Eu recordo-me de, na última procissão a que fora de Nossa
Senhora das Neves, antes da morte do pai, ter os olhos marejados de lágrimas, de
imprecar o milagre das mãos níveas e de, no fim, volver para casa, pisando o
odor do alecrim, a água da espadana e as chamas brancas da murta. Entretanto,
as uvas tingiram-se de retinto e maturaram; as maçãs coraram e maturaram e o
tempo revogou tudo, salvo o dia em que o corpo, frio e a sós, acordou um enfermeiro, calejado na
morte, e uma maca rolante o levou, amortalhado num lençol branco, para a morgue.
Imprescritível, esse dia de raiva, de resignação, de
pensar que era um dia que viria e eu me levantaria, ao som da bicicleta a
embater na escada e da voz timbrada e otimista: – É menino, cortar cachos! Só tens sono! Faz-te
homem, para te livrares do castigo,
da servidão… Era realmente o dia, e eu, no dia anterior, tinha pedalado
feito louco para as duas lágrimas e para o aperto de mão que ficou no coração. Não
vale a pena pôr-me a chover no molhado. A mãe está exausta. A mãe, nas vésperas da festa, ajoelhada no
parapeito marmóreo das janelas, a limpar, com um pano branco, os vidros e as
frestas do estore, e, com as galochas enfiadas e a mangueira nas mãos, a lavar
o chão da varanda, jorrando a água, como chuva copiosa, das alturas para o
jardim. A mãe, nas vésperas da festa, a arredar o armário da cozinha e a
esfregar, com uma solução de lixívia e as mãos nuas, o teto e as paredes
fungosas, e sempre a queixar-se: – Eu ando a cair! A mãe, logo pela alva, a
escaldar os nacos de cabra, a colocá-los dentro de uma panela de aço coberta de
farrusco, a acender o lume, ao borralho, com achas de oliveira e toros de
carvalho, e a cobrir a carne com vinho tinto baga, azeite, banha de porco, sal,
colorau, pimenta, salsa, cebola, alho e folhas de louro secas. A santa mãe está aí a romper. Sob o céu, opalino e luminoso,
sibilam em surdina mulheres casadas. As crianças aladas miram os vestidos como
se se mirassem a um espelho. Os adolescentes e os homens solteiros põem as forquilhas
nas hastes do andor, ataviado de rosas, vermelhas e amarelas (eu que já o vira
adornado de hortênsias, camélias brancas, cravos brancos e antúrios
verdes), e param estafados dos ombros. A Nossa Senhora das Neves que, em criança e sentado
num dos bancos da nave, eu via no altar-mor da capela, assoma, agora, ao morro;
tem um longo cabelo castanho-escuro, uma auréola dourada na cabeça, um vestido
cor de marfim caído até aos pés e apertado na cintura por uma fita, um manto
azul cobalto bordado, a mão direita segurando um ramo e o braço esquerdo
amparando o Menino, também com uma auréola de resplendor divino, e três
querubins aos pés. Atrás, as mãos dos
burgueses casados transladam o pálio e o prior e pintam um quadro medieval, onde
rebentam as notas de uma banda filarmónica (este ano não veio a banda dos
Covões, aqueles velhos apessoados com os contrabaixos dourados!, como
dizia o pai). Todo o movimento ritual, todo o cortejo, pela ladeira acima, é
lajeado por duas linhas de cabelos esmerados: uma, dobrando o muro do jardim, e
a outra, os troncos tuberculosos, nodosos, das oliveiras. Ah, que miríficos
eram os dias de festa na minha meninice! A flor vermelho-laranja das
sardinheiras, nos varandins, e as colchas caídas do parapeito das janelas e das
gelosias. As pétalas de rosa caindo, suavemente e em movimentos espiralados, no
andor. A rua de Cima e a rua de Baixo,
separadas pela capela, juncadas de murta e espadana, enfeitadas por uma
correnteza de arcos de madeira, caiados e floridos, colocados ainda antes da
aurora de cinco de agosto: dois paus de bandeira, ancorados por pedras em
latões, com barras de pinho, de um lado e do outro, cruzadas ao alto e na
diagonal, semeadas de flores (rosas, íris, dálias, margaridas, gerberas,
crisântemos, copos de leite…) habilmente feitas à mão, com arames, paulitos,
fitas, papel crepe, tesoura e cola; os arcos conectados uns aos outros por
cordas de papel e por fios semeados de lâmpadas coloridas; a rua de Baixo,
vista da rua de Cima, parecendo um túnel de flores, um longo caramanchão com
uma cruz sagrada ao fundo, as crianças brincando com o espigão da espadana…Ah,
que alegres e bem-dispostos eram os dias de festa na minha meninice! Os jogos e
os risos a bandeiras despregadas: a gincana do pau de sebo, a escabrosidade da
corrida de saco, o maneio do corpo das velhas na corrida de cântaros e a água e
os cacos a desabarem no jogo dos púcaros e dos cântaros de barro.
1 comentário:
O poder e influência da Santa Madre Igreja no seu esplendor! A Igreja conseguiu apropriar-se, em seu proveito, das festas do povo. Atualmente, a educação do povo, em Portugal, está a cargo de grandes especialistas que colocaram a escola obrigatória no centro das instituições que promovem a felicidade dos pobres. É o novo conceito de Céu obrigatório. Na exigente ortodoxia católica, o Céu estava reservado para os bons; na escola obrigatória, inclusiva e flexível, o paraíso é para todos, porque, com critérios de avaliação bem aferidos, no fundo, somos todos excelentes.
Atualmente, as procissões e romarias de outrora quase só existem nas nossas memórias e nalgumas aldeias mais atrasadas. Agora, nas escolas, onde se proíbem os professores de ensinar, todos os dias são dias de festa!
Enviar um comentário