratos que têm por pano de fundo o "atraso cultural em que o povo estava mergulhado" (Abreu, 2010, p.39), e uma especial vulnerabilidade a vontades políticas, tanto da província como da capital. 

Ciente da importância da educação escolar, o escritor "projecta repetidamente esse lamento, e apreensão" (Abreu, 2010, p.39), afastando-se, no entanto, da falaciosa ideia, tão cara ao Iluminismo, de que tal educação é garantia de formação do carácter e que só ela o pode fazer.

Centra essa reflexão na personagem de Augusto, o jovem que, pela sua férrea vontade, se fez professor. Mostra tenacidade e esperança na educação, mas com a fina consciência dos "espinhos da profissão". 

O desnorte a que, mais uma vez, somos conduzidos pela sistemática imposição de discursos sobre a escola e o conhecimento, a docência e a sua ética, exige que encontremos portos seguros de pensamento. Alguns deles estão na boa literatura... Eis um exemplo saído da mão de Júlio Dinis:

"Meses depois morria o velho mestre-escola da aldeia. Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquele lugar, que já há muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por que ele o obtivesse. O conselheiro quis tirar-lhe da ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não ter ambições era indício de uma profunda doença moral; que a posição a que ele aspirava equivalia a uma sepultura estreita a que se acolhesse vivo. 
Augusto persistiu, porém, no intento, e o conselheiro empenhou-se por ele em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completara dezanove anos, e Augusto foi, por conseguinte, admitido a concurso para tão pouco disputado lugar e provido nele por três anos. O conselheiro, a quem não fora impossível obter-lhe despacho vitalício, quis ver assim se, no fim dos três anos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada carreira, e, de propósito, o fez despachar temporariamente (...).  
Mas, ao fim de três anos, Augusto, apesar de por experiência conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho (...). Desta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influências da localidade, as quais ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto."
______________
Abreu, Carmen da Conceição da Silva Matos (2010). Júlio Dinis - Representações romanescas do corpo psicológico e social : influência e interferência da literatura inglesa. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Dinis, Júlio (1990). A morgadinha dos Canaviais. Porto: Livraria Civilização, pp. 79-80.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Padre António Vieira sobre a guerra (1668)


“É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: - o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”

P. António Vieira (1668) 

SONETO MUITO GAUCHE PARA USO DOS OPRESSORES DO MOMENTO

 Soneto de Eugénio Lisboa:


Os ditadores usam a cartilha

normalmente usada por quem oprime.

O opressor percebe bem que trilha

inocentes -  e que nada o redime.

 

A razão do opressor é a força,

já que outra razão não tem.

Porém a força a razão reforça

e a razão faz da força seu refém.

 

A sabedoria dos opressores

é o contrário de saber viver:

o uso constante dos seus terrores

 

é sementeira que fará colher

os tais destemidos frutos da ira,

que atira os restos da força à pira!

 

Eugénio Lisboa


Nota do autor: quem não tem cão caça com gato; quem não tem espingarda dispara soneto mal amanhado.

 

Exposição “O Laboratório de Física da Universidade de Coimbra: 1900-1975”


No ano em que se cumprem 250 anos da criação do Gabinete de Física Experimental comemoramos a efeméride com uma mostra sobre a sua memória colectiva. Queremos realçar 75 anos de história salientando 29 professores e investigadores que fizeram o doutoramento até 1975 ou que foram catedráticos do grupo da Física durante o século XX.

Esta iniciativa, inserida na 24ª semana cultural da UC - www.uc.pt/semanacultural, compõem-se da uma exposição biográfica “O Laboratório de Física da Universidade de Coimbra: 1900-1975”, que decorrerá no Departamento de Física da UC (piso 0) / Rómulo - Centro Ciência Viva da UC, e cuja inauguração será no dia 2 de Março, pelas 17H30.xxx Paralelamente irá decorrer um ciclo de palestras sob o título “O Laboratório de Física – Ontem, Hoje e Amanhã”. Este ciclo terá lugar todas as Quartas-feiras do mês de Março, pelas 18H00, no Rómulo - Centro Ciência Viva.


 • 2 de Março - Carlos Fiolhais: A investigação em Física na UC no final do século XX. 

• 9 de Março - Constança Providência: Departamento de Física: presente e futuro.

 • 16 de Março - Augusto Fitas: Guido Beck, um físico em fuga, que fez obra nas universidades portuguesas 

• 23 de Março - Gilberto Pereira: O Laboratório de Física entre a República e a Liberdade (1911-1974).

 • 30 de Março - Décio Martins: António dos Santos Viegas: 50 anos de Física em Coimbra.

Sobre o erro no ensino

A imposição, rápida e certeira, de uma sedutora "narrativa" da educação escolar da qual decorre um modelo "pedagógico" não menos sedutor, tem consequências evidentes a diversos níveis: na reformulação do currículo, na organização do ensino, no direccionamento da aprendizagem, na reflexão a que os professores podem e devem submeter a sua acção profissional.

No respeitante a este último aspecto, tais narrativa e modelo imprimem um só sentido à reflexão, aquele que é estabelecido pelas entidades que os conceberam e impõem. Restringem-se as possibilidades de ponderação da acção e, em consequência, de tratamento do erro.

Sobre o assunto, escrevi um texto para o Portal dos Jesuítas (ver aqui).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O MUNDO SEGUNDO JIM


Meu último artigo no JL:

Existe no Reino Unido uma longa tradição não só de criação de ciência, mas também de comunicação de ciência. No século XIX Michael Faraday, que dirigiu a Royal Institution de Londres, para além dos livros populares que escreveu sobre física e química, como A História Química de Uma Vela, criou uma série de palestras públicas de ciência, as Christmas Lectures, que chegaram aos dias de hoje. Em grande contraste com o que se passa em Portugal, a BBC, rádio e televisão pública britânica, dá uma forte atenção à ciência, investindo em documentários, entrevistas e debates sobre temas científicos.

Um dos comunicadores de ciência mais conhecidos actualmente é o físico teórico Jim Al-Khalili, autor do livro O Mundo Segundo a Física, que acaba de sair entre nós na Temas e Debates e Círculo de Leitores, sempre atenta aos novos ensaios de ciências. O nome do autor soa a árabe, porque é mesmo árabe. Apesar de ser cidadão britânico, Al-Khalili, que hoje tem 59 anos – veio para o Reino Unido aos 16 – nasceu em Bagdade, no Iraque, de pai iraquiano (engenheiro da Força Aérea daquele país) e mãe inglesa (bibliotecária). O seu nome completo é Jameel Sadik Al-Khalili, mas podem-lhe chamar Jim.  Fez o doutoramento em Física Nuclear Teórica em 1989 na Universidade de Surrey, depois de se ter licenciado nessa universidade, num condado do sudeste inglês que confina com a região metropolitana de Londres. O bom filho à casa torna: depois de ter feito um pós-doutoramento no University College de Londres, Al-Khalili voltou para a sua alma-mater, onde hoje é professor de Física e também de Comunicação de Ciência.

O seu primeiro livro, sobre buracos negros e buracos de minhoca, é de 1999, e desde então a sua pena não tem parado: O Mundo Segundo a Física  (Temas e Debates e Círculo de Leitores) é o seu 13.º livro e para Abril próximo já está anunciado o 14.º, The Joy of Science, tal como o último saído originalmente do prelo da Princeton University Press. A obra agora saída em português é a segunda do autor publicada no nosso país, sendo a primeira um volume colectivo, ricamente ilustrado, sob o título O Núcleo: Uma Viagem ao Coração da Matéria, com a participação da física portuguesa Teresa Peña, que a Porto Editora publicou em 2004.

O novo livro, de 350 páginas, apresenta um excelente resumo da física contemporânea dirigido em especial aos leigos sobre o estado actual da física moderna. O livro usa letra que se vê e tem um útil índice remissivo (só é pena que a bibliografia não indique os títulos que já estão disponíveis na nossa língua). Logo a abrir, o autor declara que se propõe fazer nada mais nada menos do que «uma ode à física». E explica a razão: «Apaixonei-me pela física quando ainda era adolescente.» Os capítulos 2 e 3 expõem o essencial das teorias da relatividade de Einstein, restrita e geral, enquanto os capítulos 4 e 5 expõem o essencial da teoria quântica de Bohr, Heisenberg, Schrödinger e outros, o ramo da Física no qual o autor se especializou: começou por trabalhar nas propriedades de núcleos atómicos exóticos e hoje trabalha em biologia quântica, isto é, tenta explicar os fenómenos da vida com base na física fundamental. O capítulo 6 trata de um «velho» problema da Física: «Por que razão o futuro se distingue do passado?» E o seguinte conta as tentativas – até agora incompletas – de fazer uma «teoria de tudo», conciliando a teoria da relatividade geral com a teoria quântica. Os três últimos capítulos, 8 a 10, tratam do futuro da física (que enfrenta grande enigmas como a energia escura e a matéria escura), a utilidade da física (onde aborda o campo emergente da computação quântica, que pode vir mudar o mundo) e o modo de pensamento de um físico (há, de facto, uma maneira de pensar o mundo segundo a física). Termina, em grande, com um merecido elogio (sei que sou suspeito!) à física: «A condição humana é ilimitadamente frutuosa. Inventámos a arte a poesia; criámos sistemas religiosos e políticos; construímos sociedades, culturas e impérios tão ricos e complexos que é impossível condensá-los em qualquer formula matemática. Mas, se quisermos saber de onde viemos, onde foram formados os átomos dos nossos corpos — o «porquê» e o «como» do mundo e do universo que habitamos, então a física é a via para uma verdadeira compreensão da realidade. E, com essa compreensão, podemos moldar o nosso mundo e o nosso destino.»

Al-Khalili não se fica pela palavra escrita, pois também é ágil com a palavra falada e sabe que uma imagem pode valer mais do que mil palavras. Tem feito inúmeros programas de rádio, alguns dos quais entrevistas aos seus pares como Richard Dawkins, Martin Rees, Brian Cox e os veteranos Sir David Attenborough (95 anos) e James Lovelock (o autor da «Hipótese de Gaia», que tem uns incríveis 102 anos). Além disso, desde 2004, tem dirigido ou participado em documentários televisivos, começando em 2004 com O Enigma do Cérebro de Einstein. Tem também escrito com frequência para a imprensa. Escreveu, tal como de resto eu próprio durante um rol de anos, uma crónica regular para a Gazeta de Física, o órgão da Sociedade Portuguesa de Física.

Os seus trabalhos têm conhecido um enorme sucesso. O novo livro, tal como os outros anteriores, está escrito de forma bastante acessível. Comunica, tal como os seus programas de rádio e televisão, a paixão pela ciência. Não admira, por isso, que tenha sido premiado várias vezes: ganhou o prémio Faraday da Royal Society, a medalha Kelvin do Instituto de Física e a medalha Stephen Hawking de Comunicação de Ciência, para além de vários títulos honoris causa em universidades britânicas. Recebeu a Ordem do Império Britânico, pelos seus serviços à ciência, e foi eleito sócio da Royal Society. Presidiu à associação Humanists UK, que tem um cunho ateísta. Conforme o próprio Al-Khalali afirmou, apesar de ter um pai muçulmano e uma mãe cristã praticante, nasceu «sem qualquer osso religioso».

Recomendo O Mundo Segundo a Física a todos os que querem saber como vai a física. Vai bem e recomenda-se! Tem um grande passado atrás de si e os problemas que enfrenta actualmente apenas querem dizer que tem um grande futuro à sua frente. Talvez o melhor ainda esteja para vir.

DAVID MOURÃO-FERREIRA 95 ANOS


Novo texto de Eugénio Lisboa:

David Mourão-Ferreira faria hoje (24 de Fevereiro), se fosse vivo, 95 anos Foi um dos mais notáveis professores, conferencistas, poetas, narradores, ensaístas, dramaturgos e divulgadores de poesia universal com que o nosso meio cultural contou. E faço questão de sublinhar que me não estou apenas a referir ao século XX. Os nossos poetas mais recentes tendem a fazer-lhe boquinhas e não vou fingir que não suspeito qual seja a razão disso: o profundo conhecimento que ele tinha – e eles não - da grande poesia universal, o seu profundo mergulho, com mão diurna e nocturna, na grande arte de versificação, exibindo uma oficina poética do mais alto gabarito, uma invulgar associação de inteligência, cultura, sensibilidade e técnica, uma fulgurância analítica que nos legou algumas das mais aliciantes análises de outros poetas, como Cesário ou Pessoa, entre muitos outros.

Sobre o fascínio provocado pelas suas aulas, na Universidade de Lisboa e em muitas outras por esse mundo fora, os testemunhos são inúmeros. O mesmo se poderia dizer das suas aliciantes conferências. Na minha qualidade de conselheiro cultural da embaixada portuguesa em Londres, promovi a ida lá de inúmeros professores e escritores portugueses e tive-os sempre de inigualável qualidade. Mas nunca nenhuma das conferências por eles produzidas atingiu o altíssimo nível das que proferiu Mourão-Ferreira, nem o poder de mobilização que a sua aura intelectual provocava: uma conferência, uma aula, um seminário dele, em Londres, em Oxford, em Cardiff, ou noutro sítio qualquer, convocava salas cheias a deitar por fora, de ouvintes fascinados, a muitos dos quais talvez se abrissem pela primeira vez as portas para a sedução da literatura. David Mourão-Ferreira foi um dos mais sedutores mestres de ensinar, de inspirar e de ler, que em toda a minha vida conheci Além disso, foi também, por acaso, um dos nossos maiores escritores.

Eugénio Lisboa

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A noite expira e o pai está em alvoroço

 

A noite expira e o pai está em alvoroço. Conta as notas e sobe ao meu quarto. Depois, descemos a ladeira, no fim de agosto. Vamos sob o aroma das uvas silentes; vamos com as gotas do nevoeiro caindo dos olhos dos cardos; vamos com os caminhos de baba dos caracóis arrastando-se nas parras; vamos com o relógio suspenso nas sete e meia da manhã, a hora do silvo do comboio que passa por entre uvas, a este, e por entre pinhais e campos de milho, a oeste; vamos com as revoadas das andorinhas no alto dos postes de tensão. Acordam, de fronte para nós e no interior dos carros, homens que passam para as praias deste domingo para desfrutarem as últimas vagas de sol. A estrada sinuosa está imobilizada ao fundo da cidade. Os postes de iluminação iluminaram, durante a noite, a rua erma. O eucalipto e as heras verdes, na margem da estação, ameaçam o céu inexpugnável. Burilamos a brita e entramos na sala do guiché da estação, onde o pai diz a um adido sorumbático e tresandando a óleo queimado: – Bom dia, senhor. Um bilhete e meio para a Pampilhosa do Botão. O homem esbugalha os olhos pretos e as pestanas brancas, mira-me de alto-a-baixo e, após um breve instante de silêncio, diz: – Não tem consigo o bilhete de identidade do seu neto? – Olhe que nem me passou tal coisa pela lembrança! Sabe como é, as pressas, viemos a pé da Póvoa!Ó amigo, desta vez passa, mas para a próxima veja lá se traz o bilhete consigo! As moedas giram e os bilhetes giram, o pai arrecada-os na carteira, desculpando-se de que nunca mais voltará a acontecer tal coisa, e, depois, sentamo-nos sob os ponteiros negros de um relógio de parede redondinho e gigante como uma lua. O comboio de oeste estaca fragorosamente na linha e um casal de idosos cheio de cautelas, pé ante pé, desce os degraus metálicos, lamuriando-se de que a idade é um fardo, que era assim a vida, que a cabeça bem quer, mas as pernas já não aguentam. Uma bandeira vermelha enrola-se no braço de um ferroviário, na travessia, e, no lado oposto, um outro fato azul manobra a agulha para o comboio que chegará daqui a nada de Coimbra. Subimos, cautelosamente, para o comboio, absorvendo o ar da manhã, e acomodamo-nos nos bancos surrados. Entretanto o comboio de este chega e detém-se ao lado do nosso. Arrancamos, por fim, preguiçosamente, aos soluços, das caieiras de silvas, nos fornos de cal, e seguimos o silêncio das uvas rumo à estação da Pampilhosa do Botão.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

"SOB O CHARME DE PORTUGAL": NA BIBLIOTECA JOANINA DE COIMBRA

«Sous le charm du Portugal. Visages et Paysages»  (Plon, Paris, 1931) é um livro que comprei num alfarrabista da autoria de Lily Jean-Javal (1882-1958; na figura), uma judia francesa viúva de Jean Laval,  capitão francês que morreu na Primeira Guerra Mundial. Visitou Portugal com uma amiga finlandesa deixando este livro de viagem com fotografias. Transcrevo aqui a sua visita à Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra (minha tradução), guiada pelo seu director, o Prof. Joaquim de Carvalho. A capa da Bíblia de Abravanel que aqui se fala (pormenor em cima) serviu para ilustrar a capa de outro livro, com um texto de M. Jean-Laval,  sobre  o Cap. Artur de Barros Basto, um famoso judeu português, que reavivou a memória dos marranos do norte de Portugal («La renaissance du judaisme au Portugal au XXe siàcle. Artur de Barros Basto, Abraham Issrael Ben-Rosh")

«Entramos no santuário dos livros, um tesouro de que M. de Carvalho é o guardião. Deslumbramento: três salas de uma decoração faustosa, toda uma chinoiserie do séc. XVIII, representando pássaros, pagodes feéricos. As galerias, ornadas de encadernações semelhantes a jóias do Renascimento, são sustentadas por pilares com forma piramidal  e marcadas por escadas douradas e pintadas. Tudo desemboca apoteoticamente no retrato de D. João V, o Luís XIV português, que reinou de 1706 a 1750. O seu filho D. José I teve como ministro o ilustre marquês de Pombal, que deu `estatutos à Universidade. Admiramos uma mesa em madeira do Brasil. "Gostaria, diz M. de Carvalho, que vissem esta biblioteca com o reflexo do sol poente. É particularmente fascinante."

Passamos diante de uma espécie de nicho, uma cela monástica que convida ao trabalho e à meditação, Pela janela estreita, apercebemo-nos de uma cruz recortada numa montanha. Os livros mais raros estão expostos numa outra sala; uma Bíblia dos sécs. XII ou XIII é a principal glória. É uma obra prima de paciência saída das mãos de alguns semitas, que viveram sem dúvida no norte de África. Com que amor e com que arte foram traçados esses caracteres hebraicos! Este livro pertenceu no séc. XV a um judeu ilustre, Isaac Abrabanel, exegeta e filósofo bíblico, amigo e conselheiro do rei D. Afonso V e da nobreza.  Constituiu um traço de união entre o judaísmo e o Estado, numa época que marca o apogeu da civilização semita em Portugal e onde se afirma a repercussão da civilização ocidental no judaismo. Partidário de D. Fernando,  duque de Bragança, e e da sua família, viu-se comprometido numa conspiração contra D. João II, sucessor de D. Afonso V, e por isso obrigado a refugiar-se em Castela  e depois condenado por contumácia à forca. Ministro dos reis católicos ainda serviu, durante oito anos, de "escudo e baluarte ao judaísmo ameaçado", beneficiando dos favores de que gozava na corte, mas depois teve de fugir na época da expulsão total dos judeus na Península Ibérica. Chegou a Itália com o seu filho Leão Juda Abravanel, também chamado Leão Hebreu Filósofo. Este tinha nascido em Lisboa e tinha feito estudos científicos e literários  brilhantes, acumulando numa só pessoa as aptidões de um médico e de um escritor. Tinha acompanhado o seu pai em Espanha, deixando o seu filho com um ano em Lisboa, onde o julgava em segurança.  O rei D. Manuel I, apoderando-se da situação, fê-lo baptizar á força. Este acto de violência inspirou a Leão Hebreu uma obra patética onde exala a sua dor e onde conta as infelicidades que caíram sobre ele desde a sua juventude, assim como as suas peregrinações pelo mundo. O poema intitula-se Elegia sobre as Vicissitudes dos Tempos. É também autor de Diálogos do Amor (Dialoghi di Amore), uma obra filosófica impressa pela primeira vez em Roma em 1535, que foi traduzida em latim, espanhol e hebreu. Existem duas traduções francesas, uma de Ponthius de Thiard, historiógrafo do rei Henrique II, e outra de Denys Sauvage dedicada a Catarina de Médicis (Lyon, 1558). O sucesso de Leão Hebreu é devido em parte ao seu estilo bajulador e penetrante. Os leitores cristãos eram edificados por estes piedosos diálogos, não podendo imaginar que Leão tinha permanecido judeu, embora ele o indicasse formalmente nesse mesmo livro. Leão Hebreu parece que também escreveu uma obra intitulada Coeli Armonia.

M. de Carvalho consagrou páginas inéditas aos Abravanel pai e filho. Além da sua tese na Sorbonne que tem por titulo Leão Hebreu filósofo; publicou recentemente uma carta inédita de Isaac Abravanel. "Essa carta, diz o comentador, testemunha um profundo sentimento do eterno, de uma resignação magnífica à vontade suprema, e também uma rara cultura literária, Isaac Abravanel lia Azurara, o cronista do Infante D. Henrique, conhecia Sócrates através de Platão, Aristóteles, Séneca e tinha assimilado as ideias contemporâneas."

Esta digressão talvez nos tenha levado para lá da preciosa Bíblia, mas não para lá do mundo dos livros...

Mostrou-nos em seguida um primeiro incunábulo português, e uma série de mapas ilustrados com caravelas, e paisagens que nos transportam para lá dos mares, mapas quase todos eles executados a instância de D. João de Castro, vice-rei da Índia no séc. XVI. Missais principescos, ainda uma outra Bíblia famosa, o Livro do Mundo, publicado em Mainz em 1462, decorado de virgens que parecem ter sido esculpidas em relevo.»



DESPORTO E CULTURA Ou A DOENÇA INFANTIL DO FUTEBOL

 


Novo texto de Eugénio Lisboa:

A cultura do futebol actualmente em vigor infecta as mentalidades e os lugares públicos, fanatiza e estupidifica as pessoas e acobarda aflitivamente os políticos. Quase nenhum político, intelectual ou artista em evidência se atreve a dizer que não gosta de futebol ou, mais simplesmente, que lhe repugna toda esta horrorosa atmosfera e cultura futebolísticas que nos submergem e nos sufocam, onde quer que nos encontremos. Ressalvo um político português que, um dia, interrogado sobre por quem torcia, num qualquer desafio de futebol, que se ia disputar, teve a coragem de responder, com corajoso e saboroso acinte, que o assunto não lhe interessava minimamente. Refiro-me a Manuel Maria Carrilho.

Hoje, como no tempo cinzento do salazarismo pelintra e acomodatício, “ser do futebol”, “interessar-se” pelo futebol – é estar do lado seguro, é ser “da malta”, é ser de confiança, é…merecer o voto das maiorias. Quanto mais boçal, quanto mais futeboleiro, quanto mais primário, em termos de se “aquecer” fanaticamente por um clube qualquer, tanto mais simpático e “porreiro”, tanto mais merecedor de uma carreira política ascendente e bem recheada.

O futebol infecta os lugares públicos (por altura do mundial, não se conseguia entrar num café, restaurante ou pastelaria, para fins de um cavaco pacífico e apetecido, sem se ter os ouvidos trespassados pelos orgasmos histéricos de um relator de futebol), devora fracções pantagruélicas de jornais, revistas e noticiários de televisão, promove a megaconstrução de estádios obscenamente desnecessários à realização de um Euro 2004, estádios, repito, de que nem o país nem a competição precisam e que são pagos, injustificadamente, com o dinheiro do contribuinte. O futebol faz tudo isto e muito mais: polui ruas, estradas, praias, aldeias e cidades, devora orçamentos, gera o fanatismo, a competição mais doentia e até o ódio e a violência. Dizia Orwell, que dominou como um mestre a arte da objectividade fria, que “o desporto à séria nada tem que ver com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.” Apetecer-me-ia corrigir: menos o tiroteio, mas com acréscimo de uma ou outra facada e de um ou outro murro violento a comporem o quadro. Não o desporto sério, mas o desporto à séria (o contrário de sério), perpetrado pelos que, ao profissionalizá-lo, o corromperam nas próprias raízes. O futebol profissional arrasa tudo, corrompe tudo: praticantes e espectadores: “O futebol é como a guerra nuclear”, dizia Frank Guifford, “ – não há vencedores, há apenas sobreviventes.”

No tempo de Salazar e parafraseando uma proclamação célebre dos marxistas, dizia-se que o futebol era o ópio das massas. Salazar não passava afinal de um dinky toy, de um inepto aprendiz de feiticeiro, ao lado dos promotores do opiário de hoje.  Dizia Leibniz, um filósofo que provavelmente não gostava de desporto violento, que a educação pode tudo – até faz dançar os ursos. O futebol, tal como hoje existe e é promovido e venerado (do mais baixo trabalhador ou funcionário ao mais alto dirigente) não faz dançar os ursos mas transforma seguramente os homens em ursos. O verdadeiro desporto não deve ser convertido em “espectáculo” porque não foi concebido como tal: não é para se ver, é para se praticar. Lembrava Sílvio Lima que as épocas de ouro do desporto foram aquelas em que o espectador foi banido do estádio – ou só lá ia, em raríssimas ocasiões, para ser encorajado a praticar sempre o que vira uma vez. O futebol profissional é a corrupção deste verdadeiro espírito do desporto.

O futebol é hoje uma das mais eficazes e mais sinistras fábricas de fanáticos. E observava Huxley que, “definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que sobrecompensa conscientemente as suas dúvidas secretas.” O futebol é pois essa fábrica de fanáticos que, aquecidos à mais elevada temperatura e gritando em excesso, duvidam, no fundo e secretamente, de si, do seu clube, da sua selecção nacional e do seu país. Por isso se compensam, se sobrecompensam, obscenamente, afirmando, até à caricatura (e ao ódio), a excelência de tudo em que, afinal, não sabem bem se acreditam. Quem se lhes opõe ou duvida de tais certezas é inimigo – porque lhes abala o edifício de (in)certezas.

A proeminência histérica e obsessiva deste “desporto-rei” imposta aos jovens desde a mais tenra idade infecta-os no que há de mais delicado e sensível: a sua capacidade de definirem valores. O que o futebol – a cultura futebolística em vigor – promove é a maior inversão de valores que a toda uma juventude se pode infligir. A competição violenta e parcial, a inveja, o ódio, a gabarolice vácua e projectada em intoleráveis decibéis, a grosseria triunfalista não são valores que uma sociedade civilizada apadrinhe e promova. Mas é ver o ar de babadice cúmplice e carinhosa que os políticos adoptam e os pivots televisivos promovem (com um sorriso doce, anunciando que o  noticiário chega, por fim, ao futebol…) O tempo televisivo, sempre tão precioso e tão caro, dizem eles, passa a ficar infinitamente disponível, quando se trata de futebol. Nem a Grande Informação (mais a Judite de Sousa) acharam que fosse demais consagrar uma edição inteira aos altos e baixos da equipa portuguesa na Coreia do Sul – com minúcias, com requintes de análise quase proustiana, quase bizantina, quase rendilhada, sobre o nascimento, vida e morte de jogadores, treinadores e árbitros. Quando achará a Grande Informação ser importante projectar, num momento nobre do seu canal, nomes grandes da arte, da literatura, da ciência, da música, da filosofia…(que os temos!), assim enriquecendo o leque de preocupações de um programa que se não deve confinar nem à política do futebol nem ao futebol da política?

Julgo que, se o futebol tudo tem infectado e corrompido, de poucos espaços se tem abusivamente apoderado tanto como do espaço televisivo. Chegou-se ao ponto grotesco, por altura do mundial, de se montar, televisivamente, todo um dispositivo que referendasse o espectador quanto às alterações a fazer na equipa do mundial… A esta estranha concepção de democracia (em que se pede aos ignaros atrevidos decisões sobre assuntos de especialidade) chamou o inesquecível Ortega y Gasset “democracia morbosa”. É contra este morbo sinistro do futebol, corruptor, em acelerado, das mentalidades e do futuro da democracia, que importa insurgirmo-nos todos – os que insistem em pensar com autonomia e cabeça fria. Sim, é importante conservar o segundo canal da televisão pública, mas como plataforma onde se respire um ar não demasiado poluído pelos ruídos extremistas, invasores e intolerantes desta histérica cultura do futebol – e não como canal em que se gaste quase metade do noticiário (ou mesmo mais do que metade) a falar do Mundial e a entrevistar gente palradora e debitadora de minúcias sobre o ex-Mundial… Um Mundial que se saldou por uma catadupa de revelações vergonhosas, todas elas a confirmarem o enterro definitivo (e não só entre nós) do verdadeiro “espírito desportivo” (um treinador a quem se pagava 3500 contos por mês, a pedir mais, em véspera de jogo, jogadores opiparamente pagos a pedirem isenção de impostos sobre os prémios, em tempo de austeridade fiscal, um Secretário de Estado a tomar, para si, as dores de um jogador que se drogava e a quem se ofereceu, “para conforto”, uma placa, etc., até à náusea). São estes exemplos que se doam a uma juventude que, de dia para dia, se afunda mais num pântano ou num vazio de valores, onde se não vê sombra nem de cultura nem de ética nem de gosto: num país onde o afundamento ético é tal que uma maioria parlamentar acha modo de violentar afrontosamente a Constituição, congeminando uma vergonhosa “lei de excepção”, para Barrancos, passando por cima do facto de que está aqui em jogo o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei…e permitindo assim aos que violam a lei há mais de 50 anos o que se não permite aos que a tenham violado apenas há poucos meses! Por outras palavras, o crime longamente repetido compensa, por se ter tornado tradição!

Observava esse grande clerc que dava pelo nome de Romain Rolland, que ”por toda a sua educação, por tudo o que vê e ouve à sua volta, a criança absorve uma tal soma de mentiras e de parvoíces, misturadas com verdades essenciais, que o primeiro dever do adolescente que vise ser um homem são é vomitar tudo isso.” O nosso dever – o dos educadores – é, pois, propiciar à juventude – e aos outros… - esse vomitório fundamental, que os purgue de toda essa infame cultura futebolística. Este meu texto pretendeu ser isso mesmo: um saudável vomitório. Nem no tempo de Salazar a loucura futebolística foi tão longe, digo-o com grande tristeza.

 Eugénio Lisboa

NOTA EM FEVEREIRO DE 2022: Ressuscito dos meus arquivos este texto que é hoje mais actual do que nunca. A corrupção que ele denunciava como sendo inerente ao desporto profissional está hoje aí à mostra em toda a sua sumptuária obscenidade: negócios sujos, fuga aos impostos, compra de árbitros, vendas de jogadores como se fossem gado, porcarias de toda a espécie. Não gostaria de confusões: gosto do futebol, como desporto bonito e às vezes surpreendente e até o pratiquei na minha juventude. Mas o futebol, como todo o desporto é fundamentalmente para ser praticado e não para ser VISTO e explorado comercialmente, da forma mais nauseante. A este respeito, recomendo mais uma vez aos nossos políticos e às pessoas, em geral, a leitura do que sobre isto escreveu esse grande ensaísta e admirável escritor, que foi Sílvio Lima, antigo Professor da Universidade de Coimbra. As suas obras foram publicadas em dois belos volumes, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Nelas se inclui o notabilíssimo texto intitulado ENSAIO SOBRE A ESSÊNCIA DO ENSAIO, que é um verdadeiro modelo do que deve ser o espírito ensaístico. Nenhum professor ou Professor deveria ignorar este belo ensaio, muitíssimo bem pensado e documentado e melhor escrito. Como ensaísta, em Portugal, Sílvio Lima não fica abaixo de ninguém.

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