segunda-feira, 31 de outubro de 2016

“90% do caro leitor foi feito nas estrelas”* - Apresentado em Coimbra


Novo livro de Alexandre Aibéo, na colecção “Ciência Aberta” da Gradiva, apresentado no Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, no Departamento de Física, por Carlos Fiolhais, no dia 31/10/2016, pelas 18 horas 

 As estrelas sempre fascinaram a humanidade. Na Antiguidade e mesmo muito depois dela houve quem pensasse que tudo estava escrito nas estrelas, isto é, que os astros determinavam o destino dos seres humanos. O que nunca ninguém pensou nos tempos antigos foi que nós somos feitos da matéria das estrelas. Não, não é uma metáfora, é literal: a maioria dos muitos átomos que nos constituem proveio da explosão de estrelas pesadas, que assim espalharam o seu interior pelo vasto espaço. Hoje, a olho nu ou usando telescópios, quando contemplamos as estrelas estamos a olhar para as nossas remotas origens.

 O astrónomo Alexandre Aibéo é um jovem divulgador científico de primeira água. O seu primeiro livro “Isto não é (Só) Matemática” foi um enorme sucesso. Neste seu segundo livro, o autor expõe o essencial do que hoje sabemos sobre o espaço, seja a Lua e o Sol aqui tão perto, sejam as estrelas mais distantes. Baseado na sua enorme experiência de divulgação científica, recorre a uma linguagem fresca e imaginativa para responder às nossas dúvidas sobre o cosmos. A leitura fica assim acessível a um vasto público. Além do mais, este é o primeiro livro em todo o mundo com um asterisco no título!

*Percentagem em massa.

Os sem-abrigo têm o que merecem!

“No dia do pai fizemos um chegue que já não tinha validade e escrevemos que eram válidos abraços e beijinhos, no número que quiséssemos”. 
“Se um sem-abrigo quando nasceu, e quando ainda tinha pais, poupasse mais dinheiro e não o gastasse todo ainda hoje o teria e não vivia na rua”. 
Esta duas frases foram ditas por crianças portuguesas do sexto ano de escolaridade e reproduzidas hoje, dia 31 de Outubro, declarado como o dia mundial da poupança.

Frases que aprenderam na escola, ou que derivam do que lá aprenderam.

Na escola, onde se espera (esperar-se-á?) que aprendam muito daquilo que contribui para o pensamento crítico. Na escola onde se espera (esperar-se-á?) que os valores humanos e que humanizam sejam respeitados e ensinados.

Na escola que deveria assumir a educação e não a deseducação, que deveria barrar a passagem a quem entra com intenção distinta desta.

domingo, 30 de outubro de 2016

"Eu não tenho o meu corpo, eu sou o meu corpo"



"Não temos a ginástica como ela se faz em França (...). Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra, temos só a tourada… tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados de espinha a melarem-se pelo Chiado”.
Eça de Queiroz


Em 30 de Setembro deste ano, aqui, no De Rerum Natura, publiquei o post: “Jogos Olímpicos e Actividade Física”.

Passados dias (18/10/2016), recebi o seguinte mail que me foi endossado pela SPEF (Sociedade Portuguesa de Educação Física), e que reproduzo, devidamente autorizado, com a satisfação de um simples soldado de um combate duro, estrénuo e sem tréguas, em que Colegas da SPEF e do CNAPEF (Conselho Nacional de Associações de Professores e Profissionais de Educação Física) atingiram estrelas de generalato pela sua persistência, desvelo e empenho na defesa da disciplina de Educação Física, quiçá,  por uns tantos políticos com responsabilidades no sistema educativo nacional, de cultura duvidosa porque amputada, nunca se terem debruçado sobre grandes figuras da verdadeira e ampliada Cultura, como, por exemplo, Ernest Krestchemer, médico psiquiatra alemão, doutor honoris causa, em Filosofia pela Universidade de Wurzburg e Católica do Chile, que nos ensina: “O homem pensa com o corpo todo!” Assim:

“Caro Rui Baptista:

Não sendo um blogger tento acompanhar de lés-a-lés alguns dos mais interessantes e persistentes - o De Rerum Natura é um dos que vou visitando. Também por isso agradeço o facto de me dar a possibilidade de revisitá-lo.

No seio da direção da SPEF, já comentámos a importância da sua participação neste blog para o mundo da Educação Física e do Desporto - é importante (determinante) que a nossa área ocupe, também na opinião, um lugar de destaque.

O seu texto, com estilo muito próprio que lhe é característico, demonstra a perfeita sintonia em que nos encontramos em relação às questões essenciais que (ainda) constrangem o devido desenvolvimento da EF e do Desporto.

Relevo a sua capacidade de nos fazer encontrar com o que já aconteceu - a ideia de revisitar o que tanto Ramalho Ortigão, como a Sociedade de Ciências Médicas há muito tempo valorizavam (o agora tema central do simpósio por nós divulgado), demonstra que que mais do que conhecimento sobre o assunto, é a falta de vontade dos decisores que impede uma merecida valorização da atividade física, educação física e desporto.

Creio já ter lido esta sua referência (ou idêntica) num artigo seu no jornal "Público", na sequência da entrevista por mim dada acerca da EF. Aproveito para agradecer esse artigo que veio reforçar o impacto da entrevista.

A nossa ação (SPEF) tem procurado junto de muitos (políticos essencialmente) demonstrar o valor educativo da nossa área - não só pelas questões ligadas à saúde, que muitas vezes parecem ocupar o universo valorativo da nossa área, mas também pelo valor que as atividade físicas e desportivas (estas de forma muito particular) representam para a construção do indivíduo e, por consequência, para toda uma construção social (já o referia o saudoso José Esteves). É importante termos sempre presente o impacto da prática de atividades desportivas, no contexto da disciplina de EF ou do treino, para o desenvolvimento de múltiplas capacidades; temos tentado contrariar discursos que centram a validade da atividade física apenas em questões salutogénicas - posições exclusivamente hegienicistas reduzem, em muito, as potencialidades educativas da nossa área.

Concluo reforçando a nossa satisfação (e gratidão) pelas ações que tem desenvolvido. A qualidade dos argumentos que conseguirmos trazer para a opinião pública ajudarão, mais cedo ou mais tarde, a que se concretizem as alterações tão necessárias ao reforço do papel central da atividade física, da educação física e do desporto, num país culturalmente mais evoluído.

Manifestamos a nossa disponibilidade para o que considere importante da nossa parte.

Os melhores cumprimentos,
Nuno Ferro (presidente da SPEF).”

Colho do grande Sebastião da Gama: “Haja ou não frutos, pelo sonho é que nós vamos. Basta a fé que nós temos. Basta a esperança naquilo que nós teremos”. Bem a propósito, acabo de ler esta informação da SPEF e do CNAPEF, razão de júbilo para os professores de Educação Física e de enorme reflexo na formação integral da juventude escolar portuguesa que transcrevo no essencial:

“O Conselho Nacional de Professores e Profissionais de Educação Física (CNAPEF) e Sociedade Portuguesa de Educação Física (SPEF) vêm por este meio congratular-se com o anúncio público, efetuado pelo Ministério da Educação, de que a classificação da Educação Física voltará a ser contabilizada para a média de conclusão do Ensino Secundário e na média de acesso ao Ensino Superior.

Esta decisão repõe o estatuto (classificativo) da disciplina, em situação de paridade com as restantes disciplinas do currículo, situação esta que havia sido alterada com a entrada em vigor do decreto-lei 139/2012, sem qualquer justificação pedagógica”.

E se, como defende Paul Ricoeur, “a história é uma mediação entre o passado e o presente num círculo hermenêutico”, debrucemo-nos sobre o século XVIII, porquanto nas páginas dos manuais escolares deveria ser presença obrigatória a profissão de fé de Jean-Jacques Rousseau

“Quereis cultivar a inteligência do vosso aluno? Cultivai as forças que a inteligência vai mobilizar. Exercitai-lhe permanentemente o corpo, feito homem pelo vigor físico, em breve, o será também pela razão”.

E se, como dizem os franceses, tout va bien quand finit bien, congratulemo-nos como Nação pelo passo corajoso dado em benefício da actividade corporal da sua juventude porque, nas palavras do filósofo da festejada cultura francesa, Gabriel Marcel: “Eu não tenho o meu corpo, eu sou o meu corpo”!

ABRIL E O MUNDO EXTRAORDINÁRIO


Filme de animação francês, em exibição entre nós,  de ficção científico-histórica inspirado no universo de Tardi:

NOBEL DA FÍSICA DE 2016 OU A UTILIDADE DA CIÊNCIA PURA


Meu artigo no último "As Artes entre as Letras" que resulta do aperfeiçoamento de um texto aqui publicado no dia do anúncio do prémio:


O Prémio Nobel da Física de 2016 foi atribuído a três físicos teóricos britânicos, que emigraram para os Estados Unidos:  David Thouless (metade do prémio) e Michael Kosterlitz e Duncan Haldane (que dividem entre si a outra metade). O prémio foi atribuído pela descoberta de novas fases da matéria e transições entre elas. Essas fases dizem-se topológicas, por serem descritos com o auxílio de um ramo da matemática chamado topologia, que estuda o comportamento de objectos perante a deformação. A matemática e é a linguagem da Física e tem acontecido muitas vezes que novas descobertas dos físicos requerem o uso de matemática conhecida dos matemáticos. As novas fases descobertas pelos Nobel nos anos 70 e 80 do século passado ocorrem a temperaturas muito baixas em sistemas a duas dimensões - um filme -  ou a uma dimensão – um fio -  em que não se esperava que houvesse transições de fase. A questão a que eles responderam foi: como se comporta a matéria perto do zero absoluto, ou zero kelvin, que corresponde a - 273,15 ºC) nessas dimensões? Era investigação teórica, guiada por mera curiosidade. Mas logo as suas previsões da de novas e estranhas fases foram confirmadas em laboratório.

O que são fases da matéria? Toda a matéria é feita de átomos ou de grupos de átomos, que obedecem às leis da mecânica quântica. Um dos grandes desafios da física é conhecer as propriedades de uma porção de matéria em certas condições de temperatura e pressão: fases de matéria são formas de organização da matéria que conduzem a propriedades semelhantes; transições de fase ocorrem quando há mudanças bruscas de propriedades. Por exemplo,  a água à pressão atmosférica é líquida entre 0 ºC e 100 ºC, mas já é sólida (gelo) abaixo de 0 ºC e gás (vapor de água) acima de 100 ºC. Falamos, portanto, de fases líquida, sólida e gasosa da água, e as transições de fase são, neste caso, fusão do gelo e vaporização da água líquida. Numa transição de fase ocorre mudança de organização dos constituintes: no gelo, as moléculas de água ocupam posições regulares de um cristal, ao passo que na água líquida as moléculas movem-se livremente, embatendo umas nas outras. Os físicos conseguem prever as fases e as mudanças de fase da água a partir das interacções intermoleculares. Um outro exemplo muito conhecido de transições de fase ocorre num íman: uma barra de ferro perde o seu magnetismo a altas temperaturas. Tal acontece porque, à escala atómica, um íman é feito de minúsculos ímanes (falamos de "spins" atómicos, representados por pequenas setas) que  dão origem a magnetização macroscópica, se apontarem para os mesmos lados, ou não, se apontarem para todos os lados. Ora transições de fase em sistemas muito diferentes podem ser aparentados. As mudanças da água e do ferro são conhecidas há muito, mas no início do século XX foram descobertos a temperaturas muito baixas novas fases: certos materiais eram supercondutores - não ofereciam resistência à passagem da corrente eléctrica – e outros eram superfluidos - perdiam a viscosidade, escorrendo com facilidade. Percebeu-se mais tarde que essas novas fases podiam ser explicadas pela mecânica quântica. Abaixo de 2,17 kelvins o hélio-4, a forma mais comum de hélio, que é líquido a essa temperatura à pressão normal, torna-se superfluido, uma vez que os seus constituintes ficam então gregários, com um comportamento conjunto.

Thouless, Kosterlitz e Haldane interrogaram-se se existiria magnetismo, ou superfluidez ou supercondutividade, em sistemas de baixa dimensão, perto do zero absoluto, numa época em que a criação desses sistemas em laboratório era difícil. Dizia o senso comum que só a três dimensões seria possível haver magnetismo. Porquê? Porque são precisas interacções entre átomos vizinhos para existir o comportamento colectivo e a duas ou três dimensões cada átomo não tem vizinhos suficientes.  Perto do zero absoluto muito baixas significa temperaturas mais baixas do que 4 kelvins, que é a temperatura média do Universo (4 kelvins = - 269,15 graus Celsius). Em todo o Universo é na Terra que foram registadas as temperaturas mais baixas: o homem desenvolveu máquinas criogénicas que conseguem arrefecer até ao recorde de 0,000 000 0001 K). Ora os trabalhos daqueles físicos, na altura ainda a trabalhar na Europa, permitiram descrever  descobertas surpreendentes nos laboratórios de baixas temperaturas. A essas temperaturas  podiam existir afinal fases ordenadas a duas ou mesmo a uma dimensões. Tais fases essas que podiam ser descritas coma ajuda da topologia. Por exemplo, num sistema magnético (algo semelhante se passa num sistema superfluido ou supercondutor), podiam-se formar localmente vórtices (turbilhões) de “spins”, mas a uma dada temperatura característica do sistema desaparecia qualquer ordem. Formavam-se pares de vórtices próximos a baixas temperaturas mas esses pares desfaziam-se com o aumento de temperatura, indo cada vórtice “à sua vida".    No fundo ocorria uma mudança de uma estrutura ordenada para outra desordenada, que podia ser associadas a mudanças  matemáticas já conhecidas na tal topologia.

Repare-se que as leis quânticas eram conhecidas, mas o comportamento colectivo emergente a temperaturas baixas era novo e inesperado. De facto, sistemas com um grande número de constituintes em interacção entre si podem mostrar padrões muito complexos, que desaparecem mudando um parâmetro como a temperatura. Sistemas aparentemente simples podem exibir um comportamento complexo mesmo sendo baixa a dimensão (um ou dois).

Um exemplo espectacular de mudanças de fase topológicas foi encontrado na condução de electricidade em sistemas electrónicos a duas dimensões. Foi observado que a condutividade eléctrica dava saltos precisos com a variação de temperatura (é o efeito de Hall quântico, cuja identificação experimental deu o Nobel da Física ao alemão Klaus von Klitzing em 1985 - um prémio não dividido, ao contrário do que  tem sido habitual nos últimos anos). Esses saltos correspondem a mudanças de topologia, isto é, a mudanças estruturais. O efeito permite hoje aos físicos medir constantes fundamentais da Física com grande precisão. A baixas temperaturas a teoria quântica revela alguns dos seus segredos!

O Nobel da Física de 2016 mostra, mais uma vez, o enorme poder da Física como ciência que descreve o mundo em todas as situações, incluindo as extremas. De posse das leis fundamentais, expressas  matematicamente, os físicos conseguem prever a existência de estruturas ordenadas e o desaparecimento da ordem com o aumento da temperatura. Na base da Física Teórica está, em geral,  o conhecimento desinteressado. Mas depois vem a verificação em laboratório das previsões dos teóricos. E, por último, mesmo que demore, vêm as aplicações.  Décadas volvidas, as fases de Thouless e seus colegas começam a ser usadas em artefactos tecnológicos. Já começam a aparecer computadores quânticos e pode ser que eles venham a usar essas fases da matéria a baixas temperaturas. Na altura, os laureados Nobel não faziam ideia nenhuma  de eventuais aplicações. A Física é uma caixinha permanente de surpresas, que é como quem diz:
o nosso mundo não pára de nos surpreender.

BEFORE THE FLOOD - DOCUMENTÁRIO DE LEONARDO DI CAPRIO AMANHÃ NA RTP1 21H

sábado, 29 de outubro de 2016

"Ninguém ganha eleições com apostas na educação"

Não sei se interpretei bem uma declaração que o nosso Presidente da República fez ontem na Colômbia, numa cimeira empresarial ibero-americano.

Reproduzo o que li no jornal: "ninguém ganha eleições com apostas na educação", "ninguém ganha eleições com educação, ganha-se com emprego, com situação económica, com a segurança".

A jornalista que escreveu a notícia refere ter notado um tom de lamento nestas palavras. É possível que sim, pois qualquer pessoa com discernimento percebe que à educação escolar deixou de ser atribuído "valor em si mesma" e também valor na formação dos alunos, no sentido de os tornar representantes da humanidade. E isso não pode deixar de se de lamentar.

Os sistemas educativos estão reféns de exigências globais de ordem económico-financeira e de empregabilidade, às quais devem responder directa e imediatamente, tendo isso de se ver a curto prazo e de modo muito concreto. Por outro lado, os modelos sociais a que as crianças e os jovens têm acesso são esses e não outros.

Noto também o facto de o Presidente da República ter feito este comentário num encontro de chefes de estado sobre empreendedorismo. O contexto parece-me apropriado: é preciso que os políticos, os empreendedores e a sociedade, de modo geral, percebam que a função da escola, sobretudo no ensino básico, é ajudar a formar pessoas. O empreendedorismo é importante, mas vem depois da escola... ou ainda nela, mas em níveis avançadas e/ou especializados.

Precisamos de repensar a função da escola, de nos concentrarmos no que lhe é específico e que mais nenhuma outra instituição assegura. Precisamos de ver a educação que ela proporciona com altruísmo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

“90% DO CARO LEITOR FOI FEITO NAS ESTRELAS”

Artigo publicado primeiramente na imprensa regional.



A colecção “CiênciaAberta”, da editora Gradiva, que recebeu em 2012 o Grande Prémio Ciência Viva, tem desempenhado um papel incontornável para a divulgação científica entre nós. Em quase 35 anos de existência, permitiu aceder na língua de Camões ao que de melhor se escreve internacionalmente na divulgação da ciência, incluindo autores como Carl Sagan, Hubert Reeves, Richard Feynman, Stephen HawKing, entre muitos, muitos outros. São até ao momento 216 títulos fundadores para uma ampla cultura científica e também, diga-se, humanística.

É importante sublinhar que a “Ciência Aberta” deu sempre lugar aos autores portugueses, abrindo as suas portas à “divulgação científica portuguesa”. Esta boa tendência até se acentuou nos últimos anos, principalmente desde que Carlos Fiolhais é o seu director (exactamente a partir do número 201): em 18 títulos, metade são de autores portugueses! Isto também revela que a comunicação e divulgação de ciência têm crescido em Portugal nos últimos anos.

E é sobre um novo autor português da colecção “Ciência Aberta” que me irei debruçar a seguir.

Se voltar a ler o título desta crónica, encontrará o título do último volume da colecção que estamos a referir. Contudo, falta neste título um asterisco, que aparece na capa do livro, e que remete à informação de que os 90% se referem à “percentagem em massa”. O autor deste livro que tem o número 216 na “Ciência Aberta”, é o astrónomo e matemático Alexandre Aibéo, um dos nossos melhores comunicadores de ciência, mais especificamente na área da astronomia. Foi vencedor, em 2010, da primeira edição do concurso FAMELAB – Comunicar Ciência em Portugal, o que muito diz sobre a sua grande qualidade em comunicar bem e de forma acessível e aprazível a todos. E esta qualidade é um perfume que emana ao longo deste seu novo livro através da sua escrita.



Diga-se que este é o segundo livro de Alexandre Aibéo. O seu primeiro foi um muito inspirado e singular “Isto não é (Só) Matemática” (editado pela Quidnovi), sobre o qual Nuno Markl disse que trouxe sex-appeal à matemática.

Este novo livro é sobre a observação do Universo, sobre a astronomia, área que o autor domina bem. E está escrito numa linguagem muito acessível, num tom coloquial que transporta o leitor para uma conversa imaginária com o autor: e essa conversa é tão boa que não se dá pelo tempo a passar. E há também um tom humorístico, não exagerado, que convive muito bem com o rigor científico que o autor imprime à sua escrita, o que torna a leitura deste livro muito agradável e descontraída.

Este livro teve como ponto de partida, segundo o autor, a passagem para este formato de diversas palestras sobre astronomia que tem dado nos últimos anos um pouco por todo o país, em escolas mas não só. A sua grande experiência na exposição e interacção de públicos variados com a astronomia é assim a matriz de que partiu para a escrita deste livro muito útil para quem quer compreender como é que esta ciência nos permite entender o Universo, desde o cálculo “manual” da distância da Terra à Lua, até aos primeiros instantes após o Big Bang.

Para além do conhecimento sobre astronomia que Alexandre Aibéo transmite acessivelmente a qualquer leitor, é de sublinhar o cuidado com a contextualização histórica dos avanços e das descobertas astronómicas. Ao ler este livro, para além de viagens imaginárias às estrelas e galáxias, também fazemos uma viagem pela história da humanidade.

Por fim, dizer que depois de lermos este livro ficamos mais ricos (de conhecimento) e inteligentes: é que o autor também nos ensina a pensar com sentido crítico o que é essencial para sermos melhores pessoas e cidadãos.


António Piedade

20 ANOS DA REDE DE BIBLIOTECAS ESCOLARES

Documentário para o qual fiz declarações.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

NA MORTE DE JOÃO LOBO ANTUNES

Declarações prestei ao Público hoje, ao telefone,. logo que informado da morte do médico João Lobo Antunes:

"Para o físico Carlos Fiolhais, João Lobo Antunes “era uma das mentes mais brilhantes da ciência nacional.”. “Pensava bem e expressava-se bem. Há pessoas que pensam bem mas não escrevem bem. Há outras que escrevem bem mas não pensam bem. Ele juntava as duas, de um modo único”, disse ao PÚBLICO. 

“É trivial dizer isto, mas estamos mais pobres. Eu sinto-me mais pobre, porque ele era uma inteligência viva, alumiava, sentíamos-mos mais inteligentes ao pé dele. Era uma pessoa muito acima da mediania nacional, muito culto e inteligente”, destacou o também professor da Universidade de Coimbra. "

Acrescento:

"Deixou escola, na medicina no Hospital de Santa Maria, no investigação na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e na Gradiva com os seus livros. Há médicos e investigadores que se podem orgulhar de ter sido seus discípulos. Eu orgulho-me de ser seu leitor. A sua escola é formada por todos nós, leitores dos seus livros. João Lobo Antunes vai continuar connosco através dos seus livros, onde ele se revela um homem das "duas culturas", a científica e a humanista, que de facto são apenas uma, a cultura humana. Os livros, como tão bem disse Carl Sagan, fazem magia, ao quebrar a barreira do tempo, quando permitem a nossa comunicação com autores que já não estão fisicamente entre nós.

Lobo Antunes conseguiu elevar a escrita de ensaio em português a um nível tão elevado, que é difícil de superar. Ele era um dos maiores escritores portugueses mesmo considerando qualquer género literário. E vai continuar a ser porque os escritores só morrem quando deixamos de os ler."

Fernando Correia de Oliveira conta aqui o essencial de uma conversa que tive com Lobo Antunes e com ele sobre o mistério do tempo, no Pavilhão do Conhecimento. O médico já aí falava em superar as barreiras do tempo. No ano passado foi  convidado de honra no dia de aniversário do Rómulo- Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra (ver cartaz em cima) e já aí falou, sem constrangimento, do fim do tempo pessoal.
  

A MANDALA DE COLTRANE E A RELATIVIDADE DE EINSTEIN


Novo excerto do livro "O Jazz da Física" de Stephon Alexander, que acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva (na imagem de baixo o desenho da mandala de Coltrane):

"Vou explicar por que razão considero que Coltrane concretizou as ideias da relatividade na sua música. Uma revelação da sua mandala que discuti com Yusef Lateef fornece‑nos uma pista. Tal como o cone de luz de Einstein, a mandala de Coltrane era uma estrutura geométrica que unificava relações entre algumas das principais escalas e mecanismos harmónicos usados no seu repertório. Dado que a prática musical estava no centro da mestria musical de Coltrane, a mandala poderia ter funcionado como um mecanismo geométrico que revelava uma imensidão de padrões do universomusical. Assim que percebi isso, comecei a utilizar a mandala como uma ferramenta para praticar relações de escala entre eles, guiado pelos padrões da mandala.

 Na relatividade restrita, o facto de a velocidade da luz ser fixa leva a que outras quantidades sejam distorcidas para manter a invariância da luz em diferentes quadros de referência. Por exemplo, o comprimento de um comboio para um observador em movimento irá diminuir em relação ao mesmo comboio em repouso, visto também por um observador.

 Da mesma forma, se fôssemos tocar as mesmas notas, mas em duas tonalidades diferentes, essas notas idênticas teriam um som diferente. Não só seriam percebidas como diferentes, como, de facto, ocupariam posições diferentes nessa nova escala. Tocar lá, si, só, na tonalidade de dó, soa como uma sexta, sétima, oitava, terminando na resolução de uma tónica. Se eu tocar o mesmo conjunto de notas, digamos, na tonalidade de si, então começam na sétima, passam a tónica e terminam numa segunda menor acima da tónica. Relacionam‑se de forma completamente distinta com os pontos fixos (oitavas, quintas) da tonalidade em que estão a ser tocadas. Pensamos que essas notas, como o comprimento de um comboio, são uma coisa fixa e única — é a nota lá ou a nota si — mas quando tocadas no contexto de uma determinada tonalidade, são diferentes, distorcidas, devido aos valores fixos da tónica dos intervalos dentro dessa tonalidade. O diagrama de Coltrane é o exemplo mais elegante desta ideia, onde as relações entre as quintas, o trítono, o tetracorde, são estruturas fixas que actuam como uma base para relacionar escalas relativas.

 À primeira vista, a mandala é intimidante, pelo que, para encontrar a estrutura subjacente, a vamos reduzir a um esqueleto que caracteriza a invariância. E tal como na relatividade restrita, assim que tenhamos a estrutura invariante, podemos gerar a complexidade na dinâmica a partir de interacções ditadas pela invariância. O nosso primeiro passo é identificar a invariância, ou a geometria que nos impele a ignorar as notas. Vemos imediatamente um relógio com cada hora representada por um aglomerado de três notas. Por exemplo, ao meio‑dia, vemos um aglomerado de três notas (si, dó, dó sustenido) no número um. O aglomerado de três notas pode ainda ser simplificado se identificarmos cada aglomerado como um ponto. Obtemos agora o mostrador de um relógio com doze horas, o que se reduz ao ciclo de doze notas da escala de música ocidental. Há uma outra coisa peculiar no esquema: Coltrane liga cinco notas de dó repetidas dentro de uma estrela de cinco pontas. O que temos é geometria cíclica no seguinte sentido: se o leitor contar as notas, encontrará sessenta notas que se repetem ao longo do ciclo. No entanto, incorporado nesse ciclo estão doze notas que geram cinco notas de dó dentro do ciclo de sessenta notas — a estrela da mandala. A mandala de Coltrane é, portanto, um ciclo incorporado noutro ciclo.

 Quando identificamos todas as notas de dó na estrela de cinco pontas, obtemos o sistema de doze tons da música ocidental. No entanto, perde‑se informação quando identificamos as cinco notas de dó como uma nota em dó na mandala. Por informação, quero dizer geometria, ou o objecto de cinco pontas incorporado no ciclo de sessenta. Se tentasse manter o pentágono no nosso ciclo de doze notas, obtinha uma escala muito interessante — a escala pentatónica. Somos levados a especular, guiados pela declaração de Coltrane a Amran, que «ele estava a tenta fazer algo semelhante como [reduzir a complexidade em algo simples] na música, algo que surgisse de fontes naturais, da tradição do blues e do jazz». É um facto que a escala pentatónica existe em culturas de todo o mundo e que remonta à China e à Grécia de há dois mil e quinhentos anos. A escala é amplamente utilizada em cânticos gregorianos, espirituais negros (Nobody Knows the Trouble I’ve Seen), música escocesa (Auld Lang Syne), indiana, jazz standard (I Got Rhythm, Sweet Georgia Brown) e rock (Stairway to Heaven). Coltrane andava à procura do que era universal na música e o lugar de partida era determinar que aspecto da música era universal a todas as culturas humanas. Disse também que queria encontrar música de fontes naturais. Bem, a escala pentatónica pode ser gerada a partir de cinco quintas perfeitas. De recordar que a quinta perfeita é naturalmente gerada como a segunda harmónica na série de Fourier, de modo que satisfaz a afirmação de Coltrane de «que estava a tentar fazer algo com origem em fontes naturais».

 Mas a maior das provas é o facto de duas das suas peças mais conhecidas, A Love Supreme e Interstellar Space, se basearem na escala pentatónica. Stacy Dillard, meu amigo e actualmente um dos mais famosos saxofonistas tenor de Nova Iorque, disse que a escala pentatónica é o esqueleto da improvisação em jazz. Por outras palavras, tal como a ideia de invariância de Einstein, a escala pentatónica é uma base a partir da qual a complexidade pode desdobrar‑se numa improvisação de jazz. Isto não quer dizer que a escala pentatónica seja a única base, mas levanta sem dúvida algumas dúvidas sobre a razão pela qual esta escala relativamente simples possui uma tal potencialidade musical.

A mandala de Coltrane contém também outras relações baseadas na geometria cíclica. E há ressonâncias de Schoenberg e Messiaen que utilizaram igualmente ideias da teoria de conjuntos nas suas composições. Um dos mecanismos importantes em improvisação de jazz é a substituição do trítono. O que isto realmente significa é que na passagem de um acorde para outro, é possível substituir o acorde subsequente por outro mais fácil. Discutimos que a progressão 2.o‑5.o‑1.o é uma das progressões mais comuns no jazz e na música clássica ocidental. O trítono não é mais do que a simetria de reflexo no ciclo de doze tons. Então, na tonalidade de dó, a 5.a é um acorde de sol e o seu reflexo/trítono para sol é um ré bemol dominante. Por conseguinte, quando mudamos de sol dominante para dó, podemos tocar ré bemol dominante em vez de sol dominante. Isto é fantástico porque o ré bemol dominante está próximo da 5.a, que é ré. A mandala de sessenta ciclos de Coltrane reflecte também uma simetria de reflexão típica do trítono.

O aglomerado de três notas na oval gera admiravelmente o misterioso tetracorde. Por exemplo, onde vemos o número um, começamos com a nota dó e seguimos as quatro notas seguintes no aglomerado de ovais. Obtemos dó, dó sustenido, mi, fá e fá sustenido, um tetracorde. Tem sido alegado pelo pianista australiano, Sean Wayland, que o tetracorde pode ser usado como mecanismo para tocar através das mudanças de acordes de Giant Steps. Mas há mais. Note que Coltrane desenha um quadrado no aglomerado de três notas. Estas notas são exactamente o ciclo de quintas, que gera a escala pentatónica. E, finalmente, Coltrane sublinha uma das escalas mais amplamente usadas — a escala de tons inteiros, que são as notas que ocupam o círculo interno e externo. Ou seja, a mandala é uma espantosa criação geométrica de Coltrane que relaciona estas importantes escalas gerais, da mesma forma que a transformação do espaço‑tempo relaciona a contracção do comprimento com a dilatação do tempo e os campos eléctricos com os campos magnéticos.

 Este livro não é apenas sobre a analogia entre música e cosmologia, mas também sobre a importância do raciocínio musical e do improviso quando trabalhamos em física. Os físicos teóricos exemplificam a abordagem de John Coltrane à música. Usamos um arsenal de ferramentas conceptuais matemáticas que praticamos através de exemplos elaborados pelos mestres, como Einstein ou Feynman. Da mesma forma, os músicos de jazz como Coltrane dominam a tradição com inúmeras horas de prática. Mas, quer para o físico teórico quer para o improvisador de jazz, não basta simplesmente dominar o material do passado; tem de haver descobertas.

O ser humano é a única criatura que pode descobrir matemática avançada, e a única criatura que pode criar e formalizar a música. Se a beleza e a física do Universo, e a beleza e a física da música, estão ligadas, esses laços existem exclusivamente nos cérebros humanos. Neurocientistas como Rick Granger, György Buzsáki e Ani Patel lutam ainda para compreender o modo como o cérebro pode experimentar, aprender e recordar, e planear e prever. Mas até os ratos, os cães, os ursos conseguem fazer tudo isso. Então, o que distingue os cérebros humanos? O que nos faz únicos em relação aos cérebros não humanos: apreciar música e compreen
der matemática? E criar coisas novas debaixo do Sol: compor, improvisar, descobrir novos factos matemáticos sobre o Universo?

 Alguns músicos, como Coltrane, têm uma capacidade surpreendente de improvisar, encontrar padrões ocultos e regularidades subjacentes a formas harmónicas e usar essa inspiração para gerar tipos completamente novos de sequências melódicas. E alguns cientistas, como Einstein, conseguem encontrar regularidades que escaparam mesmo aos melhores cientistas — como usar as equações de Maxwell e reduzi‑las a uma única formulação unificadora.

Talvez tenhamos todos uma capacidade inerente de fazer cálculos como Einstein ou de improvisar como Coltrane. Talvez a sua singularidade resida na capacidade de levar essas habilidades inatas para além da normalidade. Assim que a área das neurociências tenha conseguido captar os fundamentos da percepção e do pensamento, talvez o próximo passo seja o de compreender as semelhanças e diferenças entre os nossos cérebros, e se é necessária uma nova física — para compreender o que tinham de especial o cérebro de Coltrane e de Einstein para elevar os seus pensamentos até essas visões e descobertas. Alguma da investigação neurológica actual debruça‑se já sobre estas questões: o que acontece quando experimentamos as complexidades da música? Porque é que os cérebros humanos processam o ambiente de forma tão distinta da dos outros animais, concedendo‑nos a matemática, a improvisação e a linguagem?

 Parafraseando o famoso porco de O Triunfo dos Porcos, aparentemente alguns cérebros humanos são mais únicos do que outros. Einstein e Coltrane mostraram‑nos coisas que não teríamos descoberto sozinhos. À medida que compreendemos melhor o nosso cérebro, em geral e em particular, talvez a neurociência comece a mostrar‑nos não só como a forma musical e a forma física se relacionam, mas como é que nós, únicos entre os seres físicos, poderemos ver e compreender essa relação.

 Talvez as respostas a estas questões exijam avanços fundamentais no contexto da física, da arte e das neurociências. As relações profundas entre forma musical e forma física podem ser reveladas compreendendo como ambos os tipos de conhecimento — música e física — surgem ligados nos cérebros humanos e em mais nenhum outro lugar. Afinal, os cérebros, independentemente do seu grau de mistério, são as estruturas mais complexas do Universo. Um dos pais do cálculo infinitesimal, Gottfried Leibniz, teve a ideia de que o elemento irredutível do Universo, o mónada, podia conter a essência do Universo. Que os cérebros humanos, que surgem e operam sob as leis da física, possam chegar a compreender as leis da física, permanece um mistério. Se uma das funções fundamentais do Universo, como aleguei, é improvisar a sua estrutura, talvez que quando Coltrane improvisa ele esteja a fazer o que o Universo faz, e o que o Universo fez foi criar uma estrutura que viria a conhecer o próprio Universo."

Stephon Alexander

“Strangers and brothers”: Revisiting the question of the two cultures


Resumo da minha intervenção hoje na Universidade do Porto no Congresso sobre o "Futuro da Universidade" (na imagem cartaz da peça "Strangers and Brothers" de C.P. Snow):

I will discuss the relationship between science and the humanities, in particular science and literature. The need to build strong bridges between scientific culture and artistic culture will be pointed out. They grew apart in spite of the regular contact between them which have always led to mutual enrichment. 

I compare the claims of two famous public intellectuals, C. P. Snow and Jacob Bronowski (the first was the author of the famous “Two Culture” conference in  1959, where the knowledge of Shakespeare and the second law of thermodynamics were contrasted), in the fifties with those of the Portuguese António Lobo Vilela, a mathematician which made his degree at the University of Oporto in 1931 and was later banned by the “Estado Novo”. Very attentive to scientific culture he wrote a book entitled "Science and Poetry" (Portugália, 1955). 

Later, a teacher with a degree in Physics and Chemistry at the University of Oporto, Rómulo de Carvalho, with the “nom de plume” António Gedeão, found an original way to bring science and poetry together. 

Bearing in mind the history of the debate between science and art, I propose the deepening of the bridges as indicated by Lobo Vilela and Gedeão in order to materialize not a “third culture”, but the further contact of scientific and artistic cultures, in the framework of the vast and rich human culture. 

It is interesting to point out that the two referred Portuguese authors played their cultural roles outside the University. Today a challenge for the University is precisely a better integration of the two cultures in academia, with transforming effects in the outside world.

Perhaps the best title for the desirable approach of the “two cultures” would be that of a series of novels by C.P. Snow: “Strangers and Brothers” (1940). The scientific and literary cultures may still be strangers to each another, but they are irrefutably brothers. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

DINOSAURIER-FREILICHTMUSEUM DE MUNCHEHAGEN (HANNOVER) E OS OVOS DE DINOSSÁURIO DA LOURINHÃ NA TELEVISÃO DE MUNIQUE


À memória de Horácio Mateus (1950-2013) fundador do Museu da Lourinhã

A. Galopim de Carvalho

“Corria o ano de 1994, estávamos, a Isabel e eu, na Alemanha, nos arredores de Hannover, de visita ao famoso museu de ar livre, Dinosaurier-Freilichtmuseum de Munchehagen, quando um canal de televisão de Munique, sabendo da minha presença ali, pretendeu entrevistar-me a propósito da descoberta, na Lourinhã, mais precisamente, em Pai Mogo, de ovos de um dinossáurio terópode com embriões por eclodir, recentemente anunciada pelos seus felizardos achadores, Isabel e Horácio Mateus (na fotografia ao lado), do museu local.

Iniciado por um empenhado grupo de amadores e embora pequeno, o Museu da Lourinhã, dispõe hoje da mais vasta e diversificada representação de fósseis de dinossáurios do Jurássico superior de Portugal, sendo, por isso e graças ao dinamismo dos seus membros, bem conhecido, não só por paleontólogos nacionais e estrangeiros, mas pelo cidadão, em geral.

Soterrados antes de eclodir, os esqueletos dos minúsculos embriões da Lourinhã aguardaram cerca de 150 milhões de anos até que a erosão do terreno os colocou a descoberto e permitiu ao afortunado casal reparar neles e fruir o justo mérito de ter trazido este excepcional achado ao conhecimento do grande público, sempre ávido de tudo o que envolve estes animais do passado, e à comunidade científica, em particular.

Fragmentos de cascas de ovos de dinossáurio encontram-se a cada passo nos terrenos areno-argilosos, por vezes calcários, desta região, uma das mais ricas em ossadas fósseis destes animais, numa riqueza que contrasta com a penúria das verbas investidas pelo Estado na investigação e na divulgação científicas deste sector da ciência e da cultura.

Por todo o mundo são frequentes os achados de ovos destes vertebrados pré-históricos, quase todos nos terrenos do Cretácico, sendo, porém, raríssimos os que encerram embriões. Magnífica instituição ao serviço da paleontologia, que estávamos a visitar, o Dinosaurier-Freilichtmuseum de Munchehagen, a convite do seu director, Herr Bernd Wolter, consta de uma vasta área florestada, em torno de uma jazida com pegadas de dinossáurios do Cretácico (cujas extensão e qualidade estão muitíssimo aquém das nossas da Serra d’Aire e de Vale de Meios, Santarém).

Valorizado por muitas dezenas de réplicas em tamanho real e bem enquadradas no ambiente natural, este parque, simultaneamente, lúdico e educativo, expõe ainda aos visitantes (na ordem das centenas de milhar por ano), oficinas pedagógicas, múltiplas propostas interactivas e um valioso espólio de fósseis autênticos, com destaque e segurança máxima para um ovo de dinossáurio com o respectivo embrião à vista.

Para nos guiar nesta visita de meia dúzia de dias, que incluiu os principais aspectos da geologia regional da Vestefália, tivemos a simpática e grata companhia do Prof. Detlev Thies, da Universidade de Hannover. Foi neste Freilichtmuseum, para mim, um exemplo do que se poderia fazer neste nosso sempre adiado “jardim à beira mar”, que atendi o telefonema do jornalista do dito canal de televisão e, no dia seguinte, recebi toda a equipa de técnicos que trouxe consigo.

Numa dependência deste estabelecimento, disponibilizada para o efeito, tendo por fundo um enorme e bem esticado pano azul e comodamente sentado ao lado do entrevistador, lá fui respondendo, na medida do que me era dado saber sobre o achado que pôs Portugal nos media internacionais.

Porquê eu a ser entrevistado sobre um acontecimento do qual, nem de perto nem de longe, fora protagonista, e como é que a televisão de um país estrangeiro deu comigo em terra sua?

Acontece que, durante mais de uma década, e na qualidade de director do Museu Nacional de História Natural, promovi a concretização de vários projectos de investigação neste domínio. Nestas funções, proporcionei aos jovens investigadores e estagiários do nosso Museu todas as condições necessárias à progressão na carreira que haviam escolhido, arranjei-lhes orientadores científicos no estrangeiro (porque os não havia em Portugal), proporcionei-lhes convívio dentro e fora do País, com especialistas de renome, estimulei-os a publicar os seus trabalhos (e foram muitos) e facultei-lhes as condições para que o concretizassem.

Acresce que, a par desta actividade, se produziram aqui as mais espectaculares exposições de dinossáurios de que há memória em Portugal, com centenas de milhar de visitantes, amplamente noticiadas. Com toda a razão e justificadamente, o nosso Museu voltou a ser (já o fora na viragem do século XIX ao XX) a entidade nacional mais envolvida na paleontologia e na paleobiologia dos dinossáurios, e eu, sem me dar conta disso, passei a ser figura central neste domínio do saber. ”Pai dos dinossáurios” “avô dos dinossáurios” e, até, pasme-se, “o maior especialista português em dinossáurios”, é assim que tenho sido tratado, algumas vezes por alguns jornalistas muito simpáticos, diga-se, mas ignorantes do tema sobre o qual falam e escrevem, e bastantes mais vezes, ao ser apresentado em muitas das palestras que proferi por todo o País (ainda faço uma ou outra), em escolas, centros culturais, bibliotecas municipais, sociedades recreativas, etc.

Nestas sessões, num número que ultrapassa as duas centenas e das quais a comunicação social se foi fazendo eco, sempre fiz questão de esclarecer a assistência sobre o meu verdadeiro papel nesta problemática. Sou, de facto, um acérrimo defensor deste ramo do saber, criei condições mínimas necessárias ao seu ressurgimento, entre nós, de alguns estudiosos nesta área, assumo-me como um divulgador, mas não fui nem sou um investigador nesta área.

O mérito que, eventualmente, possa ter nesta matéria está, sim, em ter trazido estes grandes bichos para o seio da sociedade portuguesa, com todas as vantagens que isso trouxe aos financiamentos da investigação que, só assim, pôde ser produzida e, sobretudo, para a valorização e preservação do nosso invulgarmente rico património paleontológico neste domínio.

Como consequência deste equívoco, que sempre procurei desfazer, foram várias as vezes que a comunicação social veio ao meu encontro, convencida que este ou aquele achado, esta ou aquela notícia tinham algo a ver comigo.

Não raro, caíram sobre mim, indevidamente, os louros de uma ou outra descoberta ou investigação nas quais não tive qualquer intervenção. Foi algo muito próximo disto que trouxe até mim o citado canal televisivo alemão.

Mais uma vez, não deixei de esclarecer que nada me ligava à excepcional descoberta daqueles meus dois amigos da Lourinhã, que tiveram aí o prémio do muito empenho que, anos a fio, puseram ao calcorrear e observar, palmo a palmo, estes terrenos”.
A. Galopim de Carvalho

Da Leveza — Para uma Civilização do Ligeiro

O livro de Lipovetsky, referido em post anterior, em tradução portuguesa saída neste ano de 2016 nas edições 70:


domingo, 23 de outubro de 2016

O INIMIGO DA TURMA

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Filme esloveno sobre a escola em exibição entre nós.

"O ser humano é o mesmo"

Ainda Arturo Pérez-Reverte, o jornalista e escritor espanhol que passou recentemente por Portugal (aqui).

Nas muitas entrevistas que deu não foi (felizmente) meigo ao referir-se aos sistemas educativos ocidentais actuais e à escola para onde mandamos as crianças e jovens. Talvez uma linguagem como a sua, fria e directa, seja aquilo de que precisamos para acordarmos do "encantamento" que, a pouco e pouco, mas muito eficazmente, se vai apropriando do nosso pensamento. Na verdade, vejo que a promessa de auto-aprendizagem minimalista, soft, lúdica, prazerosa, que conduz ao sucesso pleno é levada a sério, ao ponto de ser integradas em orientações curriculares da tutela e operacionalizada na formação de professores e no trabalho escolar.
O ser humano é o mesmo. A questão da cultura como solução mantém-se. É a única solução. Cultura no sentido de formação, educação, conhecimento. A diferença é que, na altura [Iluminismo], sentia-se que ainda era possível mudar muito as coisas, e hoje já percebemos que não. Foi uma ocasião perdida. A condição humana impôs-se às ideias (...) 
É uma cultura de facilidade. Temos medo de traumatizar os meninos com a Ilíada, ou com a História... O objetivo principal passou a ser não haver insucesso escolar, e nivela-se tudo muito por baixo. Os sistemas de educação no mundo ocidental, hoje, são feitos para normalizar (...) 
O mundo é um sítio perigoso, cheio de filhos da puta. O terrível é que o Ocidente e tudo o que custou tanto a construir ao longo dos séculos, liberdades e direitos, com os bons e nobres valores de que falam os protagonistas do meu romance, está a morrer, a desaparecer... E não voltará. Os jovens ignoram-no. Nem se ensina nas escolas (...).

"Não estamos a preparar as crianças para o difícil"


G. Lipovetsky, De la légèreté (2015) — título a lembrar os Tratados Ciceronianos (De leuitate).

Gilles Lipovetsky, filósofo francês, autor de obras, com títulos tão sugestivos como O Império do Efémero (Dom Quixote, 2010), Os Tempos Hipermodernos (Edições 70, 2011) ou a Era do Vazio (Relógio d´Água, 1898), publicou, em 2015, um livro com um título simples, mas elucidativo na classificação do nosso tempo Sobre a Ligeireza

Mais uma vez, Lipovetsky analisa a sociedade actual, com todo o seu desenvolvimento, com o domínio das tecnologias, uma sociedade que caracteriza como a sociedade do "ligeiro": tudo tem de ser leve, fácil, simples, divertido (?)... mas a vida não é assim, a vida é pesada.

Por isso afirma: "hoje [ao contrário do passado] educamos docemente, queremos que as crianças sejam felizes e não os preparamos para o difícil".

O filósofo fala-nos sobre a modernidade, sobre esta sociedade individualista que "oferece condições de vida ligeiras (prazer, turismo, bem-estar, tecnologia) mas a vida é um peso"!

Em entrevista ao Jornal espanhol El País discorre sobre a vida actual, o consumismo e as suas consequências, sobre as mudanças da vida em família, sobre a vida em sociedade e sobre a política, sobre as mudanças que estão a acontecer na Europa. Em relação aos partidos e aos seus falhanços afirma que "há falta de liderança", daí o desencanto dos cidadãos em relação à política e aos políticos, daí o aparecimento de extremismos.

A entrevista pode ser lida aqui .

Mais informações sobre as análises deste filósofo podem encontrar-se, por exemplo, aqui e aqui.

Estudo das humanidades — fundamental para a cidadania


"As Humanidades não são grátis nem baratas, mas são fundamentais para criar o tipo de cidadania que queremos ter" — Mary Beard

Mary Beard, professora catedrática da Universidade de Cambridge, um dos grandes nomes para o conhecimento da Antiguidade Clássica, foi galardoada com o Prémio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais 2016.

No seu discurso de agradecimento do Prémio, e em entrevistas concedidas, lamenta o que está a acontecer nos sistemas educativos que colocam o mundo antigo como algo de opcional e optativo "prescindível em épocas de austeridade". Ler mais aqui.

Ser professor é basicamente uma aposta no futuro


No dia do professor, que, foi neste mês de Outubro, uma colega, professora do Brasil, Solange Amato Amorim, enviou-me o filme que aqui disponibilizo.

Quando tudo nos sistemas educativos parece conjugar-se para entristecer ainda mais os professores, sobretudo os que são particularmente conscientes da sua tarefa, que é ensinar, 
quando a mensagem social é a de que há técnicas fantásticas - sejam elas materiais ou didácticas - que fazem com que todos os alunos aprendam com uma intervenção indirecta do professor ou, mesmo, sem a sua intervenção, 
quando os próprios professores se dispensam de pensar para conseguirem sobreviver, 

vale a pena  ler/escutar as seguintes palavras de um professor, Leandro Karnal, que sendo, óbvias, básicas, reconduzem-nos à essência do ensino:
Ser professor é basicamente uma aposta no futuro. Por isso é que o professor está condenado à esperança. Ele é condenado a acreditar que pode virar algo melhor, que esse futuro seja mais cheio de conhecimento, estabilidade, democracia e igualdade.Eu me sinto alguém que estabelece uma ponte entre o conhecimento formal da humanidade, aquele que nos formou, que nos transformou no que somos, e aquele aluno meu, em qualquer escola, pública ou privada, que não tem acesso a esse conhecimento. Se não tiver acesso a esse conhecimento comigo talvez não venha a ter com outra pessoa.É importante ressaltar que o professor trabalha com o conhecimento mas também trabalha como educador de uma atitude.

"O essencial que os alunos aprendam" e "conhecimento poderoso"


A sociedade portuguesa expressa, na sua generalidade, uma opinião muito convergente a respeito dos currículos escolares: os programas das disciplinas são muitos extensos, tornando impossível um trabalho de consolidação dos conteúdos.

Com as metas de aprendizagem e, depois, as metas curriculares sistematizou-se, para algumas disciplinas do ensino básico e secundário, o que seria o fundamental dos programas, mas a sociedade manteve a sua opinião.

Manifesta-se, agora, o Ministério da Educação empenhado em definir "o que é essencial que os alunos aprendam". Para tanto, está a ouvir os representantes dos mais diversos sectores educativos, sendo os resultados desta auscultação traduzidos em mudanças que entrarão em vigor no próximo ano.

Quem teve ou terá uma palavra a dizer no processo em causa talvez considere relevante reflectir sobre o conhecimento que ganhamos em ter no currículo escolar.

Segundo Michael Young, ao lado, esse conhecimento deverá ser o que designa por "conhecimento poderoso".

Trata-se do conhecimento mais relevante que a humanidade conseguiu construir e, que, nessa medida, traduz a civilização. 

Se esse conhecimento não for adquirido pelas novas gerações instala-se um retrocesso em todos os sectores da sociedade.

Ao contrário, se esse conhecimento for garantido não se conseguirão superar todos os problemas sociais mas muitas crianças e jovens terão possibilidade de aceder ao pensamento autónomo, crítico e criativo.

Este sociólogo inglês nem sempre pensou assim: pelos anos de 1960 a 1980 afirmava o contrário, que o conhecimento que se inclui no currículo escolar é ditado por quem tem poder para o decidir, impondo-o a quem não tem esse poder. Ora, todos os grupos sociais devem ter o mesmo poder, o poder a escolher o seu próprio currículo. 

Reconhece, agora, que o direito conferido a cada grupo para construir um currículo que traduza as suas especificidades não beneficia a tão almejada igualdade de oportunidade, tem o efeito contrário. E são os grupos mais frágeis que mais se ressentem, precisamente por as suas escolham serem menos "poderosas" no sentido acima apontado.

Esperemos que o "essencial que se irá estabelecer que os alunos aprendam" seja "conhecimento poderoso".

Para se perceber melhor esta ideia valerá a pena ver a conferência que, em 2013, Young deu no Brasil e que se encontra disponível no vídeo acima.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A ENTREVISTA DE FERNANDA CÂNCIO A UMA PROFESSORA DO 1.º CICLO DO BÁSICO


“O que em sociedade desagrada aos grandes espíritos 
é a igualdade de direitos e, portanto, de pretensões, 
em face da desigualdade de capacidades, 
de realizações (sociais) dos outros. 
A chamada boa sociedade admite méritos de todo o tipo, 
menos os intelectuais: estes chegam a ser contrabando”.

Arthur Schopennauer

No Dia do Professor, Fernanda Câncio, com o apelativo título “Faltam professores com boa disposição e alegria”, traça o perfil da docência com a ajuda de uma professora  que, aos 59 anos de idade, diz ser preciso ‘sangue novo’ nas escolas” (Diário de Notícias, 05/10/2016).

Fundamenta-se esta peça jornalística no testemunho de Teresa Santos Costa, com 36 anos de docência do 1.º ciclo do ensino básico e, há  quatro anos, ‘professora de apoio’, por ‘achar a função mais adequada à sua idade e por se sentir muito cética, muito desencantada com o momento presente por entender que a escola se tornou numa coisa pouco interessante”. E logo  acrescenta que esse desencanto  possa ser fruto da idade dos professores, como em outras profissões, mas quem sai prejudicado são os alunos: “é aborrecido quando há um número significativo de professores que não estão satisfeitos, estão aborrecidos” (sic.). E aqui se encontra fundamento para  a falta de boa disposição e alegria dos professores “velhotes”! “

A professora em causa, nasceu em Moçambique e veio para Portugal em 1974, aos 16 anos, tendo tirado  o curso do magistério primário (curso  de ensino médio), tendo obtido, posteriormente,  a licenciatura e o mestrado e, ipso facto,  encontra-se hoje no topo de uma carreira docente que mete no mesmo saco docentes do 1.º ciclo do básico e professores do ensino secundário  “ao contrário do que se passa  na generalidade  dos países da OCDE”, como ela própria reconhece. Pelo que julgo saber (que me corrijam se eu estiver enganado), isto passa-se não na generalidade, mas na totalidade dos países deste organismo internacional. A única razão que concedo para o desencanto da entrevistada  pode residir no facto de ter antigas colegas do magistério do 1.º ciclo do básico que,  até uma determinada altura, se reformaram com 32 anos de serviço e 52 anos de velhice mais do que precoce!

Para não serem  tidos como excepção os inúmeros artigos de opinião críticos por mim escritos, ao longo de anos, no “Público” e no blogue “De Rerum Natura”, tendo como leitmotiv a temática da profissão docente, trago à colação passagens de  “uma carta  ao director”, subscrita por  António Cândido Miguéis. Escreve ele, com o desassombro de uma escrita  bem fundamentada que corta a direito:
“Actualmente, existe uma situação no sistema educativo, pós-25 de Abril, que muita gente tem receio de aflorar pelo melindre, pelo desconforto e pelo conflito que, eventualmente, poderá provocar em ambiente laboral, agora que existem os Agrupamentos Verticais (adoro este designação), que mais não trouxeram do que confusão e burocracia, fazendo jus ao anexim de que ‘muita gente junta não se salva’.
(…) quem mais beneficiou com a revolução abrilina foi a classe dos professores primários, hoje designados, e bem, professores do 1.º ciclo. Se no regime autoritário do professor António O. Salazar já era uma classe simpática, respeitada e dignificada – lembremo-nos nas aldeias a ‘importância’ do sr. Cura, do médico e do professor primário, com o 25 de Abril ainda se tornaram mais simpáticos, mais respeitados (e ladinos) ao alcançarem a proeza de ingressar na Carreira Única, igualando (nalguns casos ultrapassando) e colocando-se ao nível do designado professor do liceu de outrora, que, nestes tempos ensandecidos, desceu de ‘importância’ e é um Zé-ninguém” (Público, 24 de Abril de 2010).
De idêntico  modo, vinte anos atrás, foi com uma paz de alma muito reconfortante que li a belíssima crónica da festejada académica Clara Pinto Correia, sobre os professores do liceu, quiçá, porque “o  mundo das palavras cria o mundo das coisas” (Lacan), em que ela escreve  que “mesmo que o liceu, estabelecimento de ensino que ministrava do 5.º  ao 12.º anos de escolaridade, em terminologia dos nossos dias, seja uma palavra que já não se usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso”.

Transcrevo um pequeno trecho do seu exaltatório e premonitório texto, intitulado “O render dos heróis”:
“A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão, pelo contrário, para pensar que não a acontecer. Para evitar que assim sejas temos nos professores do liceu a mais importante das nossas arma. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto” (Diário de Notícias, 22/10/1955).
Refere, ainda, esta professora do 1.º ciclo do  ensino básico que, após o seu curso do magistério primário, obteve uma licenciatura e um mestrado que dava acesso ao topo da carreira docente. Colho de Adam Smith que  “a ambição dos homens é colherem aquilo que nunca plantaram”. Ou seja, um percurso académico plantado sem oportunismos de qualquer espécie!

Ora, para além de um grande facilitismo  de que se revestiram esses diplomas, outorgados por determinadas escolas de ensino superior privado, que distribuíam diplomas qual duvidosa padaria que vende a granel pão de má qualidade e  mal cozido, debrucemo-nos com seriedade  sobre a realidade dos factos. Até ao recente congelamento das carreiras docentes, o acesso dos professores ao 10.º escalão era feito num processo avaliativo de arrepiante facilitismo. Ou seja, esse acesso dependia, apenas, de um pequeno relatório auto-avaliativo relativo à qualidade dos anos de serviço prestados  e da frequência de acções de formação meramente presenciais, por vezes, em temáticas nada relacionadas com as disciplinas ministradas. Não considerando os casos de indivíduos que entretanto faleceram ou desistiram da docência, tratava-se, portanto, de um processo de avaliação laxista em que a percentagem dos que chegavam ao 10.º escalão devia rondar os 100 por cento. Para uma maior clarificação desta situação, seria conveniente que essa percentagem constasse de dados oficiais devidamente publicitados!

Ou seja, todo este aberrante e inédito estatuto da Carreira Docente, arrancado a fórceps em parto demorado, desenrolou-se em reuniões, com o ministro da Educação da altura, politizadas até ao tutano pela Fenprof em nome de uma pretensa democracia que anulou todo e qualquer diferença e postergou  todo e qualquer valor talvez porque “en politique une absurdité n’est pas un obstacle”, como reconheceu Napoleão!