Acaba de sair na editora Objectiva
o livro Contágio. Uma história dos vírus que estão a mudar o mundo (no
original, Spill-over: Animal Infections and the next human pandemic, W.
W. Norton, 2012), a mais proeminente das obras do norte-americano
David Quammen, 72 anos, autor de 11 títulos de não-ficção sobre temas de
ciência, natureza e viagens, e de cinco de ficção. Nas obras de não-ficção já tinha escrito
sobre o vírus Ébola, que causa a doença com o mesmo nome, e sobre o vírus VIH,
que causa a SIDA.
De entre os livros de ficção distingue-se Walking Out, por
ter sido guião de um filme. A sua escrita
é muito apelativa, pela proximidade que revela e suscita em relação à ciência e
à Natureza. Ele é um dos autores da National Geographic, que, há muitos
anos, muito mais do que um magazine popular, é uma instituição que zela pela nossa
consciência planetária. Quammen é um grande viajante: tem corrido as sete
partidas do mundo, incluindo os lugares mais recônditos, para poder ser
testemunha directa dos fenómenos que relata.
O novo coronavírus tornou Quammen
famoso porque, em Contágio, ele tinha, de certo modo, previsto a
“Próxima Grande Epidemia,” isto é, a que hoje grassa. A Covid-19, com mais de 700.000 vítimas
mortais até à data, situa-se entre o Ébola, cujo surto em 2014-2016 causou 11.300 mortos, e
o VIH, que já causou desde 1981 mais de 30 milhões de mortos. Mas, no
livro agora saído em português, Quammen discutiu, além dessas duas epidemias, várias
outras, como a SARS, que em 2002-2003 causou 800 mortos. e outras menos
conhecidas, como as causadas pelo vírus Hendra, que surgiu na Austrália em
1994, e pelo vírus Nipah, que surgiu na Malásia em 1998.
Todos elas são
exemplos de zoonoses, a passagem, ou spillover, de microorganismos de
animais para humanos. Dada a previsão feita em Contágio, o New York
Times solicitou a Quammen em Janeiro passado um artigo de opinião sobre o
novo coronavírus que começava então a grassar na China, artigo este que foi
incluído na edição portuguesa. O autor estava nessa altura a escrever um livro
sobre o cancro, mas o seu editor pediu-lhe para pôr esse tema de lado e começar
a escrever, a todo o vapor, um livro sobre a pandemia causada pelo SARS-CoV-2.
Estou certo de que o novo livro, agora em elaboração, vai sobressair na lista, a
aumentar todos os dias, de obras sobre vírus e infecções virais.
Vale a pena ler Contágio
por que está muito bem escrito e traduzido (não se nota a heterogeneidade que
se poderia recear de haver quatro tradutores e dois revisores). Impressiona o
rol de referências e de pessoas que ajudaram o autor nas suas pesquisas. O
livro tem a mais valia de um prefácio de Pedro Simas, o virologista português
que ganhou visibilidade nos últimos meses, no qual é identificada Odette
Ferreira, a cientista portuguesa de quem Quammen fala, embora por alto, no Cap.
VIII, ao referir a descoberta do VIH de tipo 2.
Contágio não é bem uma
história, como vem no subtítulo português, mas diversas histórias, entrelaçadas
pelo fenómeno da zoonose. Algumas delas são trepidantes não só pelo grau de
destruição viral e pelos dramas humanos associados, mas também e sobretudo pelos
avanços no conhecimento conseguidos por médicos, virologistas e outros cientistas
em vários sítios do globo. As conversas com esses cientistas são muitas vezes
reproduzidas ipsis verbis, em diálogos que parecem cinematográficos. Ao
ler Contágio sentimo-nos na linha da frente, ansiosos como o próprio
autor por saber mais. Ficamos inteirados em directo e ao vivo das catástrofes
acontecidas ou a acontecer. É raro encontrar autores de ciência que escrevam
com tanta vivacidade.
Como é que Quammen previu, no seu
livro de há oito anos, a actual pandemia? No seu website diz com alguma
modéstia que não foi ele, mas sim os especialistas com quem falou. Tem razão. Mas
o seu mérito foi ter estado com as pessoas certas nos lugares certos. Sim, a
probabilidade era grande de haver uma nova pandemia causada por um vírus
passado de animais para humanos, uma mensagem, bem clara no livro, que o autor
resume no seu site do seguinte modo: “Sim, haverá uma Próxima Grande Pandemia.
Será causada por um vírus. Esse vírus será novo para os seres humanos, saindo
de um animal selvagem. Que tipo de animal? Muito possivelmente um morcego. Que
tipo de vírus? Muito possivelmente, um vírus influenza ou um
coronavírus. Sob que circunstâncias o vírus entraria nos seres humanos? Alguma
situação de contacto próximo e desastroso entre humanos e animais selvagens -
como no interior ou perto de um mercado de animais vivos na China, por
exemplo.”
Portanto, embora a data, local e circunstâncias
exactas fossem imprevisíveis de todo, o início da actual pandemia foi prevista,
não só por Bill Gates e por especialistas da Organização Mundial de Saúde, mas
também por escritores de ciência. Vejamos o que Quammen escreve no final do Cap.
IV, “Jantar na quinta dos ratos” (o título remete para um jantar que lhe foi
oferecido por uma família chinesa), um capítulo dedicado à SARS: “A história
muito mais sombria ainda está por ser contada provavelmente não sobre este
vírus, mas sobre outro. Podemos adivinhar que, quando, a Próxima Grande Pandemia
chegar, agirá provavelmente em conformidade com o mesmo padrão perverso com uma
alta infecciosidade a preceder sintomas perceptíveis. Isto vai ajudá-lo a
percorrer cidades e aeroportos como um anjo da morte.”
Hoje, os contágios por casos assintomáticos
soam-nos, infelizmente, familiares. Quammen estava muito bem informado. Falou
com muita gente nas suas viagens à volta do mundo –a África em busca do Ébola,
à China em busca do SARS, à Austrália em busca do Hendra e à Malásia em busca
do Nipah (as únicas figuras do livro são mapas que ajudam a localizar a acção).
Como os capítulos são mais ou
menos independentes, comecei pelo último, intitulado “Depende – Comportamento
humano e epidemias”, onde, para além de tratar brevemente dos vírus
influenza – em poucas páginas está o essencial da informação científica
sobre uma terrível doença que nos aflige há séculos (o livro já ia em maias de
500 páginas) – Quammen fala dos
malefícios da acção humana.
A sua tese é
que a espécie humana está a aumentar de um modo muito rápido (já somos mais de
sete milhões) e está a ocupar zonas do planeta que eram selvagens, aumentando
com isso as probabilidades de zoonoses. Ele diz que a espécie humana é um surto,
uma expressão que se pode usar tanto para doenças como para espécies em
crescimento explosivo. Seremos uma doença para o planeta, que é como quem diz
para nos próprios.
Vamos todos morrer. Como diz o
autor com ironia: “Sim, vamos todos pagar impostos e vamos todos morrer.” Mas
não vamos morrer de varíola nem de políomelite, doenças para as quais já desenvolvemos
vacinas (curiosamente, essas não são zoonoses). Mas poderemos morrer com um vírus
novo recentemente saído de uma ave (a gripe pode vir das aves), de um macaco (a
SIDA veio de um macaco), ou de um morcego (a SARS, tanto na primeira como na
actual forma, veio provavelmente de morcegos). Quammen escreveu profeticamente:
“Quando o próximo vírus novo passar de um chimpanzé, morcego, murganho, pato ou
macaco para um ser humano, e talvez desse humano para outro humano, e e começar
assim a causar um pequeno número de doenças letais, eles os cientistas vão dar
por isso (….) e fazer soar o alarme. O que quer que aconteça depois disso vai
depender da ciência, da política, dos hábitos sociais, da opinião pública e de
outras formas de comportamento humano. Vai depender de como nós, cidadãos, reagirmos.”
Que lição podemos aprender com os
vírus vindos de animais? Quammen
responde: “As doenças zoonímicas lembram-nos, como fez São Francisco, que nós, humanos,
somos inseparáveis do mundo natural. Na verdade, não existe um ‘mundo natural’,
trata-se de uma expressão má e artificial. O que existe é apenas o mundo.
A Humanidade
faz parte desse mundo assim como o vírus Ébola, assim como as influenzas
e o VIH, assim como o Nipah, o Hendra e a SARS, assim como os chimpanzés, os
morcegos, as civetas e os gansos-de-cabeça-listada, assim como o próximo vírus
assassino - aquele que ainda não detectámos.” Concordo com o autor que as
possibilidades de infecções virais estão a aumentar, mas penso que essa é uma
tendência que vem de há muitos anos. Com a Revolução Neolítica, há 10.000 anos,
passámos a viver próximo dos animais que domesticámos. E, depois disso, espalhámo-nos
pelo planeta, designadamente na “primeira globalização”, quando viajávamos em
barcos à vela, na “segunda”, quando viajávamos em barcos a vapor, e na “terceira”,
em que viajamos de avião. Não vejo como voltar atrás.
Vale-nos alguma margem de
livre-arbítrio. Podemos fazer escolhas: “Um ser humano individual pode escolher
não beber a seiva da palmeira, não comer o chimpanzé, não construir a pocilga
debaixo do mangue, não limpar a traqueia de cavalo sem luvas, não fazer sexo
desprotegido, não partilhar a agulha ao consumir droga, não tossir sem tapar a
boca, não apanhar um avião se estiver a sentir-se mal, ou não abrigar as galinhas
juntamente com os patos.”
Acrescentaria, nos dias e
contágio que hoje vivemos, que podemos usar uma máscara, manter o distanciamento
social, lavar as mãos com frequência. “Tudo depende,” são as últimas palavras
do livro. O início de novo vírus depende, de facto, do acaso, uma vez que vem
da lotaria genética. Mas o seu espalhamento já depende principalmente de nós.
Carlos Fiolhais
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