domingo, 30 de agosto de 2020

NO PROSCÉNIO DA POLÍTICA PORTUGUESA


“A oposição é a arte de estar contra, 
mas com uma habilidade tal que logo se possa estar a favor”
(Maurice deTayllerand-Périgord, politico e diplomata francês, 1754-1838). 

1. Um Governo Dinástico do Tipo Pensão Familiar: Nesta parcela da península ibérica existe um país em que o “nosso primeiro" (ministro) nada ou pouco resolve. Desta forma simplificada e simplista, os problemas do país são secundários, secundaríssimos, desde que as famílias de marido, mulher e filhos, repimpados em cadeiras do poder ( a sorte é não haver netos em idade para serem ministros ou secretários de Estado) a pesarem que nem chumbo no erário público porque, como nos diz o ditado, "o tempo tudo cura" e mesmo que não cure o que importa se essas famílias de eleitos estiverem felizes e aos pulos de contentamento.

E, em contrapartida, o povo chora as sua mágoas sem ter, sequer, um lenço para enxugar as lágrimas! Longe vai o tempo em que os filhos de pessoa inteligentes podiam nascer burras e os filhos de pessoas honesta podiam nascer assaltantes de bancos. Hoje não, a inteligência herda-se como a cor dos olhos, por exemplo, não sendo necessário dar provas que os descendentes de gente ungida desta graça tenham as idênticas capacidades, através de entrevistas e exames psicotécnicos exigentes. E como os lugares, mesmo num governo tão cheio de governantes, como carruagem de metro em hora de ponta, não há lugar para todas essas intelijumências, havendo, como tal, que mexer os cordelinhos da cunha para encaixar uma legião de medíocres em lugares bem remunerados da função pública ou privada.

Época remota houve, em que era dito que quem não tinha padrinhos morria mouro. Hoje, por falta de padrinhos, pessoas ainda que de posse de licenciaturas ou mestrados, obtidos em universidades públicas e honestidade impoluta, estiolam, por vezes, em empregos mixurucos como caixas de supermercados ou vivem mesmo nas garras do desespero por estarem desempregadas pela não subserviência a juventudes partidárias que berram em megafones slogans ou agitam frenéticos bandeiras ao vento.

2. As reviravoltas do mundo da política: Face à inacção, ou falta de pulso, de António Costa em resolver os graves problemas da vida nacional varrendo-os para debaixo do tapete, o Bloco de Esquerda, pela voz de Catarina Martins, denuncia a intenção de um divórcio entre este partido e o PS paras as eleições autárquicas que se avizinham. Ou seja,“nada de novo na frente ocidental”, título de um livro com relatos da “I Guerra Mundial”, da autoria de Erich Maria Remarque, por mim não previsto e escrito várias vezes, de ser um casamento de conveniência em risco de um divórcio litigioso de grande estardalhaço público.

Inopinadamente, chega agora a notícia, que nunca me passou sequer pela pela cabeça, de estar o Partido Socialista a lançar olhares cupidos ao CHEGA para, ao que creio, embora "a profecia ser algo muito difícil de prever , especialmente em relação ao futuro" (Mark Twain), uma hipotética aliança para as eleições autárquicas que se aproximam. Embora no panorama político nacional seja difícil traçar um linha que delimite a esquerda e a direita e os seus extremos, nanja que eu considere o CHEGA um partido de extrema-direita, como tal diabolizado, como fazem, ou melhor queriam fazer crer, até hoje, certos “democratas” da ocidental praia lusitana. Basta de tamanho descaramento de um socialismo que pretende manter-se à tona de água, esbracejando, qual indivíduo preste a perder o pé, procurando boia de salvação, num acordo, "contra natura", com o CHEGA sem qualquer dignidade.

Chega de tanta hipocrisia. Há limites para tudo, até para levarem os socialistas um pontapé nos fundilhos das calças. Desta forma, o Partido Socialista acaba de dar um tiro nos próprios pés por fazer com que as pessoas indecisas em quem votar transformem essa indecisão em certeza de votarem num partido que tem um programa de acção bem delineado e sem tergiversações que tanto parece incomodar o presidente da Assembleia da República, pai tirano do CHEGA e pai permissivo de outros partidos vivendo, aparentemente, com eles como Deus com os anjos.

Deu-nos um retrato perfeito deste “status quo”, António José Saraiva, no seu “Panegírico de um Oportunista”, ao escrever, em citação que faço: “Diz-se que um oportunista é um sujeito sem princípios. Não é verdade. O oportunista tem todos esses princípios necessários aos seus fins. O oportunista é um homem de fins, e tem tantos e tão diversos princípios, conforme o tempo e as circunstâncias. (…) Talvez seja até o único tipo de homem cem por cento coerente, visto que nele não há contradição entre os princípios e os fins. Os fins são sempre idênticos: o interesse e a ambição do oportunista; e os princípios os mais apropriados a esses fins”.

Bem nos disse Paul Ricoeur, que “a história é uma mediação entre o passado e o presente num círculo hermenêutico”. Para infelicidade daqueles que se querem fazer passar por heróicos e denotados combatentes de uma estória de conveniências e traições, não passando de figurantes de triste figura de bastidores deste tenebroso “status quo”!

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

"CONSUMATUM EST", A FESTA DO AVANTE?

“Acreditai que nenhum mundo, 
que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la”
Jorge de Sena, “Carta a Meus Filhos”) 

Tive um amigo que quando lhe perguntava a opinião, sobre um determinado filme, que não era do seu agrado, respondia-me ser como o peixe espada! Pouco dado, que sou, a charadas, indaguei-o o que tinha a ver a sua resposta sobre a minha pergunta a um determinado filme, que ele tinha como sendo de natureza ictiológica, por evocar o peixe espada. Prontamente, esclarecia-me ser chato e comprido!

Por não me considerar falho de todo em todo de massa cinzenta o que me leva a ter dúvidas que exponho publicamente, mudo de agulha ao comboio das minhas inquietações por não ser do género de aceitar tudo que me querem impingir. "Ipso facto”, ressurgem-me as dúvidas não resolvidas por mim expressas no meu “post” aqui publicado com o título: “Jerónimo de Sousa e a Festa do Avante”(17/08/2020). 

Dele cito um pequeno aperitivo de uma suculenta refeição: “É natural que as restrições impostas pelo coronavírus faça diminuir o lucro da festa por um número menor de assistentes e, portanto, o número de infectados e de mortes. Nem que fosse uma só morte já seria bom por não haver dinheiro que pague uma única vida humana”. 

Paradoxalmente, encontro opinião idêntica em Estaline, secretário-geral do Partido Comunista (1922-1935) quando defende que “a morte de um homem é uma tragédia”. Ora, aqui está a confirmação de que uma frase desinserida do contexto em que foi escrita é tremendamente perigosa. A frase completa de Estaline é esta: ”A morte de um homem é uma tragédia, a de um milhão uma estatística”! 

Bem sei eu, que a hipótese de mortes motivada pelo coronavírus na “Festa do Avante”, se, por hipótese, for levada avante, não correrá o risco de um milhão de mortes, mas de uma coisa tenho eu a certeza de ser o Partido Comunista Português um Estado dentro do próprio Estado pela força, persistência e sucesso do braço de ferro entre este partido  e a directora-geral  da Saúde em desnorte sobre o caminho a seguir  durante a vigente e tormentosa pandemia metendo, como tal, os pés pelas mãos! 

A própria Justiça hesita em resolver, "in loco”, este diferendo enviando a providência cautelar recebida no Tribunal do Seixal para Lisboa. É do seguinte teor esse documento contestatório, subscrito por Carlos Valente: “Se temos as discotecas fechadas, os festivais adiados, indigno-me perante a realização de um evento como Avante que vai reunir mais de 33mil pessoas que vão partilhar o mesmo espaço durante três dias, comer juntos e acampar durante a noite”. 

E este adiamento da decisão final, quase em cima da hora  da realização da festa (de 4 a 6 do próximo mês),  é uma afronta para quem nela trabalha, noite e dia “pro bono”, para a sua realização, a não ser que o PCP tenha a certeza da sua realização por um segredo colhido nos corredores do governo.  E este facto é tanto mais insólito por demonstrar o poderio do 4.º partido saído das eleições legislativas de 2019 sem que António Costa assopre o apito de árbitro pondo fim a um jogo altamente perigoso, em que em longos conciliábulos, ou meras conversas de chacha, entre esta força política e a ministra e a directora-geral da Saúde agacham-se elas perante este partido sendo adiada sua solução a favor do primeiro, perante o mutismo de António Costa deixando correr o marfim. 

Posição diferente, com resultados excepcionais, tomou a Alemanha, pela voz corajosa e poderosa da sua chanceler, que tinha proibido festivais até 31 de Agosto deste mês, tendo alargada essa proibição até Novembro de 2020. Será que na Alemanha existe o ditado desprezado em Portugal que “mais vale prevenir do que remediar”, apesar de em 16 de Abril deste ano ter havido naquele país apenas 315 mortos para na presente data esse número ter descido vertiginosamente para três? Tem a Alemanha cerca de oitenta milhões de habitantes, isto é oito vezes mais do que Portugal. 

A área destes dois países é sensivelmente para a Alemanha de 377 mil quilómetros quadrados e para Portugal de 92 mil quilómetros quadrados. Tempos houve que Portugal deu novos mundos ao mundo não querendo hoje, por orgulho ou estupidez desmedidos, aprender sobre a melhor forma de diminuir o número de vítimas do coronavírus (des)informando a população lusa com, senhores mui respeitáveis e outros nem tanto, em longas exposições esotéricas nos meios de comunicação social sobre esta temática em que nem eles se entendem entre si. Inditoso país em que a foice da morte encontra martelo, para matar à fartazana.

Por fim, repiso a pergunta do título deste meu texto:”Consummatum est” a Festa do Avante? "Ou é ela, em palavras pessoanas, “um cadáver que procria?” As respostas a ambas impõe-se em nome de uma Democracia em que é lícito um cidadão pedir explicações ao governo do seu país e por ele ser esclarecido sem jogadas de bastidores. Já chega de brincar ao gato e ao rato numa questão de declarada Saúde Pública e, muito menos, de com ela jogar perigosamente à roleta russa. “Alea jacta est”!

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

H.G. WELLS, OS DIREITOS DO HOMEM E PORTUGAL


Minha recensão no jornal I de hoje: 

https://ionline.sapo.pt/artigo/707008/h-g-wells-os-direitos-humanos-e-portugal?seccao=Mais_i

Walmir Cardoso - Astronomia Indígena

GEOLOGIA SEDIMENTAR

Finalmente, já saiu, em 3ª edição, na Âncora Editora. Pode encontrá-lo na Feira do Livro de Lisboa.

Nikias Skapinakis

Foi no C.O.M. de 1952-53, que conheci o Nikias Skapinakis, alto, magro, de óculos grossos e um bivaque mal enfiado, no alto da cabeça.

Em vez das elegantes botas altas usava, como eu, polainas de cabedal, pretas, alargadas na barriga da perna, idênticas às das praças da GNR. Mal fardado, era o oposto de alguns dos esbeltos e vistosos cadetes que, não fora a estrelinha que todos usávamos nos ombros da camisa ou do blusão, se confundiam com os jovens e elegantes oficiais subalternos nossos instrutores. 

Este lisboeta de nascimento, cujo nome apontava a sua origem grega, e que, só muito depois, soube ser uma personalidade importante na pintura contemporânea, denunciou-se, desde logo, como um contestatário ao regime, frontal e tanto mais corajoso, quanto, então, era arriscado sê-lo e, sobretudo, mostrá-lo. Nunca falámos muito um com o outro, mas a análise que fiz a partir das posições que tomava, era evidente que, para ele, como para mim, aquela tropa que servíamos por obrigação era, na altura, como disse atrás, um dos sustentáculos do regime ilegítimo que conduzia os destinos de um Portugal amordaçado. 

Conservo dele a memória de um militar por obrigação, um tanto introvertido, mal esgalhado numa farda que pouco lhe dizia. 

Guardo ainda um esboço de retrato feito com caneta de tinta azul num pedaço de papel, apanhando-me de perfil, num daqueles serões, no Café Ribeiro, onde esperávamos pelo toque de recolher. 

Esta relíquia, assim lhe posso chamar, cuja existência desconhecia, ofereceu-ma, quarenta e três anos depois, após nos termos reencontrado na exposição que apresentou no Museu do Chiado, em 1996. 

Sempre alheio aquele mundo fardado, o cadete Nikias abordava, sempre que a oportunidade surgisse, assuntos então considerados tabu, relacionados com a vida política nacional ou internacional. Fazia-o, se fosse necessário, na frente dos superiores.

Destes, lembro-me, havia os que reagiam, patrioticamente, contrapondo-se-lhe, e os que prefeririam não o ter ouvido e que, numa situação desconfortável, não sabiam ou não queriam tomar posição.

A. Galopim de Carvalho

UM CRIME CONTRA O PATRIMÓNIO NATURAL

Neste momento estamos a viver um período em que temos outras urgências bem mais gritantes (a da saúde, a da economia…) não é oportuno insistir na concretização do projecto de construção do Museu e Centro de Interpretação de Pego Longo (Carenque), anexo à jazida com pegadas de dinossáurio, da antiga pedreira de Santa Luzia, aprovado pela autarquia sintrense em 2001, há, portanto, quase vinte anos. 

Mas é necessário e urgente travar a degradação e destruição, em curso, da laje que contém as pegadas, protegendo eficazmente o que resta da jazida, na espera de melhores dias. Mas também é necessário denunciar um crime contra um importante património natural, classificado oficialmente, como Monumento Natural, em 1897 (Decreto nº 19/97, de 5 de Maio), por proposta minha, enquanto director do Museu Nacional de História Natural. 

E esse crime é o total abandono deste património, ao longo destes quase vinte anos, por parte dos responsáveis, por lei, em protegê-la, não obstante as muitas insistências que foram feiras, quer directa e pessoalmente, quer através da comunicação social. Diz o Artigo 7º, do mesmo Decreto, que cabe ao Instituto de Conservação da Natureza “e das Florestas” e à Câmara Municipal de Sintra a fiscalização e, portanto, a protecção deste Monumento Natural.

A verdade é que, nestes quase 20 anos, gastos que foram cerca de 8 milhões de euros (na abertura dos dois túneis da CREL) a jazida está transformada numa autêntica lixeira, onde a vegetação arbustiva e arbórea cresce livremente, destruindo a delgada laje que contém as pegadas. Lembremos que a dita laje corresponde a uma camada de calcário argiloso muito delgada (10 a 15 cm de espessura) e frágil, com cerca de duas centenas de pegadas, de onde sobressai, pela sua excepcional importância, um trilho com 132 metros de comprimento, no troço visível, formado por marcas subcirculares, com 50 a 60cm de diâmetro, atribuídas a um dinossáurio bípede.

Além deste, considerado, na altura (e ainda é), o mais longo trilho contínuo da Europa, identificaram-se, na mesma superfície, pegadas tridáctilas, atribuíveis a carnívoros (terópodes), parte delas igualmente organizadas em trilhos. A topografia do terreno permite uma boa adaptação do local aos fins em vista, dispondo do lado SW de um pequeno relevo (residual da exploração da pedreira) adaptável, por excelência, a miradouro, de onde se pode observar, de um só golpe de vista e no conjunto, toda a camada – uma imensa laje pejada de pegadas – levemente basculada no sentido do local do observador, numa panorâmica de justificada e invulgar grandiosidade.

Sempre procurei mostrar que o grande potencial turístico deste Monumento Natural está ainda no facto de a jazida se situar na vizinhança de uma grande metrópole e numa região de intensa procura turística (Sintra, Queluz, Belas) e, ainda, o de ser servida por duas importantes rodovias, a via rápida Lisboa-Sintra (IC-19), por Queluz, e a Circular Regional Externa de Lisboa (CREL-A9) que a torna acessível pelo nó de Belas e, no futuro, mais comodamente, pelo de Colaride.

A. Galopim de Carvalho

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

PORTUGAL, PAÍS DE ACHISMOS

“Tudo o que sucede, sucede por alguma razão”
(Gabriel Garcia Marquez).

Neste país há o culto exagerado da conjugação do verbo achar: “Eu acho, tu achas, ele acha”! E logo surge da algibeira dos inúmeros “achistas” o milagroso “doutor Google” que com o simples carregar de teclas responde às mais complexas e simplórias perguntas da ciência, da cultura, das artes, do desporto como, por exemplo, ter chegado o dia milagroso, que perante a “complexidade” de saber, de cor e salteado, quem foi o primeiro Rei de Portugal se obtém como resposta, um momento que vou ver.

Vai daí, sacando da algibeira o telemóvel, do mais elevado topo de gama, que substitui o cérebro de galinha, encontra-se a milagrosa e complexa resposta, a exemplo das personagens dos filmes de cowboys americanos de antigamente que retiravam do coldre, com a rapidez de “Speedy Gonzalez”,  o  revólver para se defenderem de inimigos que punham em perigo a sua vida. Ocorre-me ao caso, a picaresca estória do indivíduo que sentado na bancada de um estádio de futebol sentindo algo a cair-lhe em cima da cabeça levando a mão ao cocuruto, vira-se se para os amigos e diz: “Querem ver que parti a cabeça!” Falso alarme, não era massa sanguinolenta mas dejecto de pombo com disenteria.

Outra história me bate à porta da memória, esta que se contava na “Minerva” (Deusa da Sabedoria), conhecida livraria da antiga Lourenço Marques. Um tipo novo-rico pede para ver livros. Ao ser-lhe perguntado se tinha preferência por autores, responde que não, acrescentando quero tantos metros de livros de rica e vistosa encadernação para encher as prateleiras de uma luxuosa estante que mandei fazer.

Após me iniciar tardiamente no mundo imenso das novas tecnologias em que me sinto um náufrago de jangada na busca, com pouco ou nenhum êxito, que me leve a uma praia de “experiência de saber feito “ (Camões) em que possa trocar a minha tanga em farrapos por um traje decente, já nem falo por uma casaca preta do tipo do grilo falante do Pinóquio, mas apenas por um terno de ir à missa aos domingos e dias santos. Mas porque ”burro velho não aprende línguas”, no dizer sábio do povo, nem isso consegui tendo-me que contentar com a minha veste remendada com que naveguei à deriva em mares procelosos.

Se por acaso alguém souber, por um qualquer coscuvilheiro, que tenho em casa luxuosos volumes da Enciclopédia Portuguesa Brasileira, desde já esclareço que muitos dias e horas passei a folheá-la e a lê-la na busca esforçada de encontrar resposta para as minhas inquietações no alcance de uma luz que alumiasse a minha ignorância, ou resguardasse a minha memória do estudo de anos a cargo dos meus neurónios que, devido à minha idade avançada, tenho a obrigação de fazer descansar de falhas que a minha idade avançada justifica, embora me possa considerar um privilegiado nesse aspecto. 

Aquilo que sei, para além do conhecimento escolar, e até mesmo esse, devo-a, em grande parte, a minha mãe (na fotografia aqui publicada), senhora de notável cultura literária profunda conhecedora e admiradora dos grandes vultos de escritores portugueses, com predilecção por Eça, vírus queirosiano que me deixou em herança que muito prezo e não só, como Émile Zola, de que me relatava as dores horríveis de uma das suas personagens que padecida de gota.

Para além disso, dominava ela, perfeitamente, de forma oral e escrita, para além da língua materna, francês, inglês, espanhol, italiano e russo. Da língua russa, conto o caso de um médico meu amigo de Lourenço Marques se me ter lamentado de aprender russo com a dificuldade de não encontrar nesta cidade alguém com pudesse trocar uma palavras. Tive uma ideia salvadora! Como vais a Lisboa de graciosa (licença paga  pelo Estado a funcionários públicos do Ultramar para gozarem férias, de tantos em tantos anos, em Portugal continental) dou-te a morada de minha mãe que sabe um pouco de russo. Regressado a Lourenço Marques, logo ele me procurou para, com júbilo incontido, me dizer: “Tua mãe não sabe um pouco de russo, sabe muito”!

Eu do pouco que sei, sem a modéstia do filósofo ateniense Sócrates, “só sei que nada sei”, devo-o, em parte, à minha progenitora com a exclusão das línguas estrangeiras de que sou um verdadeiro nabo com excepção do inglês e francês escritos que traduzo razoavelmente. Assim, por exemplo, sempre que lhe perguntava o significado de uma palavra mais esotérica, respondia-me vai ver ao dicionário a que eu contrapunha, agora não posso porque já vou atrasado para as aulas do liceu, sem que a minha desculpa a demovesse. Mas “rien de rien”, escreve num papel e quando regressares a casa vai ver ao dicionário.

Era minha mãe para além da sua cultura uma pedagoga de mão cheia, ensinando-me que o esforço compensa contrariando o princípio dos nossos dias de cotas para negros e brancos, homens e mulheres, inferiorizando à partida ambos com se não existisse entre eles cidadãos ocupando, por mérito próprio, lugares de topo dentro da hierarquia social sem necessidade de serem levados ao colo de uma sociedade complacente em contraste com o âmbito desportivo em que os lugares do pódio são apenas três para aqueles que lutam noite e dia, quer faça sol ou chuva, seja verão ou inverno para ascenderem a lugares de destaque e em que os negros têm um papel de grande relevo em corridas de velocidade no atletismo pelo facto do respectivo endomísio das fibras musculares ter maior teor de viscosidade.

Claro que no domínio do conhecimento cognitivo as diferenças serão esbatidas, ou mesmo desaparecidas, quando for possível pôr “cheaps” nas crianças ao nascer sem se tonar um negócio rendoso só acessível a progenitores de maiores meios de riqueza. Como costumo dizer a expressão de que o sol quando nasce é para todos sofre tratos de polé por a generalidade dos cidadãos gozarem o sol à soleira dos casebres e os privilegiados em hotéis de 5 estrelas nas ilhas Bermudas. Bem mais democrático é o desporto que obedece ao princípio a cada um segundo as suas possibilidades em que os melhores jogam em clubes de futebol do topo mundial e outros em clubes da distrital dos respectivos países.

O princípio marxista "a cada um conforme as suas necessidades" entrou em falência pelo facto imoral da respectiva nomenklatura ter vários automóveis de luxo na garagem, luxuosas datchas e outros um simples pedaleira para se irem e virem do serviço com a algibeiras, no fim de um mês, em trabalhos árduos, com uma centenas de rublos que pouco valem em termo de euros.  

No caminho que tracei para a minha vida nunca arredei, por maior que pudessem ter sido as vantagens, um milímetro que fosse da minha honra, porque acredito, como Jean-Jacques Rousseau, que “uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém tão pobre que tenha de se vender a alguém”! É esta a sociedade que desejava para o meu país sem pretensões de educar o mundo, sonhando, apenas, em ser cidadão de uma sociedade sem pulhas!

Que triste se torna o meu acordar com o pesadelo da desgraçada realidade!

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A POLÉMICA PORTUGUESA DO SÉCULO XIX AOS DIAS DE HOJE

“Um dia, quando olhares para trás, 
verás que os dias mais belos foram aqueles em que lutaste"
(Sigmund Freud)

A polémica com uma forte componente agonística tem raízes profundas na tradição portuguesa e no contexto europeu. Mas para que se afirme em toda a plenitude e riqueza argumentativa é condição, sine qua non, não haver despotismo que combata ferozmente a liberdade de expressão. Um ataque sem quartel a este direito teve lugar na Inglaterra, no decurso do século XVIII, quando o bispo e filósofo George Berkeley (1685-1753) escreveu e fez publicar, no jornal Guardian, uma série de artigos contra os livres pensadores.
Passado mais de um século, neste rectângulo peninsular assistiu-se a uma polémica de grande escândalo nacional com o encerramento das chamadas “Conferências do Casino”, por ordem do tristemente célebre ministro Ávila e Bolama. Este “acto tolo” (Antero) suscitou o protesto veemente dos seus organizadores: “Em nome da liberdade de pensamento, da liberdade da palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público, únicas garantias da justiça social, protestamos, ainda mais contristados que indignados, contra a portaria que manda arbitrariamente encerrar as salas das Conferências democráticas”.

Uma das finalidades consignadas no programa dessas conferências por doze dos seus doze mentores, rezava: “Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos”. Sem desprimor para todos os outros subscritores, nesta tribuna de ideias e críticas sociais destacaram-se personalidades da vida cultural e política nacional como Eça, Antero, Teófilo Braga e Manuel de Arriaga que viria a ser o primeiro presidente da República Portuguesa sendo sucedido por Teófilo Braga.

Vivia-se então em plena época de ouro da polémica em Portugal em que pontuava a verrina de Camilo - segundo Jacinto Prado Coelho “o demónio da polémica violenta estava-lhe na massa do sangue” - arrogando-se ao direito “em não respeitar os tolos”. Igualmente, com a pujança da sua figura atlética, retratada por ele próprio quando diz ter nascido para “hércules de feira”, destaca-se a Ramalhal figura que “retesa o arco com toda a musculosa força da sua prosa” (João Maia) para escrever, de parceria com Eça, As Farpas.

Esta obra literária de grande fôlego, com a finalidade, segundo os seus autores, de “farpear a velha Tolice Humana que tem cabeça de touro”, está repleta de páginas de sátiras mordazes às letras, às ciências, à política e aos costumes de uma época em que “o sapateiro é secretário do centro reformista da sua rua, e alia o labor do botim ao da eloquência política, o que dá algumas vezes em resultado empregar a metáfora no calçado e a sola e vira no discurso”.

Eça de Queiroz (1845-1900), pairando no domínio doutrinário, pugnou para que a polémica se desenrolasse num clima de plena igualdade entre os contendores: “Estabeleçam-se forças lisas e desatravanque-se a arena. Não se admitem cá tiaras que resguardem as frontes, nem degraus a que não seja lícito subir, nem púrpuras roçagantes em que seja fácil tropeçar. Os atletas querem-se nus como os típicos lutadores da estatuária grega”.

Este notável romancista, apesar de declarar o firme propósito de “acutilar instituições, costumes, tipos humanos e aplicar-lhes a moralizadora ‘bengalada do homem de bem’”, não deixou de alertar para a incomodidade em se cruzarem ferros: “Eu digo – é útil balar como os carneiros; ganha-se a estima dos néscios, as cortesias do chapéu do Roxo [conceituado chapeleiro com loja no Rossio], palmadinhas doces no ombro, de manhã à noite uma pingadeira de glória. Mas ir sacudir, incomodar o repouso da velha tolice humana traz desconfortos, vêm as caluniazinhas, os odiozinhos, a cicuta de Sócrates às colheres”.

Bem a propósito (2008), José Saramago denunciou o estado actual de um país sem fibra nem raça para discutir os graves problemas nacionais: “Falta em Portugal espírito crítico: estamos um pouco aborregados”. Desta forma, em censuras que se entrecruzam, estão irmanados, em um mesmo propósito de coragem, Eça e Saramago, dois dos grandes vultos da literatura nacional, ainda que com datas de nascimento separadas entre si de 77 anos.

Mesmo sem os sinos dobrarem a anunciar a morte da polémica, é de temer que resquícios de longos anos do lápis azul dos coronéis do Estado Novo tenham reflexo numa possível falta de coragem das gerações dos nossos dias em participarem activamente na discussão pública dos momentosos problemas sociais da vida nacional. Para além da crença de Vitorino Nemésio de que “o português gosta de ver um bravo, ou mesmo um louco, ao parapeito”, trata-se mesmo de um dever de cidadania dos povos do mundo livre.

Obras consultadas:
As Grandes Polémicas Portuguesas, II volume, Editorial Verbo, Lisboa. 1967.
As Farpas, coordenação geral e introdução de Maria Filomena Mónica, PRINCIPIA, Publicações universitárias e científicas S. João do Estoril, Cascais, 1.ª edição, 2004.
As Polémicas de Camilo, recolha, prefácio e notas de Alexandre Cabral, tomos I,II e III, Portugália Editora, Lisboa 1967.

Os enigmas da "Narrativa da Educação do Século XXI" - 2

Agradeço à leitora Fátima André o comentário que teve a amabilidade de fazer ao texto Os enigmas da "Narrativa da Educação do Século XXI, no qual apresenta a informação que me permite escrever este apontamento.
O evento referido nesse texto, que eu não havia conseguido situar, onde o representante da educação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) fez as afirmações que comentei, teve lugar no mês passado, foi realizado online para vários países e teve a participação de um elevado número de professores e de outros "agentes educativos", muitos deles do mundo empresarial. O evento, com a designação "Virtual Educa Connect - Encontro Virtual Internacional", teve o programa que pode ser visto aqui e foi reconhecido pela Direcção Geral da Educação (DGE) (ver aqui),

Apelando aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos na Agenda 2030 das Nações Unidas, teve o foco, como se percebe, nos "desafios" que a pandemia colocou à "comunidade educativa global", os quais implicam necessariamente uma renovação tecnológica. Nas palavras da DGE:
[Os destinatários eram] responsáveis do setor da Educação, professores, responsáveis de recursos humanos, bem como profissionais de PME’s e grandes empresas, que procuram conhecer os mais recentes avanços, pesquisas e resultados educativos e tecnológicos face à crise da COVID-19. As temáticas [situaram-se] em quatro grandes blocos:
- Desenvolvimentos exponenciais em Educação e Formação;
- Quarta revolução industrial: novos contextos, novas exigências;
- Inovação para uma Educação de qualidade e inclusiva na pós-pandemia;
- Iniciativas de impacto no desenvolvimento de novas competências cognitivas.
Demorei algum tempo a percorrer a informação disponível e devo dizer que não encontrei nada de novo nem de interessante: repetiram-se, repisaram-se slogans superficiais, mistificações e contradições, ingredientes fundamentais da "narrativa da educação do século XXI".

Importa, contudo, ver a intervenção desse representante da OCDE que incidiu (mais uma vez!!!) num slogan que é também um enigma "Educar os aprendizes para o seu futuro, não para o passado":


E, também, a intervenção do Ministro da Educação de Portugal:


Este evento terá continuação no Congresso Mundial Virtual Educa" que se realiza em Novembro deste ano em Lisboa  (ver aqui e aqui).

sábado, 22 de agosto de 2020

PRECISAMOS DE SABER E DE REAGIR PARA EVITAR TORNARMO-NOS EM "WINSTON SMITH"


"... a regra geral de proibição de utilização de meios de vigilância à distância, 
com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador, 
é plenamente aplicável à realidade de teletrabalho (...) 
a utilização de tais meios implica uma restrição desnecessária 
e seguramente excessiva da vida privada do trabalhador. 
Por esta razão, soluções tecnológicas para controlo à distância 
do desempenho do trabalhador não são admitidas."
Orientações da CNPD, 2020.


O jornal Expresso desta semana, na secção de Economia, num artigo de Cátia Mateus com o título Empresas portuguesas espiam funcionários em teletrabalho, retoma as Orientações da Comissão Nacional de Protecção de Dados, publicadas em 17 de Abril do corrente ano, sobre o controlo à distância dos empregados pelos seus empregadores.

Vai mais longe o artigo: noticia que, não obstante a clareza dessas Orientações, múltiplas empresas usam programas informáticos de monitorização/vigilância remota para recolher dados dos empregados enquanto estes se encontram ligados à "rede". Incluem-se na categoria de "dados" os estritamente profissionais, mas também os pessoais.

Acontece que, tratando-se de programas ocultos, o empregado não é informado que está a ser vigiado e, em sequência, julgado com vista a eventuais punições. E muito menos lhe é pedido o consentimento informado, o que, no caso, mesmo se obtido, carece de validade por se tratar de uma prática manifestamente ilegal.

É ilegal, mas com o argumento Covid, que se tem tornado absoluto, está em crescendo! E sem que nada de relevante aconteça a quem põe tão grosseiramente em causa "valores a que damos valor" (privacidade, responsabilidade, confiança...). Prevalece a justificação de que a detecção é muito difícil alindo-se-lhe o medo da denúncia, mas a ignorância e a indiferença também têm relevância. Por isso, é preciso tomar consciência da enormidade e da gravidade do problema.

Reproduzo palavras de uma jurista, especialista em privacidade e proteção de dados, que prestou o seu depoimento à jornalista:
[os programas facultam a possibilidade] de controlo quase ilimitada sobre as ações do trabalhador” (...) “é possível ao empregador controlar todas as ações realizadas no computador. Pode aceder a dados pessoais ou fotografias arquivados (...) externos à prestação do trabalho, controlar todas as teclas usadas [permitindo a replicação de mensagens] e a velocidade a que o faz ou até extrair capturas de ecrã que permitem saber as páginas por onde o trabalhador navega”, além dos já conhecidos registos áudio e vídeo (...) permitem “saber, a cada momento, o que o trabalhador está a fazer, quem está em casa do agregado familiar, incluindo menores”. 
A jornalista ouviu também a secretária-geral da Comissão Nacional de Proteção de Dados que reconheceu que este tipo de programas...
... “recolhe manifestamente em excesso dados pessoais dos trabalhadores, promovendo o controlo do trabalho num grau muito mais detalhado do que aquele que pode ser legitimamente realizado no contexto da sua prestação nas instalações da entidade empregadora”. 
Recomendo, pois, a leitura das Orientações desta Comissão (acima identificadas) e uma especial atenção ao modo como cada um de nós, seja empregador ou empregado, solicita e faculta os seus dados e os dados de pessoas próximas. Acrescento o dever, que nos cabe, de denúncia às entidades competentes de situações de vigilância abusiva, incompatíveis com a lei e a ética. Se não fizermos um sério esforço de consciencialização, se não quisermos saber e se não reagirmos tornar-nos-emos mais depressa do que poderemos imaginar em Winston Smith, o trágico personagem de Mil novecentos e oitenta e quatro, construído por George Orwell, que sabia bem do que falava/escrevia.

AINDA A BATALHA DE CARENQUE

Texto na sequência de vários outros entre os quais o que se pode encontrar aqui.

Devo começar por dizer que nunca abandonei as batalhas cívicas que travei. Perdi umas, mas foram mais as que ganhei. Já não tenho a saúde e a energia físicas de então, mas o cérebro ainda funciona e os dedos ainda mexem no teclado do computador. É importante acrescentar que, nestas lutas, continuo a contar com a solidariedade de muitos colegas e amigos. 

Isto para afirmar que estou determinado a levar esta até ao fim, para o que necessito da colaboração de todos os amigos e seguidores no Facebooke e Blogues e essa colaboração começa por ser partilharem, com os respectivos amigos, os desenvolvimentos que forem tendo lugar, numa espécie de reacção em cadeia, numa utilização plena das chamadas Redes Sociais. - Alma até Almeida! – dizia o meu pai. Dou, assim, início a mais uma, talvez a última, batalha para tentar salvar a importante jazida com pegadas de dinossáurios de Pego Longo, na vizinhança de Carenque, nome este por que é mais conhecida. 

É uma luta que dura há 34 anos, que teve uma fase muito dura entre 1990 e 1993, que foi ganha com a abertura dos dois túneis da CREL sob a jazida, luta que continuou e que teve outra vitória em 2001, com a aprovação, pela Câmara Municipal de Sintra (era presidente a Drª Edite Estrela) do projecto do Museu e Centro de Interpretação de Pego Longo, após luz verde do então Instituto de Conservação da Natureza. Projecto que morreu com o final desta vereação, numa qualquer gaveta da Autarquia. 

De 2001 para cá, ou seja nos últimos 19 anos, não obstante as múltiplas diligências que nunca deixei de fazer, a degradação com destruição parcial da jazida agravou-se a um ritmo exponencial sob o total abandono e negligência das entidades que tinham, por lei, obrigação de a vigiar e proteger, nomeadamente as duas últimas vereações da Autarquia e o Instituto de Conservação da Natureza que, em 2007, foi também “da Biodiversidade” e, em 2012, mudou para “das Florestas”, abandono e negligência que não estou na disposição de esquecer. 

Já o disse e volto a dizer que estamos a viver um período em que temos outras urgências bem mais gritantes, sendo imperioso que, pelo menos, se tente travar a degradação e a destruição em curso, intervindo no sentido de remediar, consolidar e, em suma, proteger eficazmente a jazida, na esperança de melhores dias, em que haja disponibilidade financeira para valorizar um património natural cuja importância extravasa as nossa fronteiras.
A. Galopim de Carvalho

Sim, há culpados pelos "piroverões"

Artigo de Jorge Paiva saído no jornal Público do passado dia 19 de Agosto e que republicamos com um outro título (aqui). Precisamos de prestar a melhor atenção às palavras de especialistas que sabem e que, além disso, se pautam pela independência. É o caso deste biólogo. Ver outro artigos seus: aquiaquiaqui.








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"O Governo do Líbano foi avisado, até por escrito, de que havia o risco do que ocorreu. Depois, demitiram-se como se isso fosse a condenação que mereciam pela mortalidade e destruição de que foram culpados.

Por cá temos a tragédia dos anuais Verões com incêndios florestais devastadores e mortíferos, apesar de há mais de 40 anos termos (eu e outros) alertado, muitas vezes, no que estavam a transformar o nosso país, particularmente as regiões Norte e Centro: numa pira contínua de lenha altamente inflamável, isto é, eucaliptal (produtos aromáticos voláteis e altamente incandescentes) e pinhal (resina, volátil e altamente incandescente) intensivos, contínuos e contíguos.

Mostrei isso de helicóptero a um Presidente da República (Mário Soares). Não valeu de nada. 

Em vez de travarem ou obrigarem a uma arborização cuidada e ordenada, fizeram ainda pior: extinguiram os Serviços Florestais. Assim, deixou de haver qualquer entidade competente para regularizar e não deixar arborizar da maneira desmesurada e contínua, como aconteceu durante estas dezenas de anos. Por outro lado, nos Serviços Florestais havia os guardas florestais que viviam no meio rural. Eram vigilantes permanentes e conheciam bem a região onde circulavam. Podia haver incêndios, mas nunca foram tão devastadores e mortíferos como os actuais. 

Os culpados são todos os governos que temos tido, particularmente a partir da extinção dos Serviços Florestais. 

Porém, todos esses governantes, não só não assumem o que fizeram, como não são capazes de admitir o erro e, no mínimo, criarem novamente os Serviços Florestais. Além disso, muito do património construído (particularmente casas florestais) ainda existe, embora a maioria bastante delapidado.

Enquanto não se tomarem medidas efectivas, vamos continuar a ter “piroverões” (pyra = fogueira) e mortes, por termos uma ignisilva (igneus = fogo; silva = floresta) contínua e contígua. 

Além dessas medidas, é fundamental também acabar com os “pirotelejornais”. Quando há incêndios, já vi telejornal inteiro com imagem de fundo de um pavoroso incêndio. Além de absurdo, é de uma tremenda falta de ética. Sabemos que não se noticiam suicídios mostrando imagens, por poderem levar à tentativa de suicídio de pessoas fragilizadas ou com essa tendência. Todos nós sabemos que existem incendiários: uns doentes (pirómanos) e outros por interesse ou vingança estúpida.

Há já muitos anos, quando ainda dava aulas (tenho 86 anos), numa altura de elevado número de fogos florestais de um piroverão, fui, uns dias, com alunos meus para a parte alta da serra da Estrela, de ampla visão panorâmica. Numa noite, depois de assistirmos a um desses pirotelejornais, fomos para cima de um rochedo observar o horizonte. Passado pouco mais de uma hora, começaram a surgir incêndios no horizonte. Foram cerca de meia dúzia, durante as horas que ali estivemos.

O espectáculo desses pirotelejornais é vergonhoso, particularmente as reportagens dos repórteres locais, pois estes “jornalistas” têm imensa preocupação em estarem a mostrar imagens dos incêndios enquanto falam e, muitas vezes, até parece estar a relatar um jogo de futebol. Com os noticiários das estações de rádio, também há uma enorme falta de ética e profissionalismo. Há uns anos, no início de um mês de Abril excepcionalmente quente, no noticiário das 5 da manhã da Antena 1, ouvi o locutor anunciar que o dia iria ser novamente quente como o dia anterior, “mas os incêndios ainda não começaram”. Prefiro não qualificar!... 

Por outro lado, nestes noticiários (televisão e rádio), os entrevistados são sempre os mesmos: ministros; secretários de Estado; autarcas; comandantes de bombeiros e quejandos. Este ano até ouvi o Presidente da República afirmar que os pavorosos incêndios na região de Oleiros resultaram de falta de vigilância por causa do confinamento a que a actual pandemia obriga.

Felizmente, a população portuguesa não é imbecil, como muitas vezes querem fazer transparecer as desculpas apresentadas pelos entrevistados nestes show offs televisivos. 

Deviam era anunciar o número de vítimas mortais que os piroverões já provocaram nestes últimos 40 anos, muitos dos quais bombeiros voluntários, pois faltam os profissionais que conheciam o terreno e sabiam combater fogos florestais, que eram os técnicos e guardas florestais. Além disso, os guardas florestais apercebiam-se das pessoas que circulavam pelas florestas e baldios. Assim, havia muitíssimo menos fogos postos por incendiários e por pirómanos.

Infelizmente, vamos continuar com piroverões, plenos de fogos florestais, mortes e enormes despesas, muito superiores à de uns Serviços Florestais bem estruturados e um país ruralmente ordenado. 

Finalmente, com tantos incêndios florestais e sem Serviços Florestais com capacidade de rearborizar ordenadamente, as regiões montanhosas do país, estão a transformar-se em desertos de rocha nua, por erosão pluviosa, com consequente arrastamento de solos, como já é visível, particularmente no Norte e Centro do país."
Jorge Paiva

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Pegadas de dinossáurio de Pego Longo ao abandono





Esta importante jazida, classificada como Monumento Natural, em 1997, é hoje um misto de lixeira e matagal com ervas, arbustos e árvores, tudo entretanto nascido e enraizado na própria laje que contém as pegadas.

A primeira batalha que travei com a Administração pela salvaguarda da jazida com pegadas de dinossáurio de Pego Longo (Sintra) na vizinhança imediata de Carenque (Amadora) durou três anos, entre 1990 e 1993, com larga participação da comunicação social. Saldou-se por uma feliz vitória, concretizada com a abertura dos dois túneis da CREL, sob a grande laje que contém as pegadas, o que custou cerca de oito milhões de euros à fazenda pública. À cautela, o Museu Nacional de História Natural, da Universidade de Lisboa, era eu, então, o director, procedeu à moldagem, em latex, da totalidade do trilho (132 m). De tudo isto dei pormenorizado relato no livro “Dinossáurios e a Batalha de Carenque”, Editorial Notícias, 1994.

É verdade que esta penosa batalha foi ganha, salvando-se as ditas pegadas, mas, de então para cá, deixadas ao abandono, assistimos, impotentes, à sua destruição, não obstante as múltiplas insistências que intentei ao longo destes 26 anos. Em 2001, a Câmara Municipal de Sintra, ao tempo da presidência da Drª Edite Estrela, aprovou o projecto do “Museu e Centro de Interpretação de Pego Longo” e, quando tudo se encaminhava no sentido da musealização do sítio, mudou a vereação do PS para o PSD e o projecto perdeu-se no fundo de uma qualquer gaveta.

Esta importante jazida, classificada como Monumento Natural, em 1997 (Decreto n.º 19/97 de 5 de Maio), é hoje um misto de lixeira e matagal com ervas, arbustos e árvores, tudo entretanto nascido e enraizado na própria laje que contém as pegadas. Uma vergonha para a Câmara Municipal de Sintra e uma vergonha ainda maior para o Instituto de Conservação da Natureza (e agora das Florestas, um enorme disparate como se as florestas não fizessem parte da natureza), a quem, por lei, compete fiscalizar e zelar por este valioso património.

Estamos a viver um período em que temos outras urgências bem mais gritantes, sendo de bom senso que, pelo menos, se tente travar a degradação em curso, protegendo eficazmente a jazida, na espera de melhores dias. Se mesmo isto não for feito. que se possa, ao menos, assacar responsabilidades às duas supraditas instituições.


A. Galopim de Carvalho
Artigo saído no jornal Público de dia 15 de agosto

David A. Kirby - Science & Hollywood

ESTUDO AUTÓNOMO

 

Novo post de Nuno Pereira (psiquiatra):

    Em tempo de pandemia, o ensino a distância (EAD), baseado sobretudo em aulas expositivas virtuais e nos clássicos trabalhos para casa (TPC), pôs a descoberto a falta de autonomia no estudo de muitos alunos, com a consequente desmotivação destes, apesar do empenhamento redobrado dos pais. As tecnologias da informação e da comunicação (TIC), ferramentas muito úteis de ensino e aprendizagem, não determinam o modelo pedagógico. A capacidade de autoaprendizagem constitui um pré-requisito do ensino com intermediação tecnológica e, independentemente de o sistema educativo ser presencial, digital ou híbrido, assume importância decisiva no êxito escolar e na atualização contínua. Ora, o etéreo “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória” aprovado pelo Ministério da Educação parece não contribuir para a criação de estratégias concretas de desenvolvimento do estudo autónomo.

    A falsa dicotomia, há muitos anos ultrapassada, entre a escola antiga centrada no professor e a escola nova centrada no aluno pode fazer desfocar o objetivo primordial que é tornar o estudante capaz de transformar a informação em conhecimento e de o colocar em prática. Sendo a pessoa objeto e sujeito, aspetos polares inabordáveis em simultâneo, justifica-se uma metodologia aberta, em que o professor oscila entre transmissor e facilitador e o aluno, entre recetor e construtor. Perante a massa avassaladora de informações no mundo atual, o aluno que não sabe estudar com autonomia fica com fraca preparação académica e seriamente limitado para continuar a aprender de forma consistente. Claro que a formação integral da pessoa se realiza aprendendo a conhecer, a fazer, a conviver e a ser, em diferentes ambientes não só formais, como não formais e informais.

    Para melhorar os resultados escolares, quer o Ministério da Educação quer os professores e os encarregados de Educação adotam estratégias distintas. O primeiro tende a condicionar a escola para baixar a fasquia da exigência. Os segundos encorajam o aumento do esforço dos alunos e do número de aulas, sem contar com as explicações privadas, o que pode explicar que Portugal tenha uma das maiores cargas de aulas e de trabalhos para casa (TPC) da Europa. Nem abdicar da excelência nem investir na quantidade de esforço e de aulas representam boas soluções. Só uma prática pedagógica que envolva o ensino do conteúdo curricular e do modo de o aprender.

    Potenciar as capacidades naturais dos alunos para estudarem eficientemente, isto é, com eficácia e menor despêndio de energia, eleva a autoestima e a motivação e garante mais tempo para dedicarem a outras atividades extracurriculares e estarem com a família e os amigos. Assim, integrar, no âmbito de cada disciplina, a partir do 2º Ciclo de escolaridade, o método de estudo autónomo não só promove o sucesso escolar, como otimiza a aprendizagem ao longo da vida.

 

                                                                               Nuno Pereira (psiquiatra)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

JERÓNIMO DE SOUSA E A FESTA DO AVANTE


Não há festa nem festança onde não vá Dona Constança” (ditado popular).


Quando eu era rapaz, lá vem a saudade de tempos idos bater-me à porta, havia o dito sem pés nem cabeça, que não resisto em reproduzir: “Há dias de manhã em que um tipo à tarde não deve sair à noite!”

Isto vem a propósito de uma notícia publicada  no “Notícias de Coimbra”, em que o Partido Comunista, não sei se de manhã, à tarde ou à noite, deu à luz esta afirmação: “PCP diz que Festa do Avante não se faz por questões financeiras, mas para dar esperança!” Deu esta Festa (2011) um lucro  de  564.128 euros, com bilhetes sem pagarem  IVA e os lucros livres de impostos, factos estes que não podem  ser considerados ganhos de simples e escassos tostões. Uma esperança lucrativa em cifrões, portanto!

É natural que as restrições impostas pelo coronavírus faça diminuir bastante estes lucros decrescendo, com um número menor de assistentes, o número de infectados e de mortes. Nem que fosse uma só morte já seria bom por não haver dinheiro que pague a perda de uma única vida humana! 

E daqui nasce a pergunta: que faz o PCP aos lucros fabulosos da sua festança, realizada ano após ano? Distribui-os pelos ricos e a esperança pelos pobres deste país com olhos gulosos de aliciamento de novas e tonificantes inscrições no chamado “Partido do Povo”? Denominação esta, aliás,  disputada, outrossim, pela classe possidente  do Bloco de Esquerda!

Haja decoro, já que vergonha nem vê-la, em distribuir esperança por quem mal tem dinheiro para comprar o pão que o diabo amassou! Nem as criancinhas acreditam mais em histórias do tipo da carochinha depois do aluimento do Muro de Berlim e queda do comunismo na ex-URSS e países seus satélites. 

Actualize-se, Senhor Jerónimo de Sousa, para não ser tido por dinossauro português do século em curso, a viver o sonho da Coreia do Norte longe, portanto, da realidade do mundo em que nasceu e vive! Vivemos em resquícios de um tempo  em que "Moscovo era o sol da terra" (Cunhal) e longe, muito longe, de tempos em que a palavra patriotismo era um honra tendo passado a uma espécie de vilipêndio. Assim decorrem os dias num país triste e melancólico no final do segundo decénio do  século XXI.

Um mundo de fronteiras lusitanas, que ultrapassou o perigo de cair no comunismo durante a época gonçalvista, não fosse a coragem dos militares da Amadora, sob o comando do falecido e corajoso Coronel Jaime Neves, a quem Portugal deve a  doação de amor pátrio: “Mama sumae” (aqui estamos prontos para o sacrifício).

Saiba a Pátria honrar os Comandos dessa conturbada época sem os deixar cair num esquecimento que desonra!

domingo, 16 de agosto de 2020

FAZER O SOL NA TERRA: MINHAS DECLARAÇÕES AO EXPRESSO


No Expresso de há duas semanas foram publicadas algumas das declarações que fiz à jornalista Catarina Vasconcelos sobre o ITER - o grande reactor de fusão internacional que está em construção perto de Marselha.  Divulgo aqui o meu depoimento na íntegra:

CV - Porque se crê que este projeto possa ser mais revolucionário do que outras experiências de fusão nuclear? 

CF - A máquina é do mesmo tipo de outras já existentes, designadamente a máquina europeia JET- Joint European Torus, perto de Oxford, no Reino Unido, mas bastante maior. Máquinas desse tipo são chamadas "tokamaks", nome que vem de um acrónimo russo para "câmara toroidal com bobinas magnéticas", inventada  no final dos anos 50 pelos físicos russo Igor Tamm (Nobel da Física em 1958) e Andrei Salharov (este muito conhecido pela defesa que fez dos direitos humanos; ganhou o Nobel da Paz em 1975). O tokamak do ITER, em Cadarache, perto de Marselha, que começou agora a ser montado uma vez que a base acabou de ser construída, é um grande "donut" metálico no interior do qual está um vácuo onde se injecta um plasma: núcleos de deutério (hidrogénio pesado: um protão e um neutrão; o núcleo de hidrogénio normal é só um protão) e trítio (hidrogénio muito pesado, com um protão e dois neutrões) e electrões.  O gás é aquecido por uma resistência eléctrica e mantido afastado das paredes (que derreteriam à temperatura atingida pelo plasma) graças a um enorme enorme magnete.

Com o aquecimento o deutério pode-se fundir com o trítio dando hélio, libertando neutrões e energia.  esta forma de energia nuclear  é parecida com a que é produzida pelo Sol e do qual depende toda a vida na Terra, embora a reacção seja um pouco diferente (e também com as das bombas de hidrogénio, que são parte dos actuais arsenais nucleares). 

Portanto, a ideia é imitar o Sol (ou outra estrela, já que o Sol é uma estrela banal entre muitas outras)  na Terra. A promessa é ter energia limpa (ao contrário das actuais centrais nucleares, não se formam produtos radioactivos de longa duração, que seja necessário armazenar algures) e segura (ao contrário de Chernobyl é possível desligar o reactor numa fracção de segundo) usando combustível que temos em abundância (o hidrogénio, que está na água, por exemplo a do mar; o trítio é uma forma muito rara de hidrogénio, que se regeneraria no ITER a partir do choque do hélio com o lítio num lençol envolvente).

O JET não conseguiu produzir mais energia do que a que lá se mete. O ITER pretende obter dez vezes mais energia do que lá se mete. Não será ainda suficiente para produzir electricidade com uma normal central eléctrica que funciona com uma turbina. Tal é o objectivo de um projecto que se sucederá ao ITER, denominado DEMO, que terá um output 25 vezes maior do que o input. O ITER vai fornecer a potência de 500 MW ao passo que o DEMO vai fornecer 2000 MW (para comparação, a central termoeléctrica de Sines dá 1256 MW).

Mas há bastantes problemas a resolver: a engenharia é muito complicada e os custos têm vindo a derrapar. Não haverá fusão no ITER antes de 2035 e os custos até lá estão previstos  oficialmente em 20 mil milhões de euros, mas há quem diga que vão ser mais do triplo disso. O custo  real passou é mais do dobro do previsto  há 10 anos. Por dificuldades políticas, económicas e técnicas o ITER tem-se atrasado. Antes de haver fusão em 2035 prevê-se que haja plasma dentro da máquina em 2025.  Receio que os preços aumentem e os prazos deslizem. Actualmente estão a gastar 2 mil milhões por ano (para comparação a ajuda este ano à TAP vai ser  1200 milhões) e os custos vão subir à medida que o reactor for sendo construído.

A ideia é boa em princípio, mas será que em 2050, quando o DEMO poderá levar a um modelo, o PROTO, comercialmente viável. Noto que o ITER não é um reactor, mas uma experiência: nunca ser+a ligado à rede eléctrica. O DEMO será um reactor experimental, com ligação à rede eléctrica. O PROTO será já um reactor comercial.  Não haverá formas economicamente mais competitivas de obter energia, usando as chamadas "energia alternativas", designadamente a solar? A questão é: será mais viável construir o Sol na Terra ou aproveitar melhor a energia que o Sol nos envia? 

CV - Qual é a importância, na sua perspectiva, de juntarem esforços países como o Japão, os Estados Unidos, a Coreia do Sul, a Índia à União Europeia, na corrida a uma energia "limpa"? 

CF - E também a Rússia e a China, que são superpotências rivais dos EUA. Só este facto é extraordinário, juntarem-se os países que têm mais de 80% do PIB do mundo e mais de 50% da população num grande projecto científico. O CERN - um projecto de física fundamental - não tem a mesma amplitude geográfica (basicamente é a União Europeia mais a Suíça, o Reino Unido e a Noruega) e custou menos  (o acelerador LHC  custou cerca de 15 mil milhões até agora).

Há ainda projectos espaciais, tendo os Estados Unidos uma agência (NASA), a União Europeia outra muito menor (ESA), e a Rússia e a China outras, havendo forte concorrência entre algumas delas (a NASA e a ESA vão cooperando).

Aprende-se muito a trabalhar em conjunto. O ITER mostra que é possível a cooperação científico-técnica à escala global. Só por isso vale a pena! Não faz muito sentido que os países que estão a trabalhar em conjunto para preparara o futuro se enfrentem numa guerra. Portanto, o ITER pode ser visto como uma espécie de vacina que previne uma terceira guerra mundial. Mas não nos iludamos: não há projectos muito concretos para o DEMO. Tanto os Estados Unido como a Rússia como a China podem ter no futuro projectos próprios para produzir energia de fusão nuclear. A verdade é que ninguém sabe como vai ser, a prazo, o futuro da fusão nuclear controlada.

Um aspecto positivo para nós, portugueses e europeus, é que o ITER se situa-se num sítio da Europa, não longe daqui, e dá  oportunidades de trabalho a físicos e engenheiros portugueses e negócios à indústria portuguesa. Mas temos de o ajudar a pagar: 45% dos custos são cobertos pela União Europeia (agira sem o Reino Unido, que está a negociar como é que vai continuar associado). 

CV - Ian Chapman defende a fusão em detrimento da cisão. De que forma é a fusão nuclear mais vantajosa? 

CF - Chapman é um jovem físico especialista em fusão nuclear que preside à agência nuclear britânica. Está a defender  a sua dama, como é natural, mas a energia nuclear convencional ainda há cerca de 10% da energia eléctrica em todo o mundo (muito mais do que isso em países como a França). A produção de energia nuclear de cisão está levemente ascendente, provavelmente porque essa forma de energia não produz gases de efeito estufa como o dióxido de carbono.

A grande vantagem da energia nuclear de fusão, que também não produz esses gases pois a combustão não é química mas nuclear, é que não temos que armazenar resíduos radioactivos, além de as operações serem potencialmente mais seguras. Além disso, a energia libertada por processo é cerca de três vezes maior na fusão do que na cisão. Mas a energia nuclear de cisão é uma tecnologia bem desenvolvida ao contrário do que se passa com a energia nuclear de fusão.  que com o ITER está ainda no seu início. 

CV - O que falta para que a fusão nuclear possa resultar numa energia comercialmente viável? Ou, por outra, acredita que poderá vir a ter um papel importante no sector da energia a nível mundial? 

CF- Falta desenvolver a tecnologia. É um grande desafio... Claro que há simulações em computador, mas têm de se fazer  o processo na realidade. As temperaturas são elevadíssimas, pelo menos tão altas como no interior mais profundo do Sol. Os campos magnéticos  têm de ser muito fortes para manter o plasma apertado longe das paredes do tokamak; o íman deve dar para levantar um avião!

Os neutrões, que são neutros e por isso incontroláveis pelos magnetes, saem do interior do tokamak a velocidades muito grandes (há até quem receia que eles possam prejudicar os materiais de que é feita a máquina e o seu invólucro, tornando alguns componentes radioactivos, uma posição que é contestada por outros; há que experimentar).

Com toda a franqueza, eu  tenho esperança que a energia nuclear de fusão possa satisfazer as grandes necessidades de energia da humanidade, mas não tenho - ninguém tem a certeza - absoluta. O processo pode-se revelar caro demais. Ou complicado demais, dada a escala do reactor comercialmente viável. Há quem prossiga com o desenho de  máquinas alternativas mais leves, que possam interessar investidores provados já que o ITER é um projecto público  internacional. Ou pode haver descobertas tecnológicas que levem a outras formas de produção de energia.

É muito arriscado  fazer previsões! Eu direi que, com 64 anos, já não vou ver a fusão nuclear a operar de forma corrente, oxalá veja de forma experimental. Talvez o meu filho vá ver: antes de 2060 não deve haver energia de fusão comercialmente viável. Sendo assim, acho que a fusão nuclear não vai contribuir para resolver o problema grave das alterações climáticas. Virá, se vier, demasiado tarde. Temos de desenvolver mais ainda as energias alternativas, tecnologias que são mais leves e baratas.

UM PROFETA DO CONTÁGIO

 Minha recensão no jornal I da passada quinta-feira:





Acaba de sair na editora Objectiva o livro Contágio. Uma história dos vírus que estão a mudar o mundo (no original, Spill-over: Animal Infections and the next human pandemic, W. W. Norton, 2012), a mais proeminente das obras do norte-americano David Quammen, 72 anos, autor de 11 títulos de não-ficção sobre temas de ciência, natureza e viagens, e de cinco de ficção.  Nas obras de não-ficção já tinha escrito sobre o vírus Ébola, que causa a doença com o mesmo nome, e sobre o vírus VIH, que causa a SIDA. 

De entre os livros de ficção distingue-se Walking Out, por ter sido guião de um filme.  A sua escrita é muito apelativa, pela proximidade que revela e suscita em relação à ciência e à Natureza. Ele é um dos autores da National Geographic, que, há muitos anos, muito mais do que um magazine popular, é uma instituição que zela pela nossa consciência planetária. Quammen é um grande viajante: tem corrido as sete partidas do mundo, incluindo os lugares mais recônditos, para poder ser testemunha directa dos fenómenos que relata.

O novo coronavírus tornou Quammen famoso porque, em Contágio, ele tinha, de certo modo, previsto a “Próxima Grande Epidemia,” isto é, a que hoje grassa.  A Covid-19, com mais de 700.000 vítimas mortais até à data, situa-se entre o Ébola, cujo surto em 2014-2016 causou 11.300 mortos, e o VIH, que já causou desde 1981 mais de 30 milhões de mortos. Mas, no livro agora saído em português, Quammen discutiu, além dessas duas epidemias, várias outras, como a SARS, que em 2002-2003 causou 800 mortos. e outras menos conhecidas, como as causadas pelo vírus Hendra, que surgiu na Austrália em 1994, e pelo vírus Nipah, que surgiu na Malásia em 1998. 

Todos elas são exemplos de zoonoses, a passagem, ou spillover, de microorganismos de animais para humanos. Dada a previsão feita em Contágio, o New York Times solicitou a Quammen em Janeiro passado um artigo de opinião sobre o novo coronavírus que começava então a grassar na China, artigo este que foi incluído na edição portuguesa. O autor estava nessa altura a escrever um livro sobre o cancro, mas o seu editor pediu-lhe para pôr esse tema de lado e começar a escrever, a todo o vapor, um livro sobre a pandemia causada pelo SARS-CoV-2. Estou certo de que o novo livro, agora em elaboração, vai sobressair na lista, a aumentar todos os dias, de obras sobre vírus e infecções virais.

Vale a pena ler Contágio por que está muito bem escrito e traduzido (não se nota a heterogeneidade que se poderia recear de haver quatro tradutores e dois revisores). Impressiona o rol de referências e de pessoas que ajudaram o autor nas suas pesquisas. O livro tem a mais valia de um prefácio de Pedro Simas, o virologista português que ganhou visibilidade nos últimos meses, no qual é identificada Odette Ferreira, a cientista portuguesa de quem Quammen fala, embora por alto, no Cap. VIII, ao referir a descoberta do VIH de tipo 2.

Contágio não é bem uma história, como vem no subtítulo português, mas diversas histórias, entrelaçadas pelo fenómeno da zoonose. Algumas delas são trepidantes não só pelo grau de destruição viral e pelos dramas humanos associados, mas também e sobretudo pelos avanços no conhecimento conseguidos por médicos, virologistas e outros cientistas em vários sítios do globo. As conversas com esses cientistas são muitas vezes reproduzidas ipsis verbis, em diálogos que parecem cinematográficos. Ao ler Contágio sentimo-nos na linha da frente, ansiosos como o próprio autor por saber mais. Ficamos inteirados em directo e ao vivo das catástrofes acontecidas ou a acontecer. É raro encontrar autores de ciência que escrevam com tanta vivacidade.

Como é que Quammen previu, no seu livro de há oito anos, a actual pandemia? No seu website diz com alguma modéstia que não foi ele, mas sim os especialistas com quem falou. Tem razão. Mas o seu mérito foi ter estado com as pessoas certas nos lugares certos. Sim, a probabilidade era grande de haver uma nova pandemia causada por um vírus passado de animais para humanos, uma mensagem, bem clara no livro, que o autor resume no seu site do seguinte modo: “Sim, haverá uma Próxima Grande Pandemia. Será causada por um vírus. Esse vírus será novo para os seres humanos, saindo de um animal selvagem. Que tipo de animal? Muito possivelmente um morcego. Que tipo de vírus? Muito possivelmente, um vírus influenza ou um coronavírus. Sob que circunstâncias o vírus entraria nos seres humanos? Alguma situação de contacto próximo e desastroso entre humanos e animais selvagens - como no interior ou perto de um mercado de animais vivos na China, por exemplo.”

Portanto, embora a data, local e circunstâncias exactas fossem imprevisíveis de todo, o início da actual pandemia foi prevista, não só por Bill Gates e por especialistas da Organização Mundial de Saúde, mas também por escritores de ciência. Vejamos o que Quammen escreve no final do Cap. IV, “Jantar na quinta dos ratos” (o título remete para um jantar que lhe foi oferecido por uma família chinesa), um capítulo dedicado à SARS: “A história muito mais sombria ainda está por ser contada provavelmente não sobre este vírus, mas sobre outro. Podemos adivinhar que, quando, a Próxima Grande Pandemia chegar, agirá provavelmente em conformidade com o mesmo padrão perverso com uma alta infecciosidade a preceder sintomas perceptíveis. Isto vai ajudá-lo a percorrer cidades e aeroportos como um anjo da morte.”

Hoje, os contágios por casos assintomáticos soam-nos, infelizmente, familiares. Quammen estava muito bem informado. Falou com muita gente nas suas viagens à volta do mundo –a África em busca do Ébola, à China em busca do SARS, à Austrália em busca do Hendra e à Malásia em busca do Nipah (as únicas figuras do livro são mapas que ajudam a localizar a acção).

Como os capítulos são mais ou menos independentes, comecei pelo último, intitulado “Depende – Comportamento humano e epidemias”, onde, para além de tratar brevemente dos vírus influenza – em poucas páginas está o essencial da informação científica sobre uma terrível doença que nos aflige há séculos (o livro já ia em maias de 500 páginas) ­ –  Quammen fala dos malefícios da acção humana.  

A sua tese é que a espécie humana está a aumentar de um modo muito rápido (já somos mais de sete milhões) e está a ocupar zonas do planeta que eram selvagens, aumentando com isso as probabilidades de zoonoses. Ele diz que a espécie humana é um surto, uma expressão que se pode usar tanto para doenças como para espécies em crescimento explosivo. Seremos uma doença para o planeta, que é como quem diz para nos próprios.

Vamos todos morrer. Como diz o autor com ironia: “Sim, vamos todos pagar impostos e vamos todos morrer.” Mas não vamos morrer de varíola nem de políomelite, doenças para as quais já desenvolvemos vacinas (curiosamente, essas não são zoonoses). Mas poderemos morrer com um vírus novo recentemente saído de uma ave (a gripe pode vir das aves), de um macaco (a SIDA veio de um macaco), ou de um morcego (a SARS, tanto na primeira como na actual forma, veio provavelmente de morcegos). Quammen escreveu profeticamente: “Quando o próximo vírus novo passar de um chimpanzé, morcego, murganho, pato ou macaco para um ser humano, e talvez desse humano para outro humano, e e começar assim a causar um pequeno número de doenças letais, eles os cientistas vão dar por isso (….) e fazer soar o alarme. O que quer que aconteça depois disso vai depender da ciência, da política, dos hábitos sociais, da opinião pública e de outras formas de comportamento humano. Vai depender de como nós, cidadãos, reagirmos.”

Que lição podemos aprender com os vírus vindos de animais?  Quammen responde: “As doenças zoonímicas lembram-nos, como fez São Francisco, que nós, humanos, somos inseparáveis do mundo natural. Na verdade, não existe um ‘mundo natural’, trata-se de uma expressão má e artificial. O que existe é apenas o mundo.

A Humanidade faz parte desse mundo assim como o vírus Ébola, assim como as influenzas e o VIH, assim como o Nipah, o Hendra e a SARS, assim como os chimpanzés, os morcegos, as civetas e os gansos-de-cabeça-listada, assim como o próximo vírus assassino - aquele que ainda não detectámos.” Concordo com o autor que as possibilidades de infecções virais estão a aumentar, mas penso que essa é uma tendência que vem de há muitos anos. Com a Revolução Neolítica, há 10.000 anos, passámos a viver próximo dos animais que domesticámos. E, depois disso, espalhámo-nos pelo planeta, designadamente na “primeira globalização”, quando viajávamos em barcos à vela, na “segunda”, quando viajávamos em barcos a vapor, e na “terceira”, em que viajamos de avião. Não vejo como voltar atrás.

Vale-nos alguma margem de livre-arbítrio. Podemos fazer escolhas: “Um ser humano individual pode escolher não beber a seiva da palmeira, não comer o chimpanzé, não construir a pocilga debaixo do mangue, não limpar a traqueia de cavalo sem luvas, não fazer sexo desprotegido, não partilhar a agulha ao consumir droga, não tossir sem tapar a boca, não apanhar um avião se estiver a sentir-se mal, ou não abrigar as galinhas juntamente com os patos.”

Acrescentaria, nos dias e contágio que hoje vivemos, que podemos usar uma máscara, manter o distanciamento social, lavar as mãos com frequência. “Tudo depende,” são as últimas palavras do livro. O início de novo vírus depende, de facto, do acaso, uma vez que vem da lotaria genética. Mas o seu espalhamento já depende principalmente de nós.
Carlos Fiolhais