quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Nikias Skapinakis

Foi no C.O.M. de 1952-53, que conheci o Nikias Skapinakis, alto, magro, de óculos grossos e um bivaque mal enfiado, no alto da cabeça.

Em vez das elegantes botas altas usava, como eu, polainas de cabedal, pretas, alargadas na barriga da perna, idênticas às das praças da GNR. Mal fardado, era o oposto de alguns dos esbeltos e vistosos cadetes que, não fora a estrelinha que todos usávamos nos ombros da camisa ou do blusão, se confundiam com os jovens e elegantes oficiais subalternos nossos instrutores. 

Este lisboeta de nascimento, cujo nome apontava a sua origem grega, e que, só muito depois, soube ser uma personalidade importante na pintura contemporânea, denunciou-se, desde logo, como um contestatário ao regime, frontal e tanto mais corajoso, quanto, então, era arriscado sê-lo e, sobretudo, mostrá-lo. Nunca falámos muito um com o outro, mas a análise que fiz a partir das posições que tomava, era evidente que, para ele, como para mim, aquela tropa que servíamos por obrigação era, na altura, como disse atrás, um dos sustentáculos do regime ilegítimo que conduzia os destinos de um Portugal amordaçado. 

Conservo dele a memória de um militar por obrigação, um tanto introvertido, mal esgalhado numa farda que pouco lhe dizia. 

Guardo ainda um esboço de retrato feito com caneta de tinta azul num pedaço de papel, apanhando-me de perfil, num daqueles serões, no Café Ribeiro, onde esperávamos pelo toque de recolher. 

Esta relíquia, assim lhe posso chamar, cuja existência desconhecia, ofereceu-ma, quarenta e três anos depois, após nos termos reencontrado na exposição que apresentou no Museu do Chiado, em 1996. 

Sempre alheio aquele mundo fardado, o cadete Nikias abordava, sempre que a oportunidade surgisse, assuntos então considerados tabu, relacionados com a vida política nacional ou internacional. Fazia-o, se fosse necessário, na frente dos superiores.

Destes, lembro-me, havia os que reagiam, patrioticamente, contrapondo-se-lhe, e os que prefeririam não o ter ouvido e que, numa situação desconfortável, não sabiam ou não queriam tomar posição.

A. Galopim de Carvalho

Sem comentários:

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...