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domingo, 9 de outubro de 2011

Dr. Virgílio Couto, metodólogo

Sebastião da Gama, o jovem poeta-professor ou professor-poeta, que nem trinta anos de vida teve para ser plenamente uma e outra coisa, dedicou o seu livro de 1951, Campo Aberto, a José Régio e a Virgílio Couto.

Esta dedicatória não pode deixar de se afigurar algo estranha, desequilibrada: um escritor de renome que não depende de Gama para ser recordado em paralelo com um metodólogo quase anónimo cuja invocação depende muito do legado de Gama.

Sem parecer dar conta que certas vidas se registam na memória colectiva e outras se esfumam nela, Sebastião da Gama prezava ambos com a mesma abnegação: se em Régio encontrou uma alma gémea de poeta; em Couto encontrou uma alma gémea de professor.

Porém, ao contrário dos poetas, os metodólogos ou os, agora denominados, orientadores de estágio, não deixam, em geral, obra escrita. A sua obra é efémera porque traduzida nas ideias e técnicas que vão trabalhando no dia-a-dia com os professores que ajudam a formar, os quais também raramente deixam obra material.

Mas Sebastião da Gama escreveu e na sua escrita, sobretudo no Diário, publicado postumamente em 1958, refere-se à experiência de estagiário, não se esquecendo de invocar o mestre da prática “de quem tão profundamente estimava a dedicação docente e o tino pedagógico”. Disse-o Hernâni Cidade, outro dos seus mestres, no caso na Faculdade de Letras de Lisboa, no prefácio a esse livro.

De Virgílio Couto, que também foi autor de manuais escolares, sabemos que, como metodólogo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desenvolveu, pelo menos durante os anos quarenta e cinquenta, uma estratégia de formação de professores para o ensino técnico, à época, inovadora: para melhor pensar na acção docente e vir a melhorá-la, nada melhor do que escrever sobre ela num documento pessoal, designado por Diário.

Através do Diário de Sebastião da Gama perscrutamos essa estratégia de orientação:

11 de Janeiro de 1949. “Para começar o metodólogo falou connosco durante uma hora: De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente (…). Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser (…). Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais do que as outras: ‘O que quero principalmente é que vivam felizes’ ” (página 25).

11 de Fevereiro de 1949. “Chamou-me o metodólogo para me propor alguns trabalhos. Aceitas? Não aceitas? Dá-me liberdade plena e eu em geral aceito, porque são cheios de interesse" (página 43).

21 de Fevereiro de 1949 “(…) passei o resto da tarde com um colega e o meu metodólogo. Ele queria-nos sugerir, para o ano, umas sessões em que aos rapazes de noite se fosse lendo os Lusíadas. Precedidos de uma explicação dada nós, seriam declamados por alunos de dia os trechos mais importantes (…). Nós aceitámos o alvitre e vamos pensar na sua realização u em geral aceito, porque são cheios de interesse. Ó velhos, ó venerandos, ó encantadores professores de Português, que vai ser da língua e do bom gosto literário e do amor a Os Lusíadas dos rapazes de agora, a quem tão criminosamente escondem que ‘as armas e barões cantando espalharei’ é uma principal; ‘que por toda a parte’ é lugar onde?
A revolução continua – disse o metodólogo no primeiro dia" (página 55).

18 de Março de 1949. “Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver vida — tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. «Leitura e interpretação do trecho tal. — Faltei por doença. Exercício escrito». Tudo isto não nos diria nada; e como a gente tem memória fraca, olhava para o livro de ponto e era capaz de ter um angustiosa sensação de vazio. Com esta inovação, descobriu o nosso metodólogo nada mais nada menos do que a maneira de nos levar a fazer exame de consciência. E deixa-nos, ainda, um documento em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne. Além disso, como palavra puxa palavra, vou carreando para aqui coisas que me interessam (sombras da minha infância, luzes intensas dos meus últimos dias...) e o pó do tempo havia de velar um dia” (página 80).

25 de Maio de 1949. “Vá descansar – mandou o metodólogo – já sei de si o que tinha a saber. E eu vim. Quase não tive (nem tenho palavras para responder; nem soube clamar que levo os mocinhos atravessados na garganta. Vim” (página 139).

Referências bibliográficas:
Gama, S. (1993). Diário. Lisboa: Ática
Gama, S. (1951). Campo aberto. Edição não identificada
Herrero, J. (1951). Pedagogia de Sebastião da Gama: o “Diário” à luz da psicopedagogia. Lisboa: Editorial O Livro.

sábado, 7 de agosto de 2010

Universidade de Boston, Mestrados e Ensino


“Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústria, modas, maneiras, pilhérias, tudo vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssimo, como os direitos de Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…” (Eça de Queiroz, 1845-1900).

Pelo interesse de que se reveste, transcrevo três excertos de prosa de um extenso artigo, saído no Público (06/08/2010), titulado “Educação injusta”, da autoria do professor universitário Luís Campo e Cunha. Escreve ele:

1. “A educação – outro problema calamitoso [referindo-se à justiça] – também não deu boas notícias com a perspectiva do fim das reprovações. Há uns meses, numa conferência em S. Francisco da Califórnia, um professor americano já reformado, que escreveu muito sobre Espanha e também sobre Portugal, perguntou-me qual a razão dos maus resultados do ensino nacional. Depois de uma longa conversa em que mostrei que os recursos financeiros, humanos e materiais eram dos melhores da Europa, os resultados brilhavam pela ausência. A finalizar disse-lhe que boa parte da culpa também era deles, americanos. Perante a surpresa expliquei-lhe que no final dos anos sessenta (ou princípios de setenta) um ministro da Educação tivera a ingenuidade de mandar uma dezena de pessoas estudar “ciências da educação” nos Estados Unidos. Ele interrompeu-me perguntando: não me diga que foram para Boston. Exactamente, disse-lhe. O meu amigo respirou fundo e calmamente concluiu: então caso é mesmo muito grave… E é, de facto, muito grave. A filosofia das escolas de educação está patente há muitos anos na abordagem ao ensino em Portugal e os resultados estão à vista.”

Começo por uma rectificação de somenos importância: os mestrados de Boston para o alcance do lugar de professor adjunto das escolas superiores de educação tiveram lugar em finais de 80. Sendo, por vezes, as questões da educação condicionadas pelas força políticas regionais, a primeira escola superior deste género a ser criada foi em Viseu, em 1983, quando seria de esperar terem sido contempladas, em primeiro lugar, as cidades de Lisboa, Porto e Coimbra, com longa e cimentada tradição na formação de professores do ensino primário. Já tem importância saber-se que um dos “felizes contemplados” com um mestrado pela Universidade de Boston foi Valter Lemos, professor da antiga Escola do Magistério Primário de Castelo Branco e antigo secretário de Estado da Educação, na vigência da pasta da Educação de Maria de Lurdes Rodrigues.

Igualmente, é detentora de um igual mestrado por Boston Isabel Alçada, professora da Escola Superior de Educação de Lisboa, antiga dirigente da Fenprof e actual ministra da Educação. Sem pretender, de forma nenhuma, beliscar a possível isenção desta governante é natural que o seu passado a ponha perante o dilema de Afonso de Albuquerque: “Mal com o homens por amor d’el rei e mal com el-rei por amor aos homens”. Ou seja, no caso da formação simultânea dos professores de Matemática por universidades e escolas superiores de educação, com os maus resultados que saltam à vista desarmada, uma desejável intervenção sua no possível debelar ou mesmo acabar com esta aberração correrá o risco de cair em saco roto pela sua licenciatura universitária: mal com a universidade, onde se licenciou, por amor às escolas superiores de educação e mal com as escolas superiores de educação, em que leccionou, por amor à universidade!

2. Mais adiante, é feita, por Luís Campos e Cunha, a interessante análise: “As reprovações são necessárias e não se avaliam, principalmente, pelos efeitos que têm nos alunos que chumbam. As reprovações são úteis para os alunos que passam porque estudaram. É o prémio; é para evitar a vergonha da reprovação que os alunos se aplicam mais. Qualquer um de nós (incluindo eu próprio) se lembra que esteve, normalmente pelos 14 anos, à beira de chumbar e só não terá acontecido pelo esforço final para evitar o vexame. É a cultura da responsabilidade que está em causa.

Educar é preparar para a vida. Não conheço melhor definição de educação. Essa preparação é não só técnica e científica, mas também ética e cívica. É ser capaz de lidar com o stress, com a pressão temporal e até com a injustiça. É ser capaz de definir objectivos, trabalhar por eles e alcançá-los. E esperar o reconhecimento por isso. Os exames e os resultados com aprovação, reprovações e com notas de zero a vinte foram necessários e são importantes. Aguentar a pressão de um exame faz também parte da aprendizagem.


Na vida estamos sempre a aprender e estamos sempre a ser avaliados. Tal como devia ser na escola. Há duas grande diferenças entre a escola e a vida. Na escola, primeiro temos a lição e depois o exame. Na vida privada temos o exame e só depois temos a lição se percebermos onde errámos. Em segundo lugar, na escola aprendemos à custa da experiência de outros; na vida aprendemos à nossa custa, à custa dos nossos erros. Por tudo isto é que a escola é o meio mais eficiente para nos prepara para a vida”.

Luís Campos e Cunha deu o seu exemplo (e como escreveu o humanista Albert Scheweitzer, “dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros - é a única”) de ter estado à beira de chumbar no 4.º ano do liceu e da lição que daí colheu. Eu reprovei no meu sexto ano do liceu, ano de exame (nesse tempo havia exames no 3º , 6.º e 7.º anos), em duas disciplinas matemática e inglês - logo a uma disciplina que minha Mãe dominava perfeitamente, para além do francês e alemão, donde se prova, uma vez mais, a verdade do aforisma: “Em casa de ferreiro espeto de pau”.

Para me desculpar da cabulice, logo disse que queria deixar de estudar na esperança que meus pais me suplicassem que não fizesse isso por pôr em risco o meu futuro em obter um curso superior que me ajudaria ganhar a vida com melhores proventos. Com verdadeiro tacto, deram-me a entender concordar comigo, logo se aprestando em satisfazer o meu “desejo”. Meio dito meio feito. Meu pai levou-me à presença de uma amigo que me deu, ou fingiu dar, emprego. Estávamos em vésperas das férias grandes e o emprego era para ter início no primeiro dia de Agosto! E assim se iam ao ar as férias na Figueira da Foz . Remédio santo, chegado a casa disse querer continuar a estudar.

Outros tempos, outros costumes em que quer na vida escolar ou não “aprendíamos à nossa custa, à custa dos nossos erros”, como escreveu o autor do referido artigo. E hoje, com que se deparam os alunos aplicados que seguem a via normal de ensino? Para além de carências económicas, cábulas que esperam pelos 18 anos, por vezes, em empregos fictícios nas próprias empresas dos progenitores, para descreverem todo um percurso de experiência de vida do 3.º ciclo do básico ciclo ao ensino secundário completo, transposto para um relatório em péssimo português feito enquanto o diabo esfrega um olho. Como explicar aos alunos que se dedicam à escola que o esforço de estudar compensa? Esse o grande desafio da sociedade dos nossos dias, com os exemplos em contrário, de grande número de licenciados no desemprego, tornando difícil aos pais actuais transmitirem essa mensagem aos filhos em condições de ser entendida.

3. Por último, e com o realce que bem merece, o parágrafo final do artigo: “Sem justiça não há cidadania nem vida democrática. Sem uma boa escola não há justiça social. Hoje temos um ensino, porque laxista, mais injusto do que há 40 anos: os filhos dos mais pobres ficam condenados a serem pobres. Não sou especialista em educação e sei ainda menos de justiça. Mas sei ver os resultados. Da mesma forma que não sei cozinhar decentemente, mas sei apreciar uma boa refeição”.

Como eu costumo dizer, com um ensino que não ensina, o grande problema da educação hodierna é não haver cozinheiros que nos dêem o prazer de uma refeição, sequer, decente. Sem direitos alfandegários, na era dos jactos, importamos, de um dia para o outro, diplomas de mestrado que, como diria Eça,” nos ficam curtos nas mangas”. Bem se afadigam os seus responsáveis em vestir a juventude com um tecido educativo que não estica por mais que se afadiguem os seus mestres alfaiates. Isto é, veste-se Portugal com calças ridículas que são muito curtas para calças e muito compridas para calções. Para abreviar razões, em todo este status quo educativo, adaptando o que li num livro de publicação recente, “não há inocentes; há apenas diferentes graus de responsabilidade!”

domingo, 15 de novembro de 2009

O dever de educar e de ensinar - 2

Continuação do texto O dever de educar e de ensinar:

P- Na formação de um professor, qual é o papel da vocação?

R- A vocação é uma espécie de chamamento interior que, de certo modo à semelhança de um chamamento divino, conduz uma pessoa ao ensino e, mesmo sem formação, o torna bom professor. Não negando a importância desse “querer ser professor”, que não sabemos bem de onde vem, eu poria a tónica na sua preparação. Preparação que, reportando-me ao ciclo de conferências da MinervaEditora, Regina Rocha deixou bem claro que tem de ser científica, pedagógico-didáctica e ética. Lembro-me de ter insistido que se falasse na componente didáctica, pelo facto de, nos últimos tempos, esta ter sido muito desvalorizada. Na opinião desta linguista e investigadora, o professor é a pessoa que tem a capacidade de pegar no conhecimento e de o organizar de forma a que o aluno o vá, a pouco e pouco, adquirindo e, assim, formando a sua personalidade. Também Sobral Henriques sublinhou que, neste momento, o professor precisa de ser um "quadro" muito bem preparado, pois a diversidade de questões que se lhe colocam, quer a nível de acompanhamento dos alunos, tendo em vista o sucesso escolar, quer a nível de comportamentos e de atitudes, tornam a sua acção muito difícil e exigente, não podendo ela ser confiada apenas ao tradicional talento ou jeito.

P- Porque é que aprender, só por si, não chega?

R- Sabemos hoje, de modo muito claro, nomeadamente através do estudo de casos de crianças que são privadas de ambiente humano, que o seu estado em pouco ou nada se parece com o estado humano. Se o capital que trazemos à nascença fosse suficiente para nos tornarmos pessoas, dispensaríamos a educação. Ora, muito cedo a Humanidade percebeu que tinha de seleccionar os saberes que melhor poderiam ajudar as novas gerações a sobreviver e a melhorar a própria espécie. E, assim, se criou e expandiu a escola, que é a instituição a que se tem confiado o dever de ensinar e de educar, mas de uma forma estruturada, para que os sujeitos adquiram esses saberes e desenvolvam a sua inteligência – sabemos hoje que a inteligência se desenvolve. Isto para que as sociedades se mantenham e, desejavelmente, se desenvolvam, e também para que a própria Humanidade progrida e possa criar mais conhecimento.

Se dissermos que o professor deve ser apenas um guia, um orientador da aprendizagem, e que devemos deixar, como às vezes se sugere, esta tarefa fundamental ao cuidado das crianças, que ficam entregues a si próprias ou umas às outras, como referiu Hannah Arendt, acreditando que elas têm dentro de si as motivações e os intereresses para procurarem e descobrirem todo o saber que, desde que há memória, conseguimos apurar, em todas as áreas, facilmente se percebe que lhes estamos a pedir uma tarefa impossível, na qual não terão a mínima hipótese de se orientarem.

Facilmente se percebe também que estamos a contribuir para pôr em causa a própria sociedade e tudo o que a Humanidade construiu e ainda tudo o que pode vir a construir. Para responder a esta pergunta, eu poderia até ser mais directa, se usar as palavras da minha amiga Maria do Carmo Vieira, que tem afirmado, com segurança, que a escola tem a obrigação de acrescentar qualquer coisa à vida dos alunos, de todos os alunos, independentemente da sua condição social, económica, cultural, ou outra. E o que tem de acrescentar é a arte, a literatura, a ciência, a matemática… enfim, os saberes mais eruditos, mais perfeitos, que nos permitem, afinal, ser pessoas, no sentido que a palavra “pessoa” tem de ser eu, de sermos nós.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

"Ser bom não chega"

Atul Gawande é médico-cirurgião, um dos melhores à escala mundial. Estudou nas mais prestigiadas universidades europeias, foi bolseiro de elite, venceu prémios que distinguem a excelência, é professor catedrático de Cirurgia em Harvard. E, ainda, redactor e colunista.

Não obstante este currículo que fala por si, e talvez por causa dele, interessa-se por esse “esse sub-produto um pouco nauseabundo” (Lentin, 1994, 7), esse “tema cinzento na cor, sinistro no perfil e amargo no travo” (Lobo Antunes, 1996, 77): o erro de desempenho profissional.

Depois de ter escrito A mão que nos opera (2007), livro de divulgação, publicou, neste ano, Ser bom não chega (2009) com o mesmo teor. A Lua de Papel, editora de ambas as obras, apresenta-o como “um médico, que apesar dos erros luta todos os dias para ser (ainda) melhor.”

A propósito deste último livro, deu uma entrevista à revista Sábado da qual transcrevo a seguinte passagem, pela relevância que me parece ter para todos os profissionais que têm responsabilidades na vida dos outros, grupo onde também os professores e educadores se incluem.

Porque é que os médicos continuam a ser, muitas vezes vistos como deuses?
Tentamos ignorar o erro porque pensamos que, se o reconhecermos, as pessoas já não acreditam em nós. Mas, hoje, os doentes têm consciência que os médicos erram. Não somos perfeitos, mas procuramos essa perfeição. Daí que o nome do meu livro seja Better e não Best, porque é isso mesmo que podemos ser: melhores.

Qual foi o seu pior erro?
Foram tantos! Faço 300 a 400 operações por ano e as complicações atingem os 3 ou 4% o que significa que prejudico gravemente 10 a 12 pessoas em vez de as ajudar. Quando olho para trás, vejo que, em pelo menos metade dos casos, podia ter feito algo de diferente. Tento sempre tirar alguma conclusão de forma a que na próxima vez não prejudique ninguém.

Os erros deviam ser sempre punidos?
Não. Somos responsáveis pelos erros, mas também por remediar a situação. O problema dos erros não é dos maus médicos: o pior é que eles acontecem aos bons.

Em que sentido?
Qualquer cirurgião de renome falha. Vou dar um exemplo. Há dois meses publiquei um estudo, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde, sobre as mais-valias de haver uma lista na sala de operações para evitar infecções e outras complicações. A lista, aparentemente simples, tem pontos como dar sempre um antibiótico ao paciente entes do primeiro corte, certificarmo-nos de que toda a gente dentro da sala de operações sabe o nome da restante equipa para que não haja qualquer complicação na hora de se chamar a pessoa que se precisa, etc. Usámo-la em vários hospitais e reduziram-se as mortes em cerca de um terço. Os cirurgiões têm de assumir que são falíveis e socorrem-se de pequenas técnicas que os ajudam.

Interfere no trabalho de outros médicos?
A toda a hora! Se vejo um colega a fazer um mau diagnóstico já com uma cirurgia marcada não lhe vou dizer “és um idiota”! Olha o que estás a fazer!”, porque sei que posso ser eu o próximo idiota! O que faço é explicar-lhe que acho que deixámos passar alguma coisa e tentar resolver os problemas.”

Entrevista à revista Sábado de 25 de Junho de 2009 “Se os médicos lavarem as mão evitam milhões de mortes”, 36-38.

domingo, 24 de maio de 2009

"Não há nada como o saber adquirido pela experiência"

"Ensinar é, antes de mais, fabricar artesanalmente os saberes, tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de (…) um sistema de comunicação e trabalho.”
Philippe Perrenoud, 1993, 25.
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Apesar de ter raízes antigas, depois dos anos de 1980, um movimento conhecido por Movimento da prática reflexiva tem-se afirmado com grande força em diversos sectores profissionais.

Este movimento, não sendo uno, no sentido em que defende um corpo bem delimitado de ideias, acentua a capacidade que todas as pessoas terão para observar, investigar, analisar, indagar, questionar, pensar autonomamente a sua acção, que tem lugar num determinado contexto e, em função da reflexão que fazem do mesmo – de modo individual ou colegial –, construírem saberes particulares ou, mais propriamente, “teorias práticas”.

Assim, expressões como prática reflexiva, desempenho reflexivo, formação reflexiva, acção reflexiva tornaram-se incontornáveis nos discursos académicos e oficiais sobre o ensino, estando presentes e ocupando um lugar de destaque nas mais diversas reformas educativas e programas de formação de professores.

Essa presença encerra, porém, tanto de confusão conceptual como de entusiasmo aguerrido. E é precisamente quando estes dois ingredientes se juntam, que emerge a ideia de que não é possível ensinar nada com carácter teórico a ninguém – no sentido de saber abstracto, fruto do apuramento de princípios, regras, procedimentos, leis, etc. –, e muito menos de modo teórico – ou seja, comunicando e integrando saber.

Entende-se, ao contrário, que as pessoas só aprendem verdadeiramente de forma “artesanal”, ou seja se se confrontarem com a prática real, concreta, localizada, e com os problemas particulares que ela sugere, sendo que neste quadro, ao reflectirem, encontrarão as soluções, sempre únicas, específicas, para tais problemas.

Tal lógica indica que os bons profissionais, que resolvem problemas complexos e singulares, são aqueles que se regem por um conhecimento eminentemente tácito, que conseguem apurar e usar mas não conseguem explicar inteiramente e, muito menos, especificar. Por outro lado, ninguém do exterior ao um determinado ethos profissional pode ter a pretensão de alcançar o mesmo conhecimento e, nessa medida, de apresentar conhecimento que possa contribuir para a resolução de tais problemas.

E é aqui que me lembro das “reflexões” da Guidinha, de Luís Sttau Monteiro, quando, por volta de 1974, lhe passou pela cabeça ser médica (páginas 116-117):
“Como eu gostava de ser médica porque gosto muito daqueles filmes que há na televisão com aqueles médicos bestialmente simpáticos que fazem discursos às pessoas e que as curam com palavrinhas mansas e compreensão ia para um hospital trabalhava talvez na cirurgia é claro que ao princípio matava umas pessoas para descobrir onde é que elas têm o apêndice e o fígado mas isso que importância tem neste mundo em que há gente a mais? com o tempo e com umas buscas bem organizadas acabava por saber onde é que estava o apêndice de cada um e cortava-o tão bem como se tivesse aprendido porque não há nada como o saber adquirido pela experiência eu calculo que me bastariam umas duzentas pessoas para ficar a operar apêndices quatrocentas para operar estômagos e umas quinhentas ou seiscentas para operar cabaças ao todo com umas mil mortesitas ficava a cirurgicar tão bem como qualquer que estivesse estudado e não tinha de perdido o meu tempo em escolas faculdades e outras velharias páginas.”
Exagero do humor à parte, esta perspectiva reflexiva, se tem algumas características que jogam a seu favor, também tem muitas que recomendam a maior prudência na sua aplicação, pois, na verdade, se estivermos a falar de áreas como a medicina, o ensino ou outras onde a responsabilidade face a pessoas concretas é acentuada, o desempenho profissional não pode pautar-se apenas e só por uma pouco precisa capacidade de auto-orientação do profissional ou futuro profissional, nem pelos resultados subjectivos e relativos a que conduz.

Pelo contrário, o saber que, de modo objectivo, as comunidades científicas vão conseguindo reunir não pode, de forma alguma, ser desprezado ou menorizado na formação e nas práticas profissionais, tem de ser valorizado, comunicado, discutido e, claro, exercitado criticamente.

João Lobo Antunes, no livro Memórias de Nova Iorque e outros ensaios (1996, 36-37), referindo-se à sua formação de médico especialista nos Estados Unidos da América, explica esta ideia numa frase: “Recordo-me de, uma vez, ao sugerir uma maneira diferente de fazer uma intervenção, ter sido advertido, de forma bem seca, de que eu não estava ali para cometer erros que outros já tinham feito antes de mim.”

domingo, 11 de janeiro de 2009

O dever de formar para educar

Sexta sessão do ciclo O dever de educar, no próximo dia 13 de Janeiro, pelas 18h15, na Livraria Minerva Coimbra.

Prosseguindo o raciocínio da última sessão, dedicada ao dever de educar do professor, mas avançando nele, discute-se, agora, a formação de quem ensina, para poder assumir tal dever com responsabilidade. Questiona-se, em particular, que princípios devem nortear essa formação? Como se deve concretizar? Quem a deve assumir?...

É convidado Rui Marques Veloso, professor aposentado da Escola Superior de Educação de Coimbra que colaborou na formação de várias gerações de professores, mantendo o seu interesse e trabalho nesta área.

Local: Livraria Minerva (Rua de Macau, n.º 52 - Bairro Norton de Matos), em Coimbra

Próxima sessão: 21 de Janeiro.

As sessões deste ciclo são quinzenais e estão abertas ao público

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Avaliar a Educação - II

Transcrevemos o artigo de opinião de Maria Regina Rocha, publicado no sítio do "Sol", e que surge na sequência de outro publicado no De Rerum Natura.

A solução: 12 verdades para um ensino de qualidade em Portugal

Estamos em 2008, no século XXI, e não nos idos anos 70 do século passado: a experiência de todos estes anos leva-nos a considerar que é preciso ter a coragem de dizer 12 verdades, se queremos realmente que se faça uma reforma na Educação, para que haja um ensino de qualidade.

1.ª – O ensino unificado (5.º ao 9.º ano) não serve. Deveriam existir, pelo menos, dois currículos (eventualmente três), um deles com uma maior componente técnica, currículos diferentes não só no que respeita ao número, natureza das disciplinas e carga horária das mesmas como aos respectivos programas.

2.ª –A ausência de reprovações não responsabiliza nem alunos, nem pais, nem professores e compromete negativamente toda a aprendizagem dos alunos com dificuldades, mas a reprovação por si só também não tem a desejada eficácia. Por isso, a partir do 4.º ano, as disciplinas deveriam ter os programas organizados por níveis de aprendizagem, progredindo o aluno em cada disciplina de ano para ano por níveis, não podendo aceder ao nível seguinte sem o domínio do que é essencial do nível anterior.

3.ª – A abolição dos exames foi um erro. A existência de exames (provas de avaliação externa) com um peso de 50% é essencial para a responsabilização de todos os intervenientes no processo educativo, desde o 4.º ano de escolaridade e a todas as disciplinas (no 4.º, no 6.º, no 9.º no Ensino Básico; em cada disciplina terminal no EnsinoSecundário).

4.ª – Os currículos estão desajustados. É necessário que tenham um número equilibrado de disciplinas, devendo desaparecer do mesmo disciplinas instrumentais como, por exemplo, «Área de Projecto» e «Estudo Acompanhado».

5.ª – Os programas são responsáveis por muitos dos problemas da falta de competência dos nossos alunos. Deveriam ser claros, com os conteúdos muito bem explicitados (nomeadamente quanto ao grau de aprofundamento) e os objectivos muito bem definidos, sendo referidos os graus mínimos de consecução em cada ano.

6.ª – A escala de classificação de níveis de 1 a 5 aplicada do 5.º ao 9.º ano é má, pois propicia o laxismo e não incentiva as realizações dos alunos. Na escala de 0 a 20, um aluno que tenha 10 valores esforça-se e vê o seu esforço recompensado, passando a sua nota, por exemplo, para 12 ou 13, mas, na escala de 1 a 5, o mesmo esforço num aluno que tenha obtido 3 não o faz mudar de nível (continua no 3), o que, naturalmente, o desmotiva.

7.ª – O número de alunos por turma é outro dos problemas: turmas de 24 a 28 alunos não são compatíveis com uma aprendizagem de qualidade no tempo presente. As turmas deveriam ter 20 alunos.

8.ª – Os tempos lectivos de 90 minutos e de 135 minutos não servem. É mais adequado cada aula de uma disciplina ter apenas 50 minutos, havendo um intervalo de 10 minutos entre a aula de uma disciplina e a de outra, para que os alunos possam vir até ao pátio de recreio, respirar fundo, falar à vontade, correr, brincar, ir à casa de banho, voltando para a aula seguinte com a capacidade de concentração e de trabalho renovada (exceptuam-se, naturalmente, as disciplinas de cariz laboratorial: 50 minutos + 50 minutos).

9.ª – O absentismo dos alunos e a indisciplina são factores que comprometem a sua aprendizagem. O recente estatuto do aluno não foi feliz nas soluções propostas. É fundamental a incidência da responsabilização nos alunos e nos pais e encarregados de educação.

10.ª – A formação inicial de natureza pedagógica e de natureza didáctica deveria obedecer a directrizes muito claras da responsabilidade do Ministério da Educação, nomeadamente a indicação das disciplinas de pedagogia, das de didáctica e seu conteúdo (por exemplo, em Português, como se ensina o aluno a desenvolver a competência de leitura ou a competência de escrita, entre outras), bem como dos aspectos a ter em conta no estágio, uniformemente em todo o país.

11.ª – A formação contínua tem sido muito heterogénea. Também aqui deveria haver uma intervenção directa do Ministério da Educação no que respeita aos objectivos e conteúdos, bem como à organização e à qualidade.

12.ª – A avaliação de professores deve ser feita tendo como referente um perfil de bom professor no quadro dos grandes objectivos do Sistema Educativo – definido pelo Ministério da Educação, e não deixado ao arbítrio de cada escola, com o pretexto da autonomia. A Educação é um desígnio nacional: a tutela não pode alhear-se desta responsabilidade.

Maria Regina Rocha

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Um professor que se reforma não é apenas um professor que se reforma

"… no fim da sua carreira, um professor é passado à reforma e leva com ele os seus segredos, todos os seus êxitos e ideias. E os jovens têm de recomeçar." Gaston Mialaret (1981)

A teoria cognitivista é uma das várias teorias pedagógicas que procuram explicar o ensino e indicar como deve ser desempenhado. As suas preocupações têm-se centrado na análise da relação entre o que o professor pensa - os seus conhecimentos, concepções, crenças - e a sua acção concreta.
Nessa análise detêm-se nas decisões que os professores principiantes e experientes tomam em duas situações: quando planificam e quando leccionam as aulas.

Os estudos realizados confirmaram, em geral, uma melhoria da destreza pedagógico-didáctica à medida que os docentes se vão familiarizando com os conteúdos, consciencializando o seu estilo de interacção, dominando os métodos e as técnicas de que dispõem. Assim, percebeu-se que os professores experientes, quando comparados com os principiantes, concentram-se mais na compreensão que os alunos adquirem dos conteúdos, captam mais facilmente a especificidade de cada turma, concentram-se mais nos aspectos essenciais para conduzir a aprendizagem, que também processam com maior rapidez e eficácia.

Estes dados permitem tirar ilações para a formação, aconselhando-se a observação da planificação e do desempenho de professores experientes por parte dos candidatos a professores e dos jovens professores. Também permitem tirar ilações para o funcionamento das escolas, sublinhando-se que ganham, em termos de resultados nas aprendizagens, se tiverem professores experientes que acompanhem os menos experientes.

Esta é uma das razões que nos deve deixar preocupados com a reforma de tantos professores experientes, como está a acontecer no nosso país. Não desvalorizando as competências "dos milhares de jovens diplomados a querer entrar no sistema de ensino" (actual Ministra da Educação) e a capacidade que estes, por princípio, têm de questionar práticas instaladas e de inovar, é preciso reconhecer que essas competências não são iguais às de muitos professores que agora se retiram.

sábado, 13 de outubro de 2007

ÁGUAS PASSADAS QUE EMPERRAM MOINHOS

Na sequência de outro post - “Os erros pagam-se caro” -, publicado neste blogue, João Boavida, opina sobre a formação dos nossos professores.

A formação dos professores tem sido esquecida e desvalorizada, o que é elucidativo da nossa (in)cultura. Quando a Universidade considera que a formação de professores é uma questão menor ou secundária, está a pensar em termos de uma presunção que tem os dias contados e de uma inconsciência cultural e social hoje inadmissível.

Quando a população não exige professores qualificados, como o faria se fosse com profissionais da saúde, por exemplo, está a mostrar a sua deficiente formação, sendo a pouca importância que dá a isso uma consequência disso mesmo. Mas este facto, que até se compreende quando se refere a pessoas comuns, é inaceitável quando a atitude vem dos culturalmente evoluídos, ou pretensamente evoluídos, pois a cultura devia dar-lhes consciência do que está em causa, e é revelador que não dê. E se a dita mentalidade aparece até entre os profissionais do ensino, como ainda acontece, só pode querer dizer que têm uma consciência profissional (e cultural) com debilidades que desconhecem, para além de ser, no sentido rigoroso do termo, um absurdo.

Ora, quando foi preciso professores para a expansão do sistema educativo, competia às universidades criar processos mais abertos e dinâmicos que respondessem às necessidades, sem deixarem de garantir uma boa formação. Tirando as universidades novas, as universidades clássicas fizeram-no tarde, com relutância, e com níveis de preparação psicopedagógica elementar; digamos que toleraram que a coisa se fizesse. Se tivessem tomado a seu cargo a formação dos professores, na linha da investigação que alguns departamentos universitários faziam há muito, certamente que outro galo teria cantado.

Quando os sindicatos, a seguir ao 25 de Abril, aceitavam, incentivavam e promoviam a inscrição e sindicalização de candidatos a professores, sem querer saber de licenciatura nem de profissionalização, estavam a ver a classe como uma força política e a desprezar a sua efectiva valorização e defesa. Qual seria o sindicato – de electricistas, metalúrgicos, enfermeiros, etc. – que aceitaria inscrições de meros aprendizes ou até simples curiosos sem preparação específica e por vezes nem científica?

Como uma classe assim desvalorizada também aproveitava, segundo parecia, ao Ministério, compreende-se que sindicatos e governos se tenham oposto à criação de uma ordem dos professores, por exemplo. Não percebendo que uma massa heterogénea é tanto mais violenta e perigosa quanto mais desqualificados alberga, o Ministério acabou por ficar refém destas políticas, que depois foi tentando emendar, mas mal. Assim, a formação de professores andou mais de trinta anos ao serviço de grupos de pressão (ou de omissão) e portanto agora não se queixem dos maus resultados e das deficiências do sistema de ensino. Não é uma razão única, mas é de peso.

Note-se que não estou a desvalorizar a classe docente, ou só o faço relativamente ao que ela poderia e deveria ser. Sei dos muitos e belíssimos professores que temos, que a maioria ainda se formou em boas universidades, com cursos exigentes e uma boa preparação científica, e que, apesar de tudo, tiveram alguma preparação psicopedagógica e que a prática acabou por complementar. Mas é evidente que os que tinham responsabilidades neste domínio ficaram muito aquém daquilo que as circunstâncias exigiam deles. E que o Ministério, que tanto gosta de tudo controlar, deixou as coisas entregues a si mesmo, primeiro, a uma espécie de “poder popular” e de ”rebelião das massas”, que tudo mandavam, e depois e às sacrossantas leis do mercado, que tudo resolvem. E isto, note-se, num país onde os arranjistas são mais que as moscas.

João Boavida

Imagem: Queda de Água de M. C. Escher

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