Mostrar mensagens com a etiqueta literatura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta literatura. Mostrar todas as mensagens

sábado, 28 de janeiro de 2023

Reflexões sobre uma palestra acerca de química e literatura realizada para duas turmas de humanidades


Dei uma palestra sobre química e literatura numa escola e pedi aos alunos e aos seus professores (duas turmas do 12º ano de humanidades) que escrevessem, de forma anónima, num papel branco que lhes dei, os livros que estavam a ler, ou sobre os quais queriam que eu falasse, ou mesmo que indicassem obras por outra razão. Pretendia escrever num quadro os resultados, mas, como era numa biblioteca não havia um disponível. Assim, comentei alguns livros, tal como o facto de não conhecer vários deles, mas acabei por não os usar tanto como queria. Vou tentar fazê-lo agora. 

Dos quarenta e dois papéis que recebi, quase todos indicavam livros diferentes, com poucas exceções (o que já é bastante interessante): a maior quantidade de repetições correspondeu a três pessoas que referiram o “Orgulho e preconceito” da Jane Austen. Quatro pessoas escreveram “Primo Levi”, mas só duas indicaram livros: “Se isto é um homem” e “Assim foi Auschwitz”.  E, finalmente, duas pessoas referiram “Os Filhos da droga” - uma destas pessoas escreveu ter sido “o único livro que leu até ao fim”. Curiosamente, era algo sobre o qual já estava a pensar falar. Podemos não ler até ao fim, saltar páginas, voltar atrás, não ler de todo, não concordar com o que está escrito, duvidar ou corrigir, ver os filmes, indagar sobre as vidas dos autores e as sociedades em que eles viveram, ler os resumos e comentários, mas … se quisermos mesmo perceber o livro, e ter a experiência da obra, temos de ler o original. Comentei, em geral, que os livros revelam as sociedades do tempo em que foram escritos e, claro, os sentimentos das pessoas, e que tudo isso está relacionado com a química. No caso particular de Primo Levi, temos outras coisa: este foi químico e muitos dos seus livros revelam isso, em particular será essa atividade que lhe vai salvar a vida em Auschwitz.   

Deste conjunto de mais de quarenta livros, vinte e seis eu já tinha lido ou folheado (apresentados aqui sem qualquer ordem): “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai (comentei este livro, mas não tenho aqui tempo para referir tudo), “Veronika decide morrer” e “O Alquimista” de Paulo Coelho, “O triunfo dos porcos” de George Orwell, “Fahrenheit 451” de Ray Badbury (este também comentei, mas apenas sobre o título que é a temperatura a que o papel arde espontaneamente, que em Celcius seria cerca de duzentos graus) e “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. No livro “As intermitências da morte” comentei como a literatura nos ajuda a perceber a vida e  como a imortalidade poderia ser uma maldição (nesse contexto, acabei por referir os livros de vampiros e uma aluna referiu a série “Crepúsculo”) e “O memorial do convento“ (que era o único livro que era referido na palestra), de José Saramago. Achei interessante referirem “O principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, estando ainda por cima o papel muito amarfanhado (pensei logo numa explicação - uma das coisas que comentei foi exatamente essa nossa apetência por narrativas), a “Odisseia” de Homero e “O perfume” de Patrick Süskind foram também referidos e são dois livros que envolvem química como referi em “Jardins de Cristais”. Foram também indicados “Mulherzinhas” de Luisa May Alcott, “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald, “O amor de perdição” de Camilo Castelo Branco (este bastante comentado em “Jardins de Cristais”, mas a propósito deste livro referi a questão dos audiobooks – há uma versão completa na Librivox - e outras formas de “ler”, até por haver um aluno que disse não gostar de ler). Finalmente, foram indicados “A crónica dos bons malandros” de Mário Zambujal e “O pintor debaixo do lava-loiça” de Afonso Cruz. 

Como sempre me acontece nestes casos (imagino que seja sempre assim, pois é impossível ler tudo o que se publica), havia livros que eu não conhecia, neste caso foram quase metade, dezassete: “O telefone preto & outras histórias” com quinze contos fantásticos e de terror de Joe Hill (diz a Internet), “O psicopata mora ao lado” de uma autora neurologista, Ana Beatriz Barbosa Silva (diz também a Internet), “O Assassinato de Sócrates” de Marcos Chicot, “The Spanish love deception” de Elena Armas, “O Vendedor de passados” de José Eduardo Agualusa (este livro conhecia, mas por acaso nunca o folheei). Houve uma pessoa que indicou dois livros: “Viver depois de ti” de Jojo Moyes e “A arte subtil de Saber dizer que se f*da” de  Mark Manson. Continuando, referiram o “O Espião Perfeito - Richard Sorge: o Melhor Agente Secreto de Estaline” de Owen Matthews, “A distância entre nós” de Mikki Daughtry, Rachel Lippincott e Tobias Iaconis, “Como se fôssemos vilões” de  M. L. Rio, “A devoção do suspeito X” de Keigo Higashino, “A Minha vida é um filme” de Paula Pimenta, “Outros jeitos de usar a boca” de Rupi Kaur, livro de poemas sobre a sobrevivência, a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade (diz a Internet) e “Um Gato em Tóquio” de Nick Bradley. Foram também referidos “Nick e Charlie” de Alice Oseman e “Vermelho, Branco e Sangue Azul” de Casey McQuiston que envolvem relações amorosas entre homens. Finalmente, referiram “Estoico todos os dias : 366 reflexões sobre sabedoria, perseverança e arte de viver”, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, livro de pérolas inspiradores de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio e “As 48 leis do poder” de Robert Greene e Joost Elffers. Trata-se em boa parte de novidades e de best-sellers, tratando uma parte de temas complexos, além de alguns livros de autoajuda ou entendimento do mundo (embora toda a literatura acabe por tratar desse aspeto). 

Em qualquer dos casos estive na presença de uma amostra de pessoas que leem e que têm com certeza opiniões sobre o mundo. Acho que não nos podemos queixar. Fiquei bastante interessado em “A distância entre nós” que trata de um romance entre duas pessoas com fibrose cística. Seria interessante, penso eu, perceber como a evolução da ciência melhorou a qualidade de vida destas pessoas e modificou os seus quotidianos. 

Não vou falar muito da palestra que constava de algumas reflexões sobre as narrativas e a ciência e a tecnologia, em particular as de natureza química. Começava com um livro que estou a ler sobre as mulheres na ciência, que, não sendo de ficção, começa de uma forma narrativa bastante intimista e de como isso é eficaz. Seguia depois para o exemplo do "Fiel Jardineiro" de John le Carré (que um aluno conhecia) e que servia para discutir as tensões entre a realidade e a ficção, assim com a evolução dos testes clínicos de moléculas usadas como medicamentos. Comentava também os Lusíadas de Camões e as moléculas associadas. Seguia depois para os aspetos tecnológicos e químicos no século XIX e XX e a sua relação com os livros de Eça de Queirós apresentados nas aulas de Português (Os "Maias" e a "Ilustre Casa de Ramires"). Referia alguns aspetos de "A tragédia da Rua das Flores" e do espírito crítico que devemos ter ao ler e terminava com dois livros de Saramago ("O memorial do Convento" e "O ano da morte de Ricardo Reis").  

Li há pouco tempo que "tudo é estágio". Sim, eu considero que também aprendi bastante com esta palestra.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Rui Couceiro, “Baiôa sem data para morrer”, (Porto Editora, 2022). 446pp.

 “Baiôa sem data para morrer”, da autoria de Rui Couceiro, foi a minha leitura de verão. A apresentação do livro em Lisboa teve lugar, em junho, na Casa do Alentejo, onde aproveitei para comprar o livro e recolher o autógrafo do autor. Nessa sessão de lançamento, tanto o erudito Alberto Manguel, que apresentou o livro, como o jornalista e escritor Luís Osório, que moderou a sessão, teceram desmedidos elogios ao livro. Seriam esses louvores honestos ou exagerados? Nada como ler e tirar as teimas. 

Rui Couceiro é licenciado em comunicação social, mestre em ciências da comunicação, reputado editor e estreia-se agora como escritor. Neste seu primeiro livro, conta a história de um professor que, sem colocação e em situação de esgotamento, com um quadro psicológico depressivo, decide fazer uma pausa na sua carreira docente e refugiar-se na terra dos seus avós, numa aldeia do Alentejo profundo. Aí, gradualmente, vai conhecendo e fazendo amizade com os mais variados elementos da população local. Desses habitantes, destaca-se uma pessoa em particular: Joaquim Baiôa, um idoso obstinado em recuperar as casas, fazendo reparações e caiando as paredes de modo a atrair os proprietários, os seus descendentes ou novos moradores para a aldeia. Esta persistência de Baiôa em ressuscitar uma aldeia envelhecida e que vai perdendo rapidamente os seus habitantes – seja por morte natural, por suicídio, por acidente ou pela ida para os lares – é um dos mistérios do livro, assim como misterioso é também o legado científico de um médico que habitara aquela aldeia.  

O professor, personagem principal, é simultaneamente o narrador e partilha com o leitor as suas observações dos acontecimentos na aldeia, assim como as reflexões frenéticas que assolam a sua mente – vejam-se as suas reflexões sobre as insónias ou sobre o café. Distante da cidade de onde veio, depara-se com uma realidade totalmente diferente, seja pela reduzida população e as consequências sociais que daí advêm, seja por ser reflexo de um local ignorado pelos vários poderes políticos, tanto centrais como locais, retrato de um país a duas velocidades. Apesar deste retrato, Rui Couceiro não cai no erro da caricatura fácil da oposição da cidade avançada comparada com a aldeia retrógrada; pelo contrário, à aldeia já chegara a internet (embora com sinal fraco) e alguns habitantes, como a Ti Zulmira, aventuravam-se nos usos mais avançados fornecidos por essa tecnologia. De facto, a tecnologia e as várias redes sociais, surgem com frequência neste livro, remetendo-nos para uma reflexão relativa ao seu uso e vantagens, mas também aos efeitos que têm no nosso comportamento. 

Para Rui Couceiro, o autor, este livro tem que ver com a vida e com a morte. Eu, enquanto leitor, entendo que a morte é apenas o fio condutor, é o evento mais certo da vida real e que aqui atravessa a obra de ficcional, mas o tema principal é a vida e a obsessão por sobreviver ao esquecimento e ao desaparecimento. Mas é também um livro que versa também sobre a amizade e a esperança. Baiôa é esse símbolo da esperança de que é possível recuperar as casas, revitalizar a aldeia, contrariar o declínio demográfico. Quando todos, inclusive os autarcas locais, parecem negligenciar, não acreditar ou já desistiram do empenho em revitalizar a aldeia, Baiôa demonstra que um só homem possui a capacidade de fazer o improvável – o que seria se outros tivessem a mesma vontade e determinação. 

Este é um livro com um ritmo inicial lento, mas à medida que a história avança e a trama se adensa o ritmo também acelera. Contudo nunca deixa de ser reflexivo e de mergulhar na vivência da aldeia e nos segredos das várias personagens. A este propósito, a descrição das personagens é tão perfeita que ficamos afeiçoados às mesmas, a tal ponto que, a certa altura, parece que estamos a ler o relato biográfico de pessoas verdadeiras. Aqui, o real e o imaginário parecem misturar-se, diluir-se. As descrições do narrador tornam esta uma história empática, tocante e ternurenta. O que mais tem este livro? Tem humor, tem mistério, tem drama e tem segredos. Tem, portanto, imensos fatores que nos fazem ficarmos agarrados até ao fim, para tentar descobrir o que acontece no final. 

Este livro tem sido, merecidamente, muito mediático e a crítica tem sido no geral favorável ao autor. Já li e ouvi comentadores afirmarem, quanto à forma da escrita, as semelhanças a um Almeida Garret ou a um Eça de Queirós, eu lembrei-me de Laurence Sterne. Mas este livro não é nada disso e ainda bem. Esta é a escrita de um Rui Couceiro, portanto de um escritor original. Seja pela qualidade literária, seja pelos temas abordados, espero sinceramente que este livro venha a ser recomendado como leitura nas salas de aula das escolas deste país. 

Por agora, a nós leitores, resta-nos esperar por um novo livro de Rui Couceiro. Oxalá não demore. 

Para saber mais:
- Semanário Novo;
- Jornal Público;
- Diário de Notícias;
- Notícias Magazine;
- Jornal de Notícias;
- Prova Oral, na Antena 3;
- Entrevista com Inês Menezes.

sábado, 4 de setembro de 2021

Júlio Dinis e a Química

 

[Não tive ainda tempo de ir à Feira do Livro do Porto onde se pode visitar a agora designada “extensão do Romantismo” do museu da cidade que tem originado muito polémica pela intervenção radical no Museu do Romantismo e que tem como objeto central um herbário de Júlio Dinis. Devo realçar que o Romantismo não é avesso à novidade e à ciência, mas rejeita as intervenções (alguns dizem destruições) sem alma ou impostas. Vamos ver.]

Júlio Dinis (1839-1871) é o escritor portuense evocado na feira do livro, realizada em 2021 nesta cidade. Como é bem sabido, Júlio Dinis é o pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, formado em medicina, professor depois na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que nunca exerceu medicina, devido em parte à tuberculose de que sofria. A sua tese versava a meteorologia e a medicina, mas ficou muito mais conhecido, pelos seus livros, supostamente, ligeiros. São considerados assim por a generalidade das suas personagens serem boas, podendo, no entanto, em muitos casos sofrer de vícios e manias. Diz quem sabe, e pode constatar quem lê, que são mais complexos do que parecem. Neste pequeno artigo vou referir a química em Júlio Dinis. Curiosamente, não encontrei muita, mas é bem conhecida a saga do arsénio nas "Pupilas do Senhor Reitor" que vai ter um grande efeito cómico (Júlio Dinis é aliás um mestre a explorar estas situações cómicas e teatrais, com um sorriso otimista). Este elemento químico, era usado numa preparação para aumentar o apetite, e a mulher de João da Esquina incentiva vezes sem conta o marido a tomá-lo. Ele responde, paciente mas sombrio, “Toma-o tu, se gostas”).

Há uma preleção sobre os metais e o galvanismo e outra contra o açúcar e a sua indústria numa “Família Inglesa” e não detetei mais neste livro. Em “Serões da Província” também não. Nota-se, no entanto, que Júlio Dinis gostava de plantas e Botânica. Em “Fidalgos da Casa Mourisca”, obra publicada postumamente, também não. Há alguma química, mas é pouco explícita. A química e as suas realizações e explicações estão, no entanto, presentes indiretamente. Nas roupas que as personagens vestiam, nos pratos onde comiam e nos seus sentimentos, por exemplo. Também na falta das suas realizações. Por exemplo, no tratamento da doença de que morreu Júlio Dinis, a tuberculose. A molécula estreptomicina só irá ser descoberta em meados do século seguinte, por exemplo. Tomavam-se bons ares, servia-se boa comida, descansava-se e esperava-se que a natureza fosse simpática. Muitas vezes não era. A mãe e vários irmãos de Júlio Dinis morreram com esta doença. Ia dizer que não aparece a palavra “química”, mas não é verdade (lá iremos). Aparece pouco a palavra e as personagens são todas bem intencionadas e boas. Os livros de Júlio Dinis são, nesse aspeto, um paraíso onde não há química e todos são boas pessoas. Dizem os críticos que ele está em trânsito entre o Romantismo e o Realismo. Talvez. Eu vejo-o como um romântico otimista.

Na “Morgadinha dos Canaviais”, afinal, aparece a palavra “química” (ou as suas variações). Três vezes! Primeiro na descrição de um leite muito puro e inteiro que toma Henrique. Ah! “pela primeira vez na sua vida disse ele ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a análise dos químicos, de que os fisiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das Geórgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os compreendeu ele, que bem diferente de aquilo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.” Nesta altura, o leite na cidade seria muitas vezes falsificado, mas o que transparece é uma visão romântica que hoje voltou a estar muito presente. Infelizmente, o leite inteiro não analisado poderia ser uma fonte de bactérias – Um familiar afastado morreu novo de carbúnculo ao beber leite diretamente – Isso leva-nos à terceira vez em que é referida a química: os enterramentos nas igrejas que originava maus ares onde estavam “pequenos insetos”. A falta de higiene poderia ser tão perigosa nos enterramentos como no leite. Finalmente, a química é tratada como uma figura de estilo na descrição de uma personagem, de que hoje já se perde bastante o sentido: “era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo”. Diria que Júlio Dinis quis dizer que tinha uma personalidade bem definida e única.

Júlio Dinis não é só do Porto, claro. Há um museu muito bom em Ovar, na casa onde passava férias e de onde era natural seu pai. E os seus livros podem ser lidos onde quer que estejamos. Há edições gratuitas na Internet. Leia-se. Só custa tempo!

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Ray Bradbury: A ficção Científica que é Literatura Fantástica

[Outro dos meus artigos no JL de 26 de agosto de 2020 sobre os vários centenários de autores de ficção científica. Gostei muito deste pela ligação menos conhecida ao Moby Dick. O Jornal recomenda, entretanto, várias obras dos autores publicadas recentemente. Além destes trabalhos e de outros artigos, notas e sugestões, o JL tem entrevistas a Ondjaki e João Alvim, discute as feiras do livro de Lisboa e Porto, o teatro, a fotografia e outros assuntos. Boas leituras!]

Comemora-se este ano o centenário do nascimento de Ray Bradbury (1920-2012). Em Jardins de Cristais – Química e Literatura (Gradiva, 2014) escrevi que este não era tanto um autor de ficção científica mas mais um autor de narrativas fantásticas. E dava como exemplo o conto As Maçãs Douradas do Sol, no qual, uma nave espacial arrefecida a amoníaco, vai recolher bocados do Sol para usar como energia. O autor apresenta para a nave uma temperatura de milhares de graus negativos que viola a temperatura zero (que é de -273,15ºC) colocando este livro no domínio do fantástico, e isso é interessante no que concerne à distinção entre o que é possível e que não é.

Toda a gente vê que as pessoas não voam com pó mágico e bons pensamentos e não temos dificuldade em chamar a isso fantasia. Mas podemos não saber que a termodinâmica não permite temperaturas tão baixas, por exemplo. É por isso que uma verdadeira cultura científica é tão necessária. Ajuda-nos a distinguir a fantasia da realidade e nisso a ganhar novos mundos, ou ajuda-nos a perceber um argumento científico, ou a separar a ciência da pseudociência - estou-me a lembrar dos excelentes Pipocas com telemóvel (Gradiva 2012), ou A ciência e os seus inimigos (Gradiva, 2017) de Carlos Fiolhais e David Marçal. Não quero com isto dizer que não haja franjas, complexidades e aspectos técnicos – sim há. Mas é uma grande infelicidade haver erros tão banais como errar a tabuada que nunca irão mudar e são esses que deveremos evitar sob pena de sermos enganados e não percebermos o mundo em que vivemos.

Disse ainda, nesse livro, que Ray Bradbury levantava outros problemas numéricos. Por exemplo, no seu famoso Fahrenheit 451, também datado de 1953, usa como título o suposto valor da temperatura (em Farenheint) a que o papel arde de forma espontânea (temperatura de auto-ignição). Como é bem conhecido, neste livro distópico os bombeiros não apagam fogos, antes queimam livros, quaisquer livros, pois estes foram proibidos. Disse que são muitos os aspectos químicos que podem ser encontrados neste livro. E é verdade. Os processos de combustão, os materiais incombustíveis de que são feitas as casas, os antidepressivos e as drogas, são alguns exemplos, mas salientava, e ainda saliento, muito em particular a química dos odores. Ao longo de todo o livro os cheiros têm um papel importante nas suas relações com as memórias. A tomada de consciência do bombeiro e também na perseguição deste realizada por um mastim mecânico que usa o espectro do seu cheiro para o detectar. Este cão não vai aparecer no filme, talvez pelos aspectos técnicos, talvez por não ser interessante em termos de imagem, mas acaba por ser um aspecto interessante e muito actual a considerar. Na realidade os odores e a sua relação com a memória desempanham um papel importante em boa parte da literatura. Lembro apenas os cheiros que marcam a vida de Fermina Daza em o Amor nos Tempos de Cólera de Gabriel Garcia Marques e o famoso bolo (uma madalena) que conduz o narrador à sua infância de Em Busca o Tempo Perdido de Marcel Proust.

Fahrenheit 451 é muito conhecido e teve várias versões em contos e livros até à versão final que agora conhecemos. Há várias interpretações para a queima dos livros e isso é, na minha opinião, a boa literatura – haver várias possibilidades e caminhos. O próprio Bradbury contribuiu para isso referido o seu amor incondicional aos livros e como a televisão os poderia destruir. Não foi isso que aconteceu – nem a televisão, nem  a internet, que em 1953 não era conhecida, matou os livros. Podería falar das suas Crónicas Marcianas, do Homem Ilustrado, ou de outras conhecidas obras. Mas não. 
 
Falo aqui do amor de Bradbury à literatura e de um problema que me intrigava e me fez voltar ao Moby Dick de Herman Meleville. Por que é Ray Bradbury disse e escreveu que a personagem de Persee Fedallah arruinava a obra? É verdade que este é referido de forma enigmática por Melville apenas a partir da capítulo 48 como um dos cinco fantasmas que rodeavam o capitão Ahab mas ainda não tenho um resposta convincente.     

Como jovem argumentista de Hollywood, Ray Bradbury adaptou, também em 1953, o Moby Dick para o filme do mesmo nome de 1956 de John Huston com Gregory Peck a fazer de Ahab e com o sermão do padre Mapple a ser realizado por Orson Wells. Uma equipa fantástica como John Huston referiu. Os efeitos especiais eram rudimentares pelos padrões de hoje e para dar uma cor profunda ao filme foram sobrepostas a película a cores e preto e branco (diz-me a wikipedia). E, de facto, na cópia que tenho as imagens são bastante escuras. Ray Bradbury tratou de dizer a John Huston, o seu herói, que Fedallah seria atirado borda fora e as suas melhores deixas passariam para Ahab, com o que John Huston concordou de imediato.    

Em 1992, Ray Badbury publicou Green Shadows: White Whale (que julgo não ter sido traduzido para português) o qual trata da sua ida à Irlanda e da escrita do guião do Moby Dick. Começa com a chegada ao mundo verde da Irlanda e um diálogo incrível com um inspector da alfandega sobre cultura, em particular sobre literatura, sobre o Moby Dick e o Hamlet. Muito do livro são os seus diálogos (verdadeiros ou inventados) com personagens locais ou com John Huston, enquanto escreve o guião do filme. Durante esse tempo, fala, vive e sonha com a literatura. Com Hemingway, Shaw, Chesterton, Wells entre outros, e ganhará um prémio, ele que aparentemente era conhecido como um Flash Gordon que punha toda a sua libido nos foguetões. Mas adaptar o Moby Dick era o seu sonho – conta - ele que amava a literatura e leu o livro totalmente três vezes, algumas partes cinco vezes e outras pelo menos vinte vezes.    

Escrevi em 2014 que um bom livro de ficção científica, policial ou de literatura fantástica, mas também de ciência, é aquele que nos abre os olhos para enigmas para os quais ainda não temos solução. Continua a ser absolutamente verdade para mim.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Quatro centenários que celebram a humanidade

[No número 1284 do JL de 18 a 31 de dezembro de 2019 refiro o Ano Internacional da Tabela Periódica 2019 e o que aprendi com os centenários de Jorge de Sena, Sophia de Mello Andresen e Fernando Namora a ainda com Vitorino Nemésio e António Gedeão. Mas, eu também aprendi imenso com este número que refere outro centenário, o de João José Cochofel, assim como Arquimedes da Silva Santos, Nuno Maulice e Djaimilia Pereira de Almeida (na capa)]

O Ano Internacional da Tabela Periódica 2019 celebra os 150 anos de Dmitri Mendeleiev (1904-1907) deixando espaços vazios para os actuais 118 elementos químicos ao encontro de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), Jorge de Sena (1919-1974), Fernando Namora (1919-1989), Rómulo de Carvalho / António Gedeão (1906-1997) e Vitorino Nemésio (1901-1978) que deixaram espaços para nos prenchermos.

A poesia de Sophia Obra Poética (Assírio & Alvim, 2015) é luminosa e concreta. Mas o que fazem aqui a família e os amigos (e também os inimigos)? Trazem a humanidade multifacetada que precede a imortalidade como espero mostrar. Na ciência parecia mais fácil - pensar em espaços vazios de acordo com fórmulas - mas também não é. Há nesta também um factor humano. Na Menina do Mar, de 1958, fala de química. Parece simples. Sophia era enganadoramente simples.
“-Trouxe-te isto - disse. - É uma caixa de fósforos. 
- Não é muito bonito - disse a Menina.
- Não; mas tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver.
E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo.
- A Menina deu palmas de alegria e pediu para tocar no fogo.
- disse o rapaz - é impossível. O fogo é alegre mas queima.
- É um sol pequenino - disse a Menina do Mar.
- Sim - disse o rapaz - mas não se lhe pode tocar.
E o rapaz soprou o fósforo e o fogo apagou-se.”

Podemos encontrar ligações científicas, claro, mas o mais importante é certamente o factor humano. 
O prefácio de Sena às Poesias Completas (Sá da Costa, 1965) de Gedeão, mostra que há uma ciência da literatura contra o impressionismo da crítica, com 70-80% dos seus poemas a não terem uma referência científica [corrijo a minha gralha]. Nas Memórias (Gulbenkian, 2010), no qual deixa um espaço para a sua morte, Rómulo de Carvalho diz que gostou do prefácio de Sena, mas no Hotel Tivoli em Junho de 1967, “Sentado à minha frente, na mesa do almoço, a meio metro de distância de mim, está Vitorino Nemésio que não me falou durante toda a refeição, nem antes nem após ela. Era um intelectual.” Em Nemésio, os poemas de 1971, de Limite de Idade, há hidrogénio, hélio, fósforo, carbono, ouro, azoto, polónio, chumbo, plutónio, néon, árgon, ferro, silício, sódio, cloro, alumínio, magnésio, potássio, enxofre, bromo, boro, estrôncio, mais elementos que em Gedeão! Ele que chumbara, segundo as suas palavras, por não saber a composição centésimal do metano.

Sena gosta de Nemésio, que resolveu triunfar de 1935 até a morte, numa aparentemente  gratuitidade nas metáfora, “Nemésio que conhecia tudo mas aparentava não conhecer nada” ao contário de Namora, segundo Sena. Em Estudos da Literatura Portuguesa II, Sena (Edicões 70) escreve sobre Namora e Domingo a Tarde, de 1969: “«O melro eu conheci-o», perdão o Namora, eu conheci-o, somos da mesma idade, andámos no mesmo liceu. Da mesma carteira. [U]m romancista medíocre e um péssimo escritor. Ou pior: é um narrador convencional” seguindo de “concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei … a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que para falarmos da última não é necessário lê-la.” Por seu lado, Namora, num dos seus últimos escritos “[o]s homem de letras, detestam as pessoas sem as conhecer, as obras sem as ler.” 

Sena mostra uma infância solitária abatido ao contingente do Sagres, numa ocasião única, ele que sempre sonhara ser oficial de Marinha. No seu Diário, editado por Mécia de Sena refere, por cartas, que vai ser chumbado. Ganhou-se um génio contrariado, talvez, sempre a ler, que se forma em engenharia e vai para a junta autónoma, para o Brasil e depois Universidade da Califórnia. A história é conhecida da wikipedia. 

Namora, também contrariado, estuda medicina, mas esta é uma fonte de inspiração. E é sobretudo um homem do seu tempo. Com tuberculosos e cancros terríveis, gente pobre e rude, acompanhamos a evolução da medicina, desde que os hospitais não eram asilos, até o serem de facto. Em Um Homem Disfarçado, de 1967, e em 1969, surgem as drogas e a crítica social do seu tempo. Em Marketing, de 1969, e depois em Cadernos de um Escritor, e sobretudo, Os Adoradores do Sol, de 1971, numa viagem aos países Escandinavos, que repeti quase cinquenta anos depois e estes não “mudaram muito mas mudaram o suficiente.” Namora traz-nos o tempo com algum bolor e tralha é certo, mas faz-nos pensar na Greta Thunberg e no Mundo em que vivemos.

Namora responde em Março de 1966 na revista Vértice a Augusto Sales que já havia feito comentários à adaptação cinematográfica de o Trigo e o Joio. É assim que os vemos, em lutas entre eles, sempre sufocados e amordaçados, mas a liberdade não os fez melhores, como hoje sabemos.

Sena que foi um grande cultor das cartas. Podemos encontrar cartas a quase todos e todas são importantes, no original. Só no original se percebe o Sena que vê no Gaspar Simões um amigo quando ao Ramos Rosa diz mal dele. Espreitar por de trás da fechadura? Não! Só a humanidade os torna imortais. Citando Sena, fora do contexto (é, de facto, muito perigoso estar morto): “Que os historiadores universitários da literatura meditem nesta tremenda verdade...” 

E não deixa de ser revelador que Namora tenha reescrito, no estilo, mas não no conteúdo, nos anos 1970, o seu romance de juventude, As Sete Partidas do Mundo, de 1938, escrito entre 1936 e 1938, e Jorge de Sena reescreva toda a vida o seu romance, (também) de juventude Sinais de Fogo, publicado ainda incompleto, em 1979, e o tema seja o mesmo, o colégio que os marcou e uniu, um pobre a detestar os burgueses, outro burguês, também a detestar. Focando coisas diferentes, o primeiro as tuberculoses e as pneumonias, o segundo o pavor das gravidezes, antes do aparecimento da pílula (metonímia fantástica de um medicamento que criou um revolução), com diferentes profundidades, sempre na primeira pessoa. Como na tabela periódica que de 118 elementos se fazem mais de 15 mil moléculas todos os dias e de 26 letras se fazem incontáveis palavras todos os segundos, celebrando todos, os elementos e as letras, a humanidade.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Descer na Lua com as mãos na Terra


Artigo do JL de 28 de Agosto de 2019 (número com destaque para o centenário de Fernando Namora, a literatura de Cabo Verde, fotos de minas abandonadas e o regresso da coluna de Carlos Reis) a propósito dos cinquenta anos da descida na Lua e da relação desse feito notável com a literatura e outros feitos igualmente épicos que se repercutem no mundo actual. [corrigi algumas gralhas da minha responsabilidade]

A 20 de Julho de 1969, Miguel Torga escreveu no Diário: “O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante.” Mas logo de seguida, Torga reflete sobre o seu entusiasmo com o feito e a tristeza perante as “monótonas e desconsoladas aventuras que restam à humanidade” que, em vez de “arredondarem a fraternidade”, alargam a solidão, completando o que havia escrito em Dezembro de 1968: “O homem tem pela primeira vez a grandeza do universo cósmico.”

Referi alguns aspectos da relação entre a ciência e a literatura, a propósito da ida à Lua, em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), mas uma evocação mais completa foi feita por David Seed no artigo Moon on the mind: two millenia of lunar literature da revista "Nature" de Julho de 2019. Já em 1943, Agostinho da Silva, numa publicação de divulgação cultural, "Viagem à Lua", editada por Helena Briosa e Mota, em Páginas Esquecidas (Quetzal, 2019), analisou a ciência de algumas ficções sobre a ida à Lua. Mas ainda mais interessante é a discussão do que para Agostinho é uma certeza – que o homem irá chegar à Lua - envolvendo o leitor na análise do que se sabe sobre a Lua e sobre os problemas dessa viagem, mais de 25 anos antes desta ter ocorrido!

O primeiro passo na Lua foi dado, como é sabido, por Neil Armstrong às 2 horas e 56 minutos (hora de Greenwich) do dia 21 de Julho. Na manhã seguinte, os jornais fizeram edições especiais com imagens de capa dos astronautas na Lua, passando quase despercebida, também na primeira página de alguns jornais, uma pequena notícia sobre o primeiro transplante realizado em Portugal - em Coimbra, a equipa de Linhares Furtado fez nessa mesma noite o transplante de um rim. Será que podemos comparar os dois feitos, aparentemente tão díspares? Será que a literatura dá atenção suficiente e compreende o que representa, em termos científicos e técnicos, a possibilidade de realização de transplantes, para além das muitas distopias que nos questionam – e bem - como Nunca de deixes de Kazuo Ishiguro?

A odisseia que foi (e continua a ser) o desenvolvimento das técnicas de transplante não envolve os meios financeiros e humanos da ida à Lua, mas é, em termos científicos, um feito com mais novidade científica. De facto, a ida à Lua é um resultado tecnológico que congregou, de forma fascinante e enorme complexidade, ciência e tecnologia já existentes, enquanto que o sucesso dos primeiros transplantes envolveu algo novo e desconhecido: o controlo químico da imunidade. Para além da perícia e excelência cirúrgica, os transplantes tornaram-se possíveis devido à sintese, por Gertrude Elion, no final dos anos 1950, da primeira molécula imunossupressora eficaz - a azatiotropina. É a invenção desta molécula que permitirá a Roy Calne nos anos 1960 iniciar um programa de transplantes que se generalizou a todo o planeta e está em contínuo desenvolvimento científico. Para além disso, a possibilidade de realização transplantes envolveu uma grande quantidade de descobertas e desenvolvimentos prévios como a anestesia, a assepsia, os grupos sanguíneos e transfusões de sangue e antibióticos, entre outros feitos da química medicinal e da medicina. Curiosamente, Miguel Torga no Diário refere o “milagre da ciência moderna” que são os antibióticos, mas não encontrei referências a imunossupressores. Muitos feitos médicos de base química, são quase invisíveis, mesmo para médicos, e, obviamente, também para a literatura.

No dia 5 Julho de 1963, depois de ter salvo um doente com muito esforço, Torga compara a dignidade das actividade humanas que se fazem todos só dias de forma competente, como salvar um doente, ou apertar bem um parafuso, com os feitos ainda por realizar. Para estes últimos escolhe a ida à Lua, referindo com melancolia: “Lá chegaremos, na mesma tristeza com que pisámos pela primeira vez as terras da Patagônia.” Essa tristeza é, para mim, a condição humana que a literatura ajuda a dar sentido, humanizando a ida à Lua, dando grandiosidade às coisas comuns, ou mostrando que os desenvolvimentos científicos e técnicos quase não mudam a natureza humana.

No Poema do Homem Novo, António Gedeão começa por enumerar alguns dos maravilhosos aspectos científicos e tecnológicos que envolvem o passeio na Lua de Neil Armstrong, concluindo de forma crua que o “Homem Novo” fez exactamente o que faria o “Homem Velho:” espetou a bandeira da sua pátria na Lua!  É revelador que o fato espacial de Neil Armstrong seja um catálogo dos polímeros (plásticos) sintéticos disponíveis na altura – não, não foi a NASA que inventou o teflon ou qualquer dos polímeros usados no fato – e as suas várias camadas tenham sido cosidas por costureiras de uma fábrica especializada em sutiãs e cintas. Seis camadas de poliamidas, algumas aluminadas, uma de policloreto de vinilo, uma de elastano, duas de poliacrilonitrilo, nove de poliésteres, algumas com tecido de fibra de vidro, e duas de politetrafluoroetileno, com nomes comerciais, nylon, vinyl, spandex, nomex, neopreno, mylar, dacron, kapton e teflon, para além do capacete de policarbonato e das luvas com silicone. O sucesso da aventura da ida do homem à Lua envolveu mais de 400 mil pessoas, muitas delas engenheiros e operários nas muitas companhias que contribuíram para o projecto. Não é, por isso, estranho que muitas companhias tenham feito anúncios em que de forma directa, ou indirecta, ligavam os seus produtos à ida à Lua.

A ida à Lua foi um feito notável, mas os objectos e processos que nos rodeiam, ligados ou não à ida à Lua, têm histórias que podem ser igualmente épicas. Reflectindo com base no conhecido poema de Sophia, a civilização em que estamos é errada, talvez não tanto porque o pensamento se desligou da mão, uma vez que os arados são desde há muitos anos demasiado complexos, mas porque o pensamento não sabe qual o poder e os limites do alcance da mão nem se apercebe da real complexidade dos arados.

Frankenstein 200.0


Recupero um ensaio breve publicado no JL em 2018 a propósito dos duzentos anos do Frankenstein de Mery Shelley

Imagine-se a comissão de ética de uma universidade a analisar um projecto a submeter por uma equipa multidisciplinar de cientistas de vários países e empresas de biotecnologia a financiamento europeu: criar um ser humano a partir de tecidos e órgãos cultivados em laboratório ou colhidos em cadáveres. Um cenário equivalente é proposto na revista Science de Janeiro de 2018 para evocar os duzentos anos de Frankenstein de Mary Shelley: Victor Frankenstein propõe ao comité de ética da Universidade de Ingolstadt usar um “mecanismo de animação electroquímica” numa montagem de “peças anatómicas” e “restaurar a vida” assegurando que seguirá as melhores práticas éticas em relação à criatura obtida. Para além das dúvidas científicas sobre a viabilidade destes projectos, as propostas seriam muito provavelmente rejeitadas devido aos problemas éticos que levantam. Em Frankenstein o projecto é realizado em segredo e somos convidados a reflectir sobre as consequências deste ter sido realizado.

Ao longo dos últimos duzentos anos, os detalhes do processo de animação da criatura têm sido imaginados, a partir dos indícios presentes no texto e da ciência da época, como sendo de natureza eléctrica e química. Humphrey Davy, químico e poeta, protótipo do cientista do Romantismo, autor de trabalhos pioneiros de electroquímica, é citado de forma quase literal pela voz do professor de química Waldman, “com as mãos sujas e debruçados sobre os seus microscópios e cadinhos, [os químicos] fazem milagres; penetraram nos segredos da Natureza, sobem aos céus; descobriram a circulação do sangue e a natureza do ar que respiramos. Adquiriram poderes quase ilimitados; comandam o raio do céu, simulam os terramotos e até zombam do mundo invisível servindo-se das suas sombras“. Também a influência de Percy Shelley, amante e futuro marido de Mary, com o seu fascínio pela alquimia, química e electricidade, assim como os ecos das demonstrações com electricidade e cadáveres de Aldini, são relevantes para a formação desta imagem. O fascínio pela electricidade, vista como uma panaceia, mantém-se até ao século XX, mas já está presente no final do século XVIII. A ideia de que a electricidade poderia ser usada para ressuscitar pessoas “aparentemente mortas”, que conduziu ao desfibrilador actual, já aparece, embora de forma tímida, por exemplo, num texto do químico, farmacêutico e médico português, Manuel Henriques de Paiva, publicado em 1790, Método de restituir a vida às pessoas aparentemente mortas por afogamento ou asfixia.

Embora Victor Frankenstein refira a passagem por cemitérios, morgues e matadouros, quase nada no texto de Frankenstein se opõe a uma visão actualizada, obviamente anacrónica mas plausível, dos processos usados para animar a criatura. É certo que no livro não encontramos o trabalho de equipa da ciência actual, nem a participação de empresas, nem o financiamento público, ou a submissão prévia a uma comissão de ética, pois a narrativa segue os padrões da ciência romântica e a imagem do cientista solitário. Mas as possibilidades actuais de transplante de corpo (ainda em discussão), o uso de imunossupressores, a fecundação in vitro, a genética, a modificação genética, a edição de genes e a terapia genética, a clonagem, a biotecnologia, o crescimento de tecidos e órgãos in vitro, por exemplo, não são excluídos pelo texto. O facto de não “desvendar” o processo de animação da vida, um segredo que só Victor Frankenstein possuía e ainda hoje não conhecemos, faz com que um livro escrito antes da síntese da primeira molécula orgânica a partir de matéria inorgânica, do desenvolvimento da assepsia, da anestesia e do coma induzido, da identificação dos microorganismos e dos vírus, do estabelecimento da estrutura tridimensional das moléculas, em particular dos aminoácidos e das proteínas, da descoberta do ADN e dos genes, entre tantas outras coisas desconhecidas no tempo de Mary Shelley, continue relevante para a discussão dos problemas éticos e científicos actuais.

Frankenstein é muito mais do que a primeira obra de ficção científica no sentido contemporâneo ou um reflexo do Romantismo e do deslumbramento e temor perante a ciência. É um livro com múltiplas leituras que propõe dilemas éticos mais do que problemas técnicos e científicos. No final, o que acaba por ser mais importante são as questões morais que o livro coloca. Podemos ou deveremos fazê-lo? Se o fizermos como deveremos agir? De acordo com isso, vários autores têm referido Frankenstein como uma história a ser lida por todos os cientistas, como parte da sua formação.

O professor Waldman, ecoando Davy, diz a Victor que “para ser um cientista e não apenas um experimentador, deve estudar todos os ramos da ciência”. Abel Salazar, mais tarde, dirá que “um médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”. A formação humana é fundamental, mas Frankenstein vai mais longe e interroga-nos sobre os limites da ciência e as falhas do escrutínio científico e ético realizados pelos pares e sociedade.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Uma biografia de António Arnaut

Foi lançado este ano o livro "António Arnaut - Biografia", da autoria dos jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado. 

António Arnaut (1936-2018) foi um advogado português que nasceu em Penela e viveu a maior parte da sua vida em Coimbra. Teve uma relevante participação cívica e cultural no panorama nacional: do ponto de vista político, foi um dos fundadores do Partido Socialista, foi deputado, vice-presidente da Assembleia da República e Ministro dos Assuntos Sociais; ainda enquanto político, criou e defendeu o Serviço Nacional de Saúde (SNS); foi autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios; pertenceu à maçonaria, uma instituição filantrópica, tendo exercido o cargo de Grão-Mestre do GOL. 

Sempre que possível, utilizava o espaço mediático para defender o SNS, a ética, a justiça e a igualdade, assim como para criticar a corrupção e o neoliberalismo.

O livro pode ser divido em oito partes: do capítulo 1 ao 6 é apresentada a história da criação e vicissitudes do SNS, o capítulo 7 aborda os aspetos principais da sua vida, os capítulos 8 a 10 são dedicados à sua experiência militar, o capítulo 11 centra-se na sua relação com a religião e a perda da fé, nos capítulos 12 a 15 é dada a conhecer a sua vida política, os capítulos 16 a 18 são dedicados à sua atividade literária, os capítulos 19 a 21 abordam a sua preocupação com a ética e a sua intervenção cívica e social, o capítulo 22, o último, encerra com o reconhecimento público que mereceu. 


quinta-feira, 29 de junho de 2017

"Não se deixe enganar" além fronteiras

O livro "Não se deixe enganar", recentemente publicado pela COMCEPT, está a ter uma boa recepção mediática pelos mais diversos órgãos de comunicação, desde a imprensa escrita, passando pela rádio, até à televisão. Já chegou inclusive a passar as fronteiras do nosso país. Nesse sentindo, partilho aqui a entrevista dada ao programa Efervesciência, da rádio galega, e a menção no European Skeptics Podcast (a partir dos 30 min). 

No Efervesciência falou-se também dos livros publicados pelo professor Carlos Fiolhais e por David Marçal, que têm escrito sobre temas idênticos e que são os prefaciadores deste livro.


sexta-feira, 14 de abril de 2017

A culpa é das estrelas?

Num encontro com alunos do ensino básico (organizado pela Rede de Bibliotecas Escolares), perguntei aos jovens que livros tinham lido. Vários referiram-me “A culpa é das Estrelas” de John Green, um “best-seller” que não conhecia. Pois fui ler e gostei. Bem escrito, com humor – na verdade o que os jovens devem ter gostado mais – e eles não lêem estes livros com os mesmos olhos dos adultos – e, não, não achei nem triste nem lamechas.

Para quem não saiba, o livro tem como heroína Hazel, uma jovem de dezasseis anos que tem um cancro da tiróide com metástases no pulmão e um namorado de dezassete, também com cancro, que conheceu num grupo de apoio, o qual acaba por morrer. As personagens têm aquele tipo de humor optimista e irónico que gostamos em Oscar Wilde e Mark Twain que nos pode reconciliar com a condição humana e o mundo, mas nem sempre... Foi uma pena que não o tivesse lido antes, pois poderia ter dito mais algumas coisas sobre como este livro nos pode fazer reflectir sobre o cancro, o que sabemos sobre esta doença e os medos que nos inspira.

Antes de mais é preciso notar, como diz o autor, que se trata de uma obra de ficção, na qual este nem sempre quis seguir os conselhos científicos que lhe foram dando. O cancro de que a heroína sofre, carcinoma diferenciado da tiróide, tem, em geral, diz a literatura, boas possibilidades de tratamento e, os cancros de tiróide, em jovens têm elevado grau de possibilidade de cura (99.7% sobrevivem mais de 5 anos, segundo os mais recentes números - ver abaixo). E têm aparecido novos medicamentos para os casos mais difíceis (por exemplo, a EMA aprovou o lenvatinib em 2013 - a FDA em 2015 – para os casos raros de carcinomas da tiróide resistentes a outras terapias). E há, claro, vários outros medicamentos e tratamentos, mas, em termos individuais e também estatísticos, como veremos adiante, há uma componente de azar e sorte.

É também de notar a envolvência de cuidados de saúde e o apoio aos doentes que se observa no livro. É certo que as coisas nem sempre correm bem e nem sempre as pessoas que trabalham em saúde lidam com perfeição com as situações humanas, mas a procura do controlo do sofrimento e a qualidade de vida que é oferecida aos doentes, são hoje muito mais elevados do que no passado. A Hazel tem à sua disposição analgésicos, oxigénio transportável e muitas outras coisas que aparecem de forma directa ou indirecta no livro. O medicamento que o autor declarou inventar para sua e nossa fantasia, o Falanxifor, não é um nome de um antitumoral genérico (este poderia terminar em mab, se fosse um anticorpo, tinib, se fosse um inibidor da tirosinaquinase, ou ainda em antrone, nercept, fulven, citabin, etc., sufixos de antitumorais) Este nome poderia, claro, ser o da marca do medicamento, mas o mais provável será o autor ter escolhido um nome não causasse confusão com nomes reais.

Dois artigos que sairam recentemente (Siegel et al. 2017 e Tomasetti et al. 2017) levantam algumas questões importantes sobre o cancro, mas é preciso ter cuidado com os mal-entendidos. O cancro é uma questão de sorte ou azar? Há riscos acrescidos? Estão a aparecer mais ou menos casos de cancro? Morre mais gente de cancro? Os novos tratamentos são uma ilusão ao serviço do lucro da indústria farmacêutica? Há distorções no mercado dos medicamentos?

A forma como fazemos as perguntas, condiciona quase sempre as respostas. Comecemos pelas duas últimas (de que os artigos acima não tratam). Não, os novos tratamento e medicamentos não são uma ilusão, mas os milagres são uma questão de fé. Para doenças como as escleroses, as fibroses, alguns tipos de cancro, a hepatite C, a hemofilia, certas doenças genéticas raras, etc., tudo o que se vai conseguindo é bom, mas é preciso mais. E é cada vez mais difícil e caro obter novos medicamentos. Eles vão surgindo a um ritmo médio de apenas trinta por ano, e isso é pouco. Milhares de investigadores nas universidades e em pequenas e grandes companhias vão fazendo descobertas fundamentais e importantes, mas os testes clínicos são tão caros, demorados e complexos, que quando os medicamento inovadores chegam perto do mercado, a maioria das pequenas companhias e as suas patentes são compradas pelas grandes companhis por milhões - não raras vezes vezes biliões - de euros! Tudo isso, claro, se reflecte no preço dos medicamentos inovadores e pode causar (causa certamente) distorções no mercado e na investigação que conduz ao desenvolvimento de novos medicamentos. Para as grandes companhias é actulmente mais lucrativo investir em medicamentos para doenças raras ou de paises "ricos",  do que em infecções de paises "pobres" que precisem de novos antibióticos, ou comprar medicamentos em teste com boas probabilidades de serem aprovados, do que iniciar novos projectos que têm grande probabilidade de falhar ou de não dar lucro. Mas, para os investigadores nas universidades, centros de investigação e pequenas companhias tudo isso é uma oportunidade! A investigação sobre doenças potencialmente menos interessantes para as grandes companhias, como a malária ou outras infecções, vai sendo mantida viva, pela investigação nas universidades e centros de investigação.

Mas voltemos às outras questões. Sim, actualmente morrem mais pessoas de cancro, mas apenas porque somos muitos mais no planeta! E, não, não morrem mais pessoas de cancro em percentagem da população. Todos os estudos (ver as referências) indicam que a incidência de cancro é, em geral, actualmente menor e a percentagem de sobrevivência é cada vez maior. E as crianças e jovens? Mais uma vez, os números dizem que a generalidade do número de cancros não está a aumentar e que a probabilidade de tratamento e cura aumentou claramente nos últimos anos.

É claro que à medida que se envelhece, a probabilidade de ter cancro aumenta, mas pode não se morrer do primeiro cancro, nem do segundo, talvez do terceiro, quarto ou quinto e, eventualmente, todos acabaremos por morrer, seja lá do que for. Claro que há um elemento de sorte ou azar, mas achar que não se pode fazer nada em relação a isso é muito enganador.

Sim, de acordo com o estudo de Tomasetti et al. (2017), cerca de dois terços das mutações que podem conduzir a cancros surgem por acaso e apenas um terço é devido ao aumento do risco. Mas, sim, os riscos acrescidos devido ao fumo do tabaco, a alimentação pobre em legumes e rica em carne e gorduras e outros riscos são também relevantes como referem os autores do estudo, assim como a prevenção e a intervenção atempada. Mais do que isso, mutações não é o mesmo que cancro.

Voltando ao livro. A culpa pode ser das estelas (chamando dessa forma o azar) em dois terços dos casos, mas para a maioria dos casos já existem os medicamentos e por isso a mortalidade média tem diminuido, assim como a qualidade de vida dos doentes tem aumentado.

A longo prazo estaremos todos mortos, escreveu Keynes. Todos, diz a Hazel no grupo de apoio: Chegará uma época em que todos nós estaremos mortos. Todos. (…) mesmo que sobrevivamos ao colapso do Sol, não iremos sobreviver para sempre. (...)

Numa anedota (irónica) que por acaso contei nesse dia aos alunos, uma idosa que assistia a uma palestra sobre astronomia, ouviu que o Sol iria acabar, mas não percebeu bem se seria  nos próximos 10 milhões ou nos pŕoximos 10 biliões de anos... Ah! 10 biliões!? Fico mais descansada... 

Referências
Siegel et al. Cancer statistics, 2017. CA Cancer J Clin. 2017; 67:7–30
Tomasetti et al., Stem cell divisions, somatic mutations, cancer etiology, and cancer prevention, Science 2017, 355:1330-1334
Walsh, M. Reports that cancer is ‘mainly bad luck’ make a complicated story a bit too simple (acedido 13 de Abril de 2017)

Referências adicionais
American Cancer Society, Global Cancer Facts & Figures, 3rd edition, 2015 
Siegel et al. Cancer statistics, 2016. CA Cancer J Clin. 2016; 66:7-30
Ward et al. Childhood and adolescent cancer statistics, 2014. CA Cancer J Clin. 2014;64:83-103

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Evocações químicas a propósito da obra de Miguel Torga: da banalidade ao maravilhoso


Texto elaborado para a palestra realizada na Casa Miguel Torga, no dia 10 de Fevereiro de 2016, integrada nas “Tardes no Torga”

O que liga a química a Miguel Torga? Que evocações químicas podemos encontrar em Torga? Na minha opinião, muitas e variadas: desde as mais banais – mas nem por isso menos interessantes, pois são portas para o maravilhoso - até às mais subis que nos conduzem a caminhos inesperados. Como quimico e leitor de Miguel Torga, são esses caminhos que irei percorrer, procurando não me perder com erudições fúteis,
Coimbra, 9 de Novembro de 1984 – Sábios. Lá estive parte da noite no meio deles, a ouvi-los como de castigo. Minerva é só meia irmã das Musas. Nunca ensinou a nenhum filho que o fulgor de um verso pode valer por mil silogismos. [...]
Esta passagem do Diário serviu-me de desafio para a palestra. Colocar a relação entre a ciência, neste caso a química, e a poesia não em campos opostos, mas complementares. Ou mesmo, seguindo Shelley, procurar mostrar que a ciência é muito importante porque nos ajuda a explicar e agir sobre a complexidade e maravilhas mundo, enquanto que a poesia pode contribuir para a compreensão, aceitação e admiração do mundo.

A obra de Miguel Torga deve ser lida, mais do que analisado. A beleza e a lucidez por vezes crua, mas não cruel, da sua escrita, única e maravilhosas, sublimam, em particular no Diário – o qual soma mais de mil e setecentas páginas - sessenta anos da vida de um ser humano que declarando-se poeta, foi também médico. Um poeta cuja poesia mais sublime está, na minha opinião, nos seus contos e Diário. Um caminhante e admirador da natureza verdadeira (não da romântica dos que não a vivem), um viajante incansável, praticante da liberdade, e, sobretudo dono de uma curiosidade intelectual e cultural insaciáveis, as quais foi preenchendo de forma tanto sistemática quanto caótica, a partir de uma infância dura. O Diário e os contos devem ser lidos, repito, assim como essa obra única que é a sua autobiografia com a geografia retocada que é a Criação do Mundo.

Não conheci Torga pessoalmente, mas acredito compreender muitos aspectos da personalidade de Torga pois, eu próprio, filho de um latoeiro – curiosamente há vários no Diário que Torga vai observando e admirando -, que mais tarde foi operário sem deixar de ser artista da lata, e também neto de pessoas do campo, encontrei em Torga, com as devidas distâncias, muitos dos inconformismos que desenvolvi e muitas das desconfianças que uma pessoa que vem do campo encontra na cidade, em especial quando, como Torga, se cruza com citadinos que não sabem desmanchar um porco de matança, nem conhecem a diferença entre uma oliveira e um azambujeiro, e que não entendem que a cultura e a poesia são conquistas e não heranças. Que a rudeza da natureza e a nossa ação sobre ela é também a sua beleza e tragédia,
Coimbra, 20 de Novembro de 1960 O que me tem valido é a resistência da cepa. Sou como aquelas oliveiras cordovesas enxertadas a azambujeiro. Dou azeite poético, com a mínima acidez possível, num cavalo com toda a amargura do mundo.
Torga costuma ser catalogado como um escritor rural e telúrico, ligado às serranias e fragas de Trás-os-Montes. Mas, no que escreveu, não se encontra bucolismo nem saudosismo - antes pelo contrário-, para além da admiração pela coragem e carácter das gentes do campo e relativa compreensão para com a resignação destas em relação à miséria e ao sofrimento. Segundo Torga, Eça falhou em A Cidade e as Serras porque nunca sujou as botas na serra. Embora, escrita num contexto particular, a afirmação seguinte de Torga resume o seu inconformismo e ao mesmo tempo a sua adesão ao progresso ao serviço da humanidade,
Coimbra, 31 de Outubro de 1947 [...] Não sou impermeável ao progresso, muito pelo contrário, mas necessito que me demonstrem a razão das coisas.
Claramente, em alguns momentos que irei referir mais à frente, Torga não ficou convencido da necessidade do progresso, e até o rejeitou ou se refugiou dele,
Coimbra, 26 de Abril de 1952 Contra o aceleramento da história um passeio no campo. Não conheço outro antídoto. Diante de uma arte que parece ter as suas possibilidades esgotadas [...] duma ciência que devora a própria matéria que estuda, ou duma técnica apostada em envergonhar a nossa fisiologia – só há o recurso das hortas.
Noutros momentos, acreditou na esperança, com a ironia de quem nos anos 1960 acompanhava as promessas de cura para todas as doenças,
Coimbra, 20 de Dezembro de 1966
[…] não há dia nenhum sem a notícia de qualquer prodígio. Astronautas que sobem e descem, descobertas que se sucedem, ortodoxias que se pulverizam, doenças incuráveis que se curam, toda a vida do mundo a ferver no caldeirão da esperança.
Hoje, poder-se-ia fazer a mesma ironia – num artigo recente do The Economist tinha o título: “2016: o cancro vai ser curado... outra vez!” -, mas isso seria um erro de perspectiva. Curamos actualmente muito mais doenças e para isso a química muito tem contribuido.

Mas voltemos à aparente trivialidade: o uso da palavra «química». Miguel Torga utiliza a palavra algumas vezes no Diário. Por exemplo, em sentido literal, esta é usada para se referir à água,
São Martinho de Anta, 27 de Dezembro de 1938 Descobri hoje a água. Não a água lírica dos poetas. Descobri mas foi a água química e líquida, a correr, a manar duma fraga [...]
Esta bela passagem pode levar-nos à complexa química desse líquido especial que é água, que existe no nosso planeta nos três estados e é a substância mais importante para a vida – tudo coisas tão banais como maravilhosas – mas deixemos isso para outro altura. A água, em especial a termal, tem uma presença importante em Torga. Na passagem seguinte evoca-se simultaneamente a descrença na ciência e na água como tratamento, e mesmo como enriquecedor das relações humanas...
Caldelas, 16 de Agosto de 1952 «Quem com água se cura, pouco dura» diz o ditado. Mas eu cá me vou aguentando, a beber água da fonte. Com a mala cheia de drogas, acabo por engolir apenas estes bochechos homeopáticos de linfa natural [...] maltratado pela ciência de hoje, apego-me instintivamente a esta sabedoria empírica do passado, além do mais, poética. [...]
A paisagem repete-se muito [...] os devotos são sempre os mesmos [...] mazelas que nunca são curadas [...]
Relações humanas para as quais Torga clama por um "insecticida" - produto da química bastante discutido no final dos anos 1950 - metafórico,
Coimbra, 21 de Abril de 1959 – Tanto insecticida que se descobre, e não há meio de aparecer um capaz de debelar o equívoco – a praga das relações humanas.
A química é referida em sentido metafórico duas outras vezes,
Leiria, 5 de Abril de 1940 – [...] O Monte dos Vendavais. Nunca li nada onde o tétrico fosse tão quimicamente puro.
Porto, 28 de Abril de 1958 […] assistir à representação de uma peça nossa. Tem-se pelo menos a visão objectiva da impotência quimicamente pura.
No contexto da prática médica de Torga e das operações e análises a que é sujeito, surgem também referências explícitas à química,
Lisboa, Hospital de S. Luís, 21 de Junho de 1972 […] a minha natureza tenta manter-se alerta. Mas tem contra ela o poder da química e a tarimba do médico. O hipnótico acabará por actuar […]
Coimbra, 26 de Janeiro de 1986 O dia inteiro a ser prescrutado por dentro pelos olhos impiedosos da ciência. A física e a química apostadas em determinar os dias que me restam. Dantes a duração da vida era um mistério sagrado. Agora conhecem-se os mecanismos íntimos da fisiologia e basta a dosagem no sangue de determinado elemento para sabermos a que distância estamos do fim. É um grande progresso do saber e uma grande desolação. Sai-se do laboratório com um sentença de caica sem apelo nem agravo, a cumprir a curto prazo, exarada laconicamente num algarismo, num gráfico, numa imagem.
As referências não literais que aparecem à química no decurso da sua prática médica e da análise que vai fazendo do mundo, ao longo da sua vida de escritor são muito mais interessantes. Assim, como os reflexos que vai dando e recebendo do que acontece no mundo que o rodeia. Em especial, os textos que vai escrevendo refletem processos naturais e artificiais, assim como o impacto da existência ou não de medicamentos químicos para determinadas doenças. Já segui essa pista, que nos pode conduzir do banal ao maravilhoso, no livro “Jardins de Cristais- Química e Literatura” e vou aqui complementá-la com alguns outros exemplos.

Nos Contos da Montanha, de 1941, no conto Maria Lionça, o médico pouco mais faz do que receitar óleo canforado, tintura de jalapa e digitalina. No início do Diário, Torga está na aldeia a receitar pouco mais do que xaropes. O médico é demasiadas vezes impotente perante a doença. Nos Novos Contos da Montanha, de 1944, Julião está condenado e o médico nada pode fazer,
O médico olhou-o, coçou a cabeça, pôs-se a mexer nos papéis da mesa, e acabou por dizer a triste verdade.
- Pois é, é... infelizmente, é.
Nem falaram de remédios, nem de hospital, nem de nada. […] Ambos se resignavam aquela fatalidade monstruosa. O doutor ficava com o nome miraculoso e com a sabedoria inútil; o gafado ia mostrar ao mundo, de mão estendida, a sua repugnante desgraça.
[...]
A tragédia é total e quase incompreensível hoje em que a lepra é facilmente curada, mas ainda não desapareceu totalmente. Só nos anos 1950 apareceu um medicamento eficaz, a dopsona. Até lá a doença era tristemente democrática,
São Martinho de Anta, 15 de Setembro de 1945 [...] Tudo ignorância? Tudo miséria? Talvez. Mas a lepra toca os ricos, os pobres e os remediados [...]
Como indiquei com mais pormenor em “Jardins de Cristais” o tratamento proposto a Julião, embora inútil, não estava muito longe do único que havia até aos anos 1940, um ácido obtido do óleo de chaulmoogra, muito semelhante em termos fórmula química (não de estrutura) ao ácido oleico do azeite. Assim a cura desesperada - mas inútil - tinha algumas parecenças com as que existiam...
- Você já experimentou azeite? - perguntou-lhe um dia em S. Cibrão uma velhota – Dizem que é como quem dá um talhadoiro. Tem é de se tomar banho nele. [...]
Infelizmente as chagas e os bubões da lepra foram insensíveis ao banho purificador. E, o Julião depois de alguns dias de esperança, incerteza e desilusão, esqueceu-se de si e da sua tragédia, para começar a pensar noutra coisa: reaver os cinquenta mil reis que dera pelo remédio enganador. […] Quem seria capaz de lho comprar? [...]
Também os antibióticos não estavam disponíveis até 1944. Em 1943, Torga escreveu,
Coimbra, 4 de Maio de 1943
[...] uma meningite, muitos dias entre a vida e a morte [...] e o doutor no derradeiro instante a salvar a situação com um frasco de sulfamidas e algumas injeções de soro.
As sulfamidas são medicamentos sintéticos artificiais, mas bastante falíveis e com muitos efeitos secundários. Hoje não passariam no crivo dos testes clínicos.

E, em 1945, Torga experimenta pela primeira vez a penicilina,
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1945 – Penicilina. Lá ensaiei também a última panaceia que a ciência inventou. Um miúdo em arder em febre, o pus a estalar-lhe os ouvidos, e dores medonhas. Dantes deitavam-lhe sobre a membrana do tímpano leite de parida, e era cura radical. Agora, penicilina. Quando a fui buscar a casa de um doente onde havia sobrado, o pai do enfermo não queria largar mão do tesoiro. [...] acreditava com uma força sobrenatural na magia da droga. [...] E eu injetei aquilo ao mesmo tempo humilhado e contrito. Por um lado, sabia que o fungo havia de ser ridículo daqui a cinquenta anos; por outro, era o máximo que o esforço, a inteligência e a esperança da humanidade tinham conseguido até hoje.
Torga tem bastante intuição sobre a perda de eficácia da penicilina, devida à evolução das bactérias que resulta na resistência aos antibióticos. Depois da penicilina, uma molécula de origem natural, isolada a partir de 1941 e preparada em série a partir de 1944, inicialmente para uso militar, foram descobertos outros antibióticos naturais e semi-sintéticos. Um destes é ampicilina que é uma modificação artificial da penicilina e ficou disponível a partir de 1961.

Actualmente são conhecidas mais de cem milhões de substâncias, sendo descobertas mais de quinze mil por dia. Cerca de metade são de origem natural, sendo a outra metade de origem artificial, ou seja feitas em laboratório, não existindo na natureza. Outras, existindo na natureza, são produzidas (sintetizadas) de forma não natural (tendo exactamente as mesmas propriedades das naturais). Muitas destas moléculas são possíveis medicamentos.

A situação é muito diferente do início do século XX. O primeiro grande estudo sistemático foi realizado por Paul Ehrlich que descobriu, em 1909, a “bala mágica” para a sífilis, o salvarsan. Mas estes tipos de descoberta foram durante muitos anos muito escassos.

Voltando aos Contos da Montanha, de 1941, no conto Castigo, um parto corre mal,
Num terror de náufrago, o Dr. Daniel pôs-se a injetar anticoagulantes a torto e a direito, a meter mechas, a comprimir o ventre com toda a força. Nada.
[…]
O pulso caía a olhos vistos. Uma palidez de cera cobria o rosto da infeliz.
- Cardiazol, depressa!
- Quero o meu homem ao pé de mim! - pediu Silvana, com súbita energia.
[…]
- Vou morrer, Bernardo, e quero-te pedir perdão....
A tragédia é grande, mas concentremo-nos em duas palavras «anticoagulantes» e «cardiazol». O anticoagulante disponível era a heparina, um polisacarídeo anticoagulante natural obtido a partir de animais. Demorou ainda algum tempo a surgir um anticoagulamente artificial, a varfarina, mas a heparina ainda hoje é usada. A história da heparina é interessante, mas a do cardiazol é muito mais. Tendo descoberto, em 1924, um processo para produzir tetrazóis, Karl-Friedrich Schmidt patenteou a possibilidade de obter moléculas com essa estrutura e criou de imediato uma companhia farmacêutica. Em 1926 a molécula já era testada como estimulante da respiração e fluxo sanguíneo e do SNC em geral. Rapidamente se tornou popular, sabendo-se, no entanto, que em excesso provocava convulsões. Em 1937 foi testada para um suposto tratamento de doentes mentais com terapia convulsiva. Esse tratamento era complicado e tinha efeitos secundários elevados, tendo sido substituido mais tarde pela terapia electroconvulsiva.
Só a partir dos anos 1950 foram desenvolvidos medicamentos relativamente eficazes para a esquizofrenia e outras doenças mentais, deixando a terapia convulsiva, o choque insulínico, a terapia malárica e a lobotomia como horrores históricos que espelham a impotência da medicina, antes dessa década, perante estas doenças. É de notar, a esse propósito, o conto Milagre em que Raquel depois de desenganada da medicina é levada à bruxa fica “curada” apenas a tempo de se atirar de uma fraga.

Há bastantes outros partos nos livros de Miguel Torga, um deles realizado por um padre com sucesso. Noutros, como no do conto anterior as coisas correm mal. Noutros ainda há nados-mortos, mortes prematuras, injeções, sofrimento. As coisas melhoraram muito desde essa altura. Ha também bastantes referências a proles extensas. A Mariana de Novos Contos da Montanha e a meretriz do Diário, por exemplo,
Coimbra, 28 de Abril de 1943
[...]
Profissão?
- Meretriz.
- Filhos?
- Oito.
- E todos desde que...
- Todos.
[...] Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco [...]
- Abortos?
- Nenhum.
[...]
O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada [...]
Será que estas seriam as mesmas personagens com o conhecimento dos contraceptivos orais modernos, disponibilizados pela química a partir dos anos 1960?

O Diário espelha também muito bem a evolução de atitudes perante o tabaco, um produto natural que faz muito mal por se ingerir o seu fumo cheio de produtos também naturais, infelizmente cancerígenos. Nos anos 1940 fazia tosse, nos anos 1980 era já claramente nocivo,
Coimbra, 15 de Abril de 1943 – Era preciso dizer-lhe que o fumo lhe fazia mal, lhe aumentava a tosse e o pigarro. Nos livros, pelo menos, vinha assim. Mas filosofei:
- Olhe, a vida, sem uma pitada de risco, não presta. [...] um diabo que se esconda no bolso do colete [...] Intoxica, mas é um regalo vê-lo depois desfeito em cinza, vencido à custa de um segundo da nossa vida.

Praia do Pedrógão, 23 de Agosto de 1981Os malefícios do tabaco. […] os do cigarro que concreto que toda a gente fuma. […] E pôs-me diante dos olhos as estatísticas, por mim, de resto, conhecidas. Simplesmente, eu navegava noutras águas. Nas da angústia humana, que desde os primórdios […] se socorreu de tóxicos que a acalmassem, pacificassem, fosse qual fosse o preço. […] Há dores mais profundas e pertinazes do que essas que se aliviam com aspirina.
Podemos encontrar aspectos químicos ainda mais subtis. A partir do conto A vindima, já muito analisado em termos linguísticos e sociológicos, podemos seguir um manancial de alusões química. A produção do vinho, as reações de transformação da glicose em etanol na produção do vinho. Os efeitos do álcool no mosto parcialmente fermentado,
Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. […]
Podemos seguir a química do amor, com as moléculas norepinefrina, serotonina e dopamina, que, sendo, palavras bonitas contribuem para a beleza do amor,
Ou porque trazia dentro o fogo da paixão a aquecê-la, ou inspirada pela beleza do cenário, a Lúcia punha o coração a voar […]
E chegar à química da tragédia e do sofrimento,
[…] quando daí a bocado chegou congestionado à vinha e deu a notícia do desastre, quase teve de berrar.
Foi então que a voz da Lúcia estacou de vez. Garroteada como a do namorado, a garganta fechou-se-lhe num espasmo de perpétua agonia.
Vitorino entrou dentro do tonel e já não saiu com vida, provavelmente devido a envenenamento com monóxido de carbono, mas também poderia ter sido devido a asfixia por dióxido de carbono, como acontece, por vezes, em poços. No primeiro caso, o monóxido de carbono, um gás que não tem uma densidade muito diferente do ar, mas que tem uma afinidade muito maior para a hemoglobina do que o oxigénio, adormece-se e morre-se – numa tragédia infelizmente ainda hoje repetida - sem o sentir, com a presença de concentrações mínimas de monóxido no ar. No segundo caso, o dióxido de carbono é um gás mais denso que o ar e morre-se de asfixia em locais em que este se acumule.

Há vários outros aspectos relacionáveis com a química e a ciência em Torga. Não é possível aqui enumerar todos. A bomba atómica é referida várias vezes no Diário. Também os plásticos e o petróleo são evocados, numa primeira perspectiva parecendo como críticas ao progresso, ou, lembrando uma passagem acima, como progresso não comprendido,
Santo António do Zaire, 22 de Maio de 1973 Petróleo! Escrevo a palavra, creio que pela primeira vez, e quase que me admiro de a não ver alastrar no papel numa grande nódoa negra e gordurosa. […] Contemporâneo do advento triunfal na cena do mundo desse pus untoso e fétido, extraído dos abscessos recônditos da terra, nunca consegui acomodá-lo harmoniosamente nos sentidos e no entendimento. Sei que onde ele aflora, nasce o oiro. Mas nem assim o amo. O ver do céu, há pouco, o primeiro poço a arder, perguntei a mim mesmo dentro o avião, apesar de o saber alimentado a gasolina, se aquela chama seria um lume de esperança ou um sinal de maldição. […] ia pensando na lição que ali estávamos a dar ao indígena. Em vez de lhe emprestarmos consciência racional à sua riqueza anímica, de lhe abrirmos o entendimento para as virtualidades da natureza que ama mas desaproveita, ensinamos-lhe a técnica de a destruir, de a violentar, de a esventrar e de a poluir finalmente com as fezes da sua própria alma queimada.
Pondo de parte a referência paternalista à "lição" ao indígena  já que todas as afirmações têm de ser vistas à luz do seu tempo e do seu espírito, trata-se de uma proposta claramente ecologista. Já sobre o petróleo: dádiva ou maldição? A resposta depende do nosso optimismo ou pessimismo, mas, como Torga bem refere, não podemos, por agora, passar sem ele.
S. Martinho de Anta, 26 de Março de 1978 - A feira. […] Acabou o artesanato, a expressão singular da atividade humana. Nem um barro modelado, nem uma manta tecida à mão, nem o ferro forjado. Plásticos a todos os níveis. E o mais trágico é que ninguém dá por isso. Ninguém parece lembrar-se sequer do latoeiro, do cesteiro, ou do tanoeiro […] Montes e montes de produtos incaracterísticos, feitos em série enfartam agora os compradores.
Mas afinal o que é criticado não é o material, agente inanimado, mas o seu uso. Montes de produtos incaracterísticos que não parecem ter alma ou calor humanos. A culpa não é dos plásticos é nossa!

Em Torga há percursos a explorar com um olhar químico, partindo da banalidade do dia-a-dia para o espanto perante o maravilhoso que nos rodeia. 

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...