sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

 

Eu recordo-me de, na última procissão a que fora de Nossa Senhora das Neves, antes da morte do pai, ter os olhos marejados de lágrimas, de imprecar o milagre das mãos níveas e de, no fim, volver para casa, pisando o odor do alecrim, a água da espadana e as chamas brancas da murta. Entretanto, as uvas tingiram-se de retinto e maturaram; as maçãs coraram e maturaram e o tempo revogou tudo, salvo o dia em que o corpo, frio e a sós, acordou um enfermeiro, calejado na morte, e uma maca rolante o levou, amortalhado num lençol branco, para a morgue. Imprescritível, esse dia de raiva, de resignação, de pensar que era um dia que viria e eu me levantaria, ao som da bicicleta a embater na escada e da voz timbrada e otimista: É menino, cortar cachos! Só tens sono! Faz-te homem, para te livrares do castigo, da servidão… Era realmente o dia, e eu, no dia anterior, tinha pedalado feito louco para as duas lágrimas e para o aperto de mão que ficou no coração. Não vale a pena pôr-me a chover no molhado. A mãe está exausta. A mãe, nas vésperas da festa, ajoelhada no parapeito marmóreo das janelas, a limpar, com um pano branco, os vidros e as frestas do estore, e, com as galochas enfiadas e a mangueira nas mãos, a lavar o chão da varanda, jorrando a água, como chuva copiosa, das alturas para o jardim. A mãe, nas vésperas da festa, a arredar o armário da cozinha e a esfregar, com uma solução de lixívia e as mãos nuas, o teto e as paredes fungosas, e sempre a queixar-se: Eu ando a cair! A mãe, logo pela alva, a escaldar os nacos de cabra, a colocá-los dentro de uma panela de aço coberta de farrusco, a acender o lume, ao borralho, com achas de oliveira e toros de carvalho, e a cobrir a carne com vinho tinto baga, azeite, banha de porco, sal, colorau, pimenta, salsa, cebola, alho e folhas de louro secas. A santa mãe está aí a romper. Sob o céu, opalino e luminoso, sibilam em surdina mulheres casadas. As crianças aladas miram os vestidos como se se mirassem a um espelho. Os adolescentes e os homens solteiros põem as forquilhas nas hastes do andor, ataviado de rosas, vermelhas e amarelas (eu que já o vira adornado de hortênsias, camélias brancas, cravos brancos e antúrios verdes), e param estafados dos ombros. A Nossa Senhora das Neves que, em criança e sentado num dos bancos da nave, eu via no altar-mor da capela, assoma, agora, ao morro; tem um longo cabelo castanho-escuro, uma auréola dourada na cabeça, um vestido cor de marfim caído até aos pés e apertado na cintura por uma fita, um manto azul cobalto bordado, a mão direita segurando um ramo e o braço esquerdo amparando o Menino, também com uma auréola de resplendor divino, e três querubins aos pés. Atrás, as mãos dos burgueses casados transladam o pálio e o prior e pintam um quadro medieval, onde rebentam as notas de uma banda filarmónica (este ano não veio a banda dos Covões, aqueles velhos apessoados com os contrabaixos dourados!, como dizia o pai). Todo o movimento ritual, todo o cortejo, pela ladeira acima, é lajeado por duas linhas de cabelos esmerados: uma, dobrando o muro do jardim, e a outra, os troncos tuberculosos, nodosos, das oliveiras. Ah, que miríficos eram os dias de festa na minha meninice! A flor vermelho-laranja das sardinheiras, nos varandins, e as colchas caídas do parapeito das janelas e das gelosias. As pétalas de rosa caindo, suavemente e em movimentos espiralados, no andor. A rua de Cima e a rua de Baixo, separadas pela capela, juncadas de murta e espadana, enfeitadas por uma correnteza de arcos de madeira, caiados e floridos, colocados ainda antes da aurora de cinco de agosto: dois paus de bandeira, ancorados por pedras em latões, com barras de pinho, de um lado e do outro, cruzadas ao alto e na diagonal, semeadas de flores (rosas, íris, dálias, margaridas, gerberas, crisântemos, copos de leite…) habilmente feitas à mão, com arames, paulitos, fitas, papel crepe, tesoura e cola; os arcos conectados uns aos outros por cordas de papel e por fios semeados de lâmpadas coloridas; a rua de Baixo, vista da rua de Cima, parecendo um túnel de flores, um longo caramanchão com uma cruz sagrada ao fundo, as crianças brincando com o espigão da espadana…Ah, que alegres e bem-dispostos eram os dias de festa na minha meninice! Os jogos e os risos a bandeiras despregadas: a gincana do pau de sebo, a escabrosidade da corrida de saco, o maneio do corpo das velhas na corrida de cântaros e a água e os cacos a desabarem no jogo dos púcaros e dos cântaros de barro.

1 comentário:

Anónimo disse...

O poder e influência da Santa Madre Igreja no seu esplendor! A Igreja conseguiu apropriar-se, em seu proveito, das festas do povo. Atualmente, a educação do povo, em Portugal, está a cargo de grandes especialistas que colocaram a escola obrigatória no centro das instituições que promovem a felicidade dos pobres. É o novo conceito de Céu obrigatório. Na exigente ortodoxia católica, o Céu estava reservado para os bons; na escola obrigatória, inclusiva e flexível, o paraíso é para todos, porque, com critérios de avaliação bem aferidos, no fundo, somos todos excelentes.
Atualmente, as procissões e romarias de outrora quase só existem nas nossas memórias e nalgumas aldeias mais atrasadas. Agora, nas escolas, onde se proíbem os professores de ensinar, todos os dias são dias de festa!

UM TIPO DE CENSURA DE LIVROS AINDA SEM DESIGNAÇÃO

Não sabemos ao certo, mas podemos colocar a hipótese, muito plausível, de a censura da expressão humana, nas suas mais diversas concretizaçõ...