quinta-feira, 27 de outubro de 2016
A MANDALA DE COLTRANE E A RELATIVIDADE DE EINSTEIN
Novo excerto do livro "O Jazz da Física" de Stephon Alexander, que acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva (na imagem de baixo o desenho da mandala de Coltrane):
"Vou explicar por que razão considero que Coltrane concretizou as ideias da relatividade na sua música. Uma revelação da sua mandala que discuti com Yusef Lateef fornece‑nos uma pista. Tal como o cone de luz de Einstein, a mandala de Coltrane era uma estrutura geométrica que unificava relações entre algumas das principais escalas e mecanismos harmónicos usados no seu repertório. Dado que a prática musical estava no centro da mestria musical de Coltrane, a mandala poderia ter funcionado como um mecanismo geométrico que revelava uma imensidão de padrões do universomusical. Assim que percebi isso, comecei a utilizar a mandala como uma ferramenta para praticar relações de escala entre eles, guiado pelos padrões da mandala.
Na relatividade restrita, o facto de a velocidade da luz ser fixa leva a que outras quantidades sejam distorcidas para manter a invariância da luz em diferentes quadros de referência. Por exemplo, o comprimento de um comboio para um observador em movimento irá diminuir em relação ao mesmo comboio em repouso, visto também por um observador.
Da mesma forma, se fôssemos tocar as mesmas notas, mas em duas tonalidades diferentes, essas notas idênticas teriam um som diferente. Não só seriam percebidas como diferentes, como, de facto, ocupariam posições diferentes nessa nova escala. Tocar lá, si, só, na tonalidade de dó, soa como uma sexta, sétima, oitava, terminando na resolução de uma tónica. Se eu tocar o mesmo conjunto de notas, digamos, na tonalidade de si, então começam na sétima, passam a tónica e terminam numa segunda menor acima da tónica. Relacionam‑se de forma completamente distinta com os pontos fixos (oitavas, quintas) da tonalidade em que estão a ser tocadas. Pensamos que essas notas, como o comprimento de um comboio, são uma coisa fixa e única — é a nota lá ou a nota si — mas quando tocadas no contexto de uma determinada tonalidade, são diferentes, distorcidas, devido aos valores fixos da tónica dos intervalos dentro dessa tonalidade. O diagrama de Coltrane é o exemplo mais elegante desta ideia, onde as relações entre as quintas, o trítono, o tetracorde, são estruturas fixas que actuam como uma base para relacionar escalas relativas.
À primeira vista, a mandala é intimidante, pelo que, para encontrar a estrutura subjacente, a vamos reduzir a um esqueleto que caracteriza a invariância. E tal como na relatividade restrita, assim que tenhamos a estrutura invariante, podemos gerar a complexidade na dinâmica a partir de interacções ditadas pela invariância. O nosso primeiro passo é identificar a invariância, ou a geometria que nos impele a ignorar as notas. Vemos imediatamente um relógio com cada hora representada por um aglomerado de três notas. Por exemplo, ao meio‑dia, vemos um aglomerado de três notas (si, dó, dó sustenido) no número um. O aglomerado de três notas pode ainda ser simplificado se identificarmos cada aglomerado como um ponto. Obtemos agora o mostrador de um relógio com doze horas, o que se reduz ao ciclo de doze notas da escala de música ocidental. Há uma outra coisa peculiar no esquema: Coltrane liga cinco notas de dó repetidas dentro de uma estrela de cinco pontas. O que temos é geometria cíclica no seguinte sentido: se o leitor contar as notas, encontrará sessenta notas que se repetem ao longo do ciclo. No entanto, incorporado nesse ciclo estão doze notas que geram cinco notas de dó dentro do ciclo de sessenta notas — a estrela da mandala. A mandala de Coltrane é, portanto, um ciclo incorporado noutro ciclo.
Quando identificamos todas as notas de dó na estrela de cinco pontas, obtemos o sistema de doze tons da música ocidental. No entanto, perde‑se informação quando identificamos as cinco notas de dó como uma nota em dó na mandala. Por informação, quero dizer geometria, ou o objecto de cinco pontas incorporado no ciclo de sessenta. Se tentasse manter o pentágono no nosso ciclo de doze notas, obtinha uma escala muito interessante — a escala pentatónica. Somos levados a especular, guiados pela declaração de Coltrane a Amran, que «ele estava a tenta fazer algo semelhante como [reduzir a complexidade em algo simples] na música, algo que surgisse de fontes naturais, da tradição do blues e do jazz». É um facto que a escala pentatónica existe em culturas de todo o mundo e que remonta à China e à Grécia de há dois mil e quinhentos anos. A escala é amplamente utilizada em cânticos gregorianos, espirituais negros (Nobody Knows the Trouble I’ve Seen), música escocesa (Auld Lang Syne), indiana, jazz standard (I Got Rhythm, Sweet Georgia Brown) e rock (Stairway to Heaven). Coltrane andava à procura do que era universal na música e o lugar de partida era determinar que aspecto da música era universal a todas as culturas humanas. Disse também que queria encontrar música de fontes naturais. Bem, a escala pentatónica pode ser gerada a partir de cinco quintas perfeitas. De recordar que a quinta perfeita é naturalmente gerada como a segunda harmónica na série de Fourier, de modo que satisfaz a afirmação de Coltrane de «que estava a tentar fazer algo com origem em fontes naturais».
Mas a maior das provas é o facto de duas das suas peças mais conhecidas, A Love Supreme e Interstellar Space, se basearem na escala pentatónica. Stacy Dillard, meu amigo e actualmente um dos mais famosos saxofonistas tenor de Nova Iorque, disse que a escala pentatónica é o esqueleto da improvisação em jazz. Por outras palavras, tal como a ideia de invariância de Einstein, a escala pentatónica é uma base a partir da qual a complexidade pode desdobrar‑se numa improvisação de jazz. Isto não quer dizer que a escala pentatónica seja a única base, mas levanta sem dúvida algumas dúvidas sobre a razão pela qual esta escala relativamente simples possui uma tal potencialidade musical.
A mandala de Coltrane contém também outras relações baseadas na geometria cíclica. E há ressonâncias de Schoenberg e Messiaen que utilizaram igualmente ideias da teoria de conjuntos nas suas composições. Um dos mecanismos importantes em improvisação de jazz é a substituição do trítono. O que isto realmente significa é que na passagem de um acorde para outro, é possível substituir o acorde subsequente por outro mais fácil. Discutimos que a progressão 2.o‑5.o‑1.o é uma das progressões mais comuns no jazz e na música clássica ocidental. O trítono não é mais do que a simetria de reflexo no ciclo de doze tons. Então, na tonalidade de dó, a 5.a é um acorde de sol e o seu reflexo/trítono para sol é um ré bemol dominante. Por conseguinte, quando mudamos de sol dominante para dó, podemos tocar ré bemol dominante em vez de sol dominante. Isto é fantástico porque o ré bemol dominante está próximo da 5.a, que é ré. A mandala de sessenta ciclos de Coltrane reflecte também uma simetria de reflexão típica do trítono.
O aglomerado de três notas na oval gera admiravelmente o misterioso tetracorde. Por exemplo, onde vemos o número um, começamos com a nota dó e seguimos as quatro notas seguintes no aglomerado de ovais. Obtemos dó, dó sustenido, mi, fá e fá sustenido, um tetracorde. Tem sido alegado pelo pianista australiano, Sean Wayland, que o tetracorde pode ser usado como mecanismo para tocar através das mudanças de acordes de Giant Steps. Mas há mais. Note que Coltrane desenha um quadrado no aglomerado de três notas. Estas notas são exactamente o ciclo de quintas, que gera a escala pentatónica. E, finalmente, Coltrane sublinha uma das escalas mais amplamente usadas — a escala de tons inteiros, que são as notas que ocupam o círculo interno e externo. Ou seja, a mandala é uma espantosa criação geométrica de Coltrane que relaciona estas importantes escalas gerais, da mesma forma que a transformação do espaço‑tempo relaciona a contracção do comprimento com a dilatação do tempo e os campos eléctricos com os campos magnéticos.
Este livro não é apenas sobre a analogia entre música e cosmologia, mas também sobre a importância do raciocínio musical e do improviso quando trabalhamos em física. Os físicos teóricos exemplificam a abordagem de John Coltrane à música. Usamos um arsenal de ferramentas conceptuais matemáticas que praticamos através de exemplos elaborados pelos mestres, como Einstein ou Feynman. Da mesma forma, os músicos de jazz como Coltrane dominam a tradição com inúmeras horas de prática. Mas, quer para o físico teórico quer para o improvisador de jazz, não basta simplesmente dominar o material do passado; tem de haver descobertas.
O ser humano é a única criatura que pode descobrir matemática avançada, e a única criatura que pode criar e formalizar a música. Se a beleza e a física do Universo, e a beleza e a física da música, estão ligadas, esses laços existem exclusivamente nos cérebros humanos. Neurocientistas como Rick Granger, György Buzsáki e Ani Patel lutam ainda para compreender o modo como o cérebro pode experimentar, aprender e recordar, e planear e prever. Mas até os ratos, os cães, os ursos conseguem fazer tudo isso. Então, o que distingue os cérebros humanos? O que nos faz únicos em relação aos cérebros não humanos: apreciar música e compreen
der matemática? E criar coisas novas debaixo do Sol: compor, improvisar, descobrir novos factos matemáticos sobre o Universo?
Alguns músicos, como Coltrane, têm uma capacidade surpreendente de improvisar, encontrar padrões ocultos e regularidades subjacentes a formas harmónicas e usar essa inspiração para gerar tipos completamente novos de sequências melódicas. E alguns cientistas, como Einstein, conseguem encontrar regularidades que escaparam mesmo aos melhores cientistas — como usar as equações de Maxwell e reduzi‑las a uma única formulação unificadora.
Talvez tenhamos todos uma capacidade inerente de fazer cálculos como Einstein ou de improvisar como Coltrane. Talvez a sua singularidade resida na capacidade de levar essas habilidades inatas para além da normalidade. Assim que a área das neurociências tenha conseguido captar os fundamentos da percepção e do pensamento, talvez o próximo passo seja o de compreender as semelhanças e diferenças entre os nossos cérebros, e se é necessária uma nova física — para compreender o que tinham de especial o cérebro de Coltrane e de Einstein para elevar os seus pensamentos até essas visões e descobertas. Alguma da investigação neurológica actual debruça‑se já sobre estas questões: o que acontece quando experimentamos as complexidades da música? Porque é que os cérebros humanos processam o ambiente de forma tão distinta da dos outros animais, concedendo‑nos a matemática, a improvisação e a linguagem?
Parafraseando o famoso porco de O Triunfo dos Porcos, aparentemente alguns cérebros humanos são mais únicos do que outros. Einstein e Coltrane mostraram‑nos coisas que não teríamos descoberto sozinhos. À medida que compreendemos melhor o nosso cérebro, em geral e em particular, talvez a neurociência comece a mostrar‑nos não só como a forma musical e a forma física se relacionam, mas como é que nós, únicos entre os seres físicos, poderemos ver e compreender essa relação.
Talvez as respostas a estas questões exijam avanços fundamentais no contexto da física, da arte e das neurociências. As relações profundas entre forma musical e forma física podem ser reveladas compreendendo como ambos os tipos de conhecimento — música e física — surgem ligados nos cérebros humanos e em mais nenhum outro lugar. Afinal, os cérebros, independentemente do seu grau de mistério, são as estruturas mais complexas do Universo. Um dos pais do cálculo infinitesimal, Gottfried Leibniz, teve a ideia de que o elemento irredutível do Universo, o mónada, podia conter a essência do Universo. Que os cérebros humanos, que surgem e operam sob as leis da física, possam chegar a compreender as leis da física, permanece um mistério. Se uma das funções fundamentais do Universo, como aleguei, é improvisar a sua estrutura, talvez que quando Coltrane improvisa ele esteja a fazer o que o Universo faz, e o que o Universo fez foi criar uma estrutura que viria a conhecer o próprio Universo."
Stephon Alexander
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