A história que surge nos jornais é bastante simples: alguém - mulher ou homem - escreve sob pseudónimo. A sua escrita passa a ser reconhecida, as traduções para diversas línguas acontecem, surge a possibilidade de um prémio literário de grande prestígio.
Esse alguém não se revela, há que procurá-lo. Ou, pior, parece que se tem revelado fantasiosamente, criando uma personagem, há que procurá-lo para mostrar a sua verdadeira identidade.
Um jornalista persistente tem certas desconfianças, pondera o método a usar para as testar. Chega àquela que se está a tornar bastante fiável e ainda mais aceite: o cruzamento dos sinais exteriores de riqueza com a declaração de rendimentos que, nesta circunstância, evidenciavam pagamentos elevados de uma editora a uma tradutora.
Bingo: a tradutora de quem desconfia encaixa no perfil procurado. A tradutora é a escritora-enigma! A evidência é que a partir do momento em que os livros da escritora se tornaram um caso de sucesso internacional o património financeiro da tradutora subiu desalmadamente.
É o direito à verdade que está em causa, argumenta ele, até porque a escritora inventou uma biografia de bastidores, mentiu aos seus leitores, a quem compra os seus livros e isso não se faz, é feio!
A escritora-enigma pouco ou nada diz acerca do assunto, mantém-se no recato que escolheu. Fala o seu editor, que sabe quem ela é e indigna-se: “acho lamentável o jornalismo que indaga a privacidade”, é um jornalismo "repugnante".
Alguém que preserva tanto a privacidade está escondido num buraco onde o sol nunca entra? Não, ao que parece a pessoa em causa faz a sua vida, apenas escolheu a "ausência", escolheu a reserva da sua vida privada.
Poderemos perceber esta escolha numa contemporaneidade hetero e auto-fágica, que deixou simplesmente de reconhecer a dimensão do privado, da interioridade do eu, e apenas aceita a dimensão pública, da exposição ao mundo, da mostra do eu?
Penso que não. A verdade é que nos fomos esquecendo do direito inalienável que nos assiste de "sermos deixados sós"; ao mesmo tempo, fomos perdendo a capacidade de estarmos sós. Uma coisa leva a outra.
O nosso raciocínio é uno: quem reivindica esse direito tem alguma coisa a esconder ou a temer, por alguma razão perversa não se quer revelar.
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