sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Evocações químicas a propósito da obra de Miguel Torga: da banalidade ao maravilhoso


Texto elaborado para a palestra realizada na Casa Miguel Torga, no dia 10 de Fevereiro de 2016, integrada nas “Tardes no Torga”

O que liga a química a Miguel Torga? Que evocações químicas podemos encontrar em Torga? Na minha opinião, muitas e variadas: desde as mais banais – mas nem por isso menos interessantes, pois são portas para o maravilhoso - até às mais subis que nos conduzem a caminhos inesperados. Como quimico e leitor de Miguel Torga, são esses caminhos que irei percorrer, procurando não me perder com erudições fúteis,
Coimbra, 9 de Novembro de 1984 – Sábios. Lá estive parte da noite no meio deles, a ouvi-los como de castigo. Minerva é só meia irmã das Musas. Nunca ensinou a nenhum filho que o fulgor de um verso pode valer por mil silogismos. [...]
Esta passagem do Diário serviu-me de desafio para a palestra. Colocar a relação entre a ciência, neste caso a química, e a poesia não em campos opostos, mas complementares. Ou mesmo, seguindo Shelley, procurar mostrar que a ciência é muito importante porque nos ajuda a explicar e agir sobre a complexidade e maravilhas mundo, enquanto que a poesia pode contribuir para a compreensão, aceitação e admiração do mundo.

A obra de Miguel Torga deve ser lida, mais do que analisado. A beleza e a lucidez por vezes crua, mas não cruel, da sua escrita, única e maravilhosas, sublimam, em particular no Diário – o qual soma mais de mil e setecentas páginas - sessenta anos da vida de um ser humano que declarando-se poeta, foi também médico. Um poeta cuja poesia mais sublime está, na minha opinião, nos seus contos e Diário. Um caminhante e admirador da natureza verdadeira (não da romântica dos que não a vivem), um viajante incansável, praticante da liberdade, e, sobretudo dono de uma curiosidade intelectual e cultural insaciáveis, as quais foi preenchendo de forma tanto sistemática quanto caótica, a partir de uma infância dura. O Diário e os contos devem ser lidos, repito, assim como essa obra única que é a sua autobiografia com a geografia retocada que é a Criação do Mundo.

Não conheci Torga pessoalmente, mas acredito compreender muitos aspectos da personalidade de Torga pois, eu próprio, filho de um latoeiro – curiosamente há vários no Diário que Torga vai observando e admirando -, que mais tarde foi operário sem deixar de ser artista da lata, e também neto de pessoas do campo, encontrei em Torga, com as devidas distâncias, muitos dos inconformismos que desenvolvi e muitas das desconfianças que uma pessoa que vem do campo encontra na cidade, em especial quando, como Torga, se cruza com citadinos que não sabem desmanchar um porco de matança, nem conhecem a diferença entre uma oliveira e um azambujeiro, e que não entendem que a cultura e a poesia são conquistas e não heranças. Que a rudeza da natureza e a nossa ação sobre ela é também a sua beleza e tragédia,
Coimbra, 20 de Novembro de 1960 O que me tem valido é a resistência da cepa. Sou como aquelas oliveiras cordovesas enxertadas a azambujeiro. Dou azeite poético, com a mínima acidez possível, num cavalo com toda a amargura do mundo.
Torga costuma ser catalogado como um escritor rural e telúrico, ligado às serranias e fragas de Trás-os-Montes. Mas, no que escreveu, não se encontra bucolismo nem saudosismo - antes pelo contrário-, para além da admiração pela coragem e carácter das gentes do campo e relativa compreensão para com a resignação destas em relação à miséria e ao sofrimento. Segundo Torga, Eça falhou em A Cidade e as Serras porque nunca sujou as botas na serra. Embora, escrita num contexto particular, a afirmação seguinte de Torga resume o seu inconformismo e ao mesmo tempo a sua adesão ao progresso ao serviço da humanidade,
Coimbra, 31 de Outubro de 1947 [...] Não sou impermeável ao progresso, muito pelo contrário, mas necessito que me demonstrem a razão das coisas.
Claramente, em alguns momentos que irei referir mais à frente, Torga não ficou convencido da necessidade do progresso, e até o rejeitou ou se refugiou dele,
Coimbra, 26 de Abril de 1952 Contra o aceleramento da história um passeio no campo. Não conheço outro antídoto. Diante de uma arte que parece ter as suas possibilidades esgotadas [...] duma ciência que devora a própria matéria que estuda, ou duma técnica apostada em envergonhar a nossa fisiologia – só há o recurso das hortas.
Noutros momentos, acreditou na esperança, com a ironia de quem nos anos 1960 acompanhava as promessas de cura para todas as doenças,
Coimbra, 20 de Dezembro de 1966
[…] não há dia nenhum sem a notícia de qualquer prodígio. Astronautas que sobem e descem, descobertas que se sucedem, ortodoxias que se pulverizam, doenças incuráveis que se curam, toda a vida do mundo a ferver no caldeirão da esperança.
Hoje, poder-se-ia fazer a mesma ironia – num artigo recente do The Economist tinha o título: “2016: o cancro vai ser curado... outra vez!” -, mas isso seria um erro de perspectiva. Curamos actualmente muito mais doenças e para isso a química muito tem contribuido.

Mas voltemos à aparente trivialidade: o uso da palavra «química». Miguel Torga utiliza a palavra algumas vezes no Diário. Por exemplo, em sentido literal, esta é usada para se referir à água,
São Martinho de Anta, 27 de Dezembro de 1938 Descobri hoje a água. Não a água lírica dos poetas. Descobri mas foi a água química e líquida, a correr, a manar duma fraga [...]
Esta bela passagem pode levar-nos à complexa química desse líquido especial que é água, que existe no nosso planeta nos três estados e é a substância mais importante para a vida – tudo coisas tão banais como maravilhosas – mas deixemos isso para outro altura. A água, em especial a termal, tem uma presença importante em Torga. Na passagem seguinte evoca-se simultaneamente a descrença na ciência e na água como tratamento, e mesmo como enriquecedor das relações humanas...
Caldelas, 16 de Agosto de 1952 «Quem com água se cura, pouco dura» diz o ditado. Mas eu cá me vou aguentando, a beber água da fonte. Com a mala cheia de drogas, acabo por engolir apenas estes bochechos homeopáticos de linfa natural [...] maltratado pela ciência de hoje, apego-me instintivamente a esta sabedoria empírica do passado, além do mais, poética. [...]
A paisagem repete-se muito [...] os devotos são sempre os mesmos [...] mazelas que nunca são curadas [...]
Relações humanas para as quais Torga clama por um "insecticida" - produto da química bastante discutido no final dos anos 1950 - metafórico,
Coimbra, 21 de Abril de 1959 – Tanto insecticida que se descobre, e não há meio de aparecer um capaz de debelar o equívoco – a praga das relações humanas.
A química é referida em sentido metafórico duas outras vezes,
Leiria, 5 de Abril de 1940 – [...] O Monte dos Vendavais. Nunca li nada onde o tétrico fosse tão quimicamente puro.
Porto, 28 de Abril de 1958 […] assistir à representação de uma peça nossa. Tem-se pelo menos a visão objectiva da impotência quimicamente pura.
No contexto da prática médica de Torga e das operações e análises a que é sujeito, surgem também referências explícitas à química,
Lisboa, Hospital de S. Luís, 21 de Junho de 1972 […] a minha natureza tenta manter-se alerta. Mas tem contra ela o poder da química e a tarimba do médico. O hipnótico acabará por actuar […]
Coimbra, 26 de Janeiro de 1986 O dia inteiro a ser prescrutado por dentro pelos olhos impiedosos da ciência. A física e a química apostadas em determinar os dias que me restam. Dantes a duração da vida era um mistério sagrado. Agora conhecem-se os mecanismos íntimos da fisiologia e basta a dosagem no sangue de determinado elemento para sabermos a que distância estamos do fim. É um grande progresso do saber e uma grande desolação. Sai-se do laboratório com um sentença de caica sem apelo nem agravo, a cumprir a curto prazo, exarada laconicamente num algarismo, num gráfico, numa imagem.
As referências não literais que aparecem à química no decurso da sua prática médica e da análise que vai fazendo do mundo, ao longo da sua vida de escritor são muito mais interessantes. Assim, como os reflexos que vai dando e recebendo do que acontece no mundo que o rodeia. Em especial, os textos que vai escrevendo refletem processos naturais e artificiais, assim como o impacto da existência ou não de medicamentos químicos para determinadas doenças. Já segui essa pista, que nos pode conduzir do banal ao maravilhoso, no livro “Jardins de Cristais- Química e Literatura” e vou aqui complementá-la com alguns outros exemplos.

Nos Contos da Montanha, de 1941, no conto Maria Lionça, o médico pouco mais faz do que receitar óleo canforado, tintura de jalapa e digitalina. No início do Diário, Torga está na aldeia a receitar pouco mais do que xaropes. O médico é demasiadas vezes impotente perante a doença. Nos Novos Contos da Montanha, de 1944, Julião está condenado e o médico nada pode fazer,
O médico olhou-o, coçou a cabeça, pôs-se a mexer nos papéis da mesa, e acabou por dizer a triste verdade.
- Pois é, é... infelizmente, é.
Nem falaram de remédios, nem de hospital, nem de nada. […] Ambos se resignavam aquela fatalidade monstruosa. O doutor ficava com o nome miraculoso e com a sabedoria inútil; o gafado ia mostrar ao mundo, de mão estendida, a sua repugnante desgraça.
[...]
A tragédia é total e quase incompreensível hoje em que a lepra é facilmente curada, mas ainda não desapareceu totalmente. Só nos anos 1950 apareceu um medicamento eficaz, a dopsona. Até lá a doença era tristemente democrática,
São Martinho de Anta, 15 de Setembro de 1945 [...] Tudo ignorância? Tudo miséria? Talvez. Mas a lepra toca os ricos, os pobres e os remediados [...]
Como indiquei com mais pormenor em “Jardins de Cristais” o tratamento proposto a Julião, embora inútil, não estava muito longe do único que havia até aos anos 1940, um ácido obtido do óleo de chaulmoogra, muito semelhante em termos fórmula química (não de estrutura) ao ácido oleico do azeite. Assim a cura desesperada - mas inútil - tinha algumas parecenças com as que existiam...
- Você já experimentou azeite? - perguntou-lhe um dia em S. Cibrão uma velhota – Dizem que é como quem dá um talhadoiro. Tem é de se tomar banho nele. [...]
Infelizmente as chagas e os bubões da lepra foram insensíveis ao banho purificador. E, o Julião depois de alguns dias de esperança, incerteza e desilusão, esqueceu-se de si e da sua tragédia, para começar a pensar noutra coisa: reaver os cinquenta mil reis que dera pelo remédio enganador. […] Quem seria capaz de lho comprar? [...]
Também os antibióticos não estavam disponíveis até 1944. Em 1943, Torga escreveu,
Coimbra, 4 de Maio de 1943
[...] uma meningite, muitos dias entre a vida e a morte [...] e o doutor no derradeiro instante a salvar a situação com um frasco de sulfamidas e algumas injeções de soro.
As sulfamidas são medicamentos sintéticos artificiais, mas bastante falíveis e com muitos efeitos secundários. Hoje não passariam no crivo dos testes clínicos.

E, em 1945, Torga experimenta pela primeira vez a penicilina,
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1945 – Penicilina. Lá ensaiei também a última panaceia que a ciência inventou. Um miúdo em arder em febre, o pus a estalar-lhe os ouvidos, e dores medonhas. Dantes deitavam-lhe sobre a membrana do tímpano leite de parida, e era cura radical. Agora, penicilina. Quando a fui buscar a casa de um doente onde havia sobrado, o pai do enfermo não queria largar mão do tesoiro. [...] acreditava com uma força sobrenatural na magia da droga. [...] E eu injetei aquilo ao mesmo tempo humilhado e contrito. Por um lado, sabia que o fungo havia de ser ridículo daqui a cinquenta anos; por outro, era o máximo que o esforço, a inteligência e a esperança da humanidade tinham conseguido até hoje.
Torga tem bastante intuição sobre a perda de eficácia da penicilina, devida à evolução das bactérias que resulta na resistência aos antibióticos. Depois da penicilina, uma molécula de origem natural, isolada a partir de 1941 e preparada em série a partir de 1944, inicialmente para uso militar, foram descobertos outros antibióticos naturais e semi-sintéticos. Um destes é ampicilina que é uma modificação artificial da penicilina e ficou disponível a partir de 1961.

Actualmente são conhecidas mais de cem milhões de substâncias, sendo descobertas mais de quinze mil por dia. Cerca de metade são de origem natural, sendo a outra metade de origem artificial, ou seja feitas em laboratório, não existindo na natureza. Outras, existindo na natureza, são produzidas (sintetizadas) de forma não natural (tendo exactamente as mesmas propriedades das naturais). Muitas destas moléculas são possíveis medicamentos.

A situação é muito diferente do início do século XX. O primeiro grande estudo sistemático foi realizado por Paul Ehrlich que descobriu, em 1909, a “bala mágica” para a sífilis, o salvarsan. Mas estes tipos de descoberta foram durante muitos anos muito escassos.

Voltando aos Contos da Montanha, de 1941, no conto Castigo, um parto corre mal,
Num terror de náufrago, o Dr. Daniel pôs-se a injetar anticoagulantes a torto e a direito, a meter mechas, a comprimir o ventre com toda a força. Nada.
[…]
O pulso caía a olhos vistos. Uma palidez de cera cobria o rosto da infeliz.
- Cardiazol, depressa!
- Quero o meu homem ao pé de mim! - pediu Silvana, com súbita energia.
[…]
- Vou morrer, Bernardo, e quero-te pedir perdão....
A tragédia é grande, mas concentremo-nos em duas palavras «anticoagulantes» e «cardiazol». O anticoagulante disponível era a heparina, um polisacarídeo anticoagulante natural obtido a partir de animais. Demorou ainda algum tempo a surgir um anticoagulamente artificial, a varfarina, mas a heparina ainda hoje é usada. A história da heparina é interessante, mas a do cardiazol é muito mais. Tendo descoberto, em 1924, um processo para produzir tetrazóis, Karl-Friedrich Schmidt patenteou a possibilidade de obter moléculas com essa estrutura e criou de imediato uma companhia farmacêutica. Em 1926 a molécula já era testada como estimulante da respiração e fluxo sanguíneo e do SNC em geral. Rapidamente se tornou popular, sabendo-se, no entanto, que em excesso provocava convulsões. Em 1937 foi testada para um suposto tratamento de doentes mentais com terapia convulsiva. Esse tratamento era complicado e tinha efeitos secundários elevados, tendo sido substituido mais tarde pela terapia electroconvulsiva.
Só a partir dos anos 1950 foram desenvolvidos medicamentos relativamente eficazes para a esquizofrenia e outras doenças mentais, deixando a terapia convulsiva, o choque insulínico, a terapia malárica e a lobotomia como horrores históricos que espelham a impotência da medicina, antes dessa década, perante estas doenças. É de notar, a esse propósito, o conto Milagre em que Raquel depois de desenganada da medicina é levada à bruxa fica “curada” apenas a tempo de se atirar de uma fraga.

Há bastantes outros partos nos livros de Miguel Torga, um deles realizado por um padre com sucesso. Noutros, como no do conto anterior as coisas correm mal. Noutros ainda há nados-mortos, mortes prematuras, injeções, sofrimento. As coisas melhoraram muito desde essa altura. Ha também bastantes referências a proles extensas. A Mariana de Novos Contos da Montanha e a meretriz do Diário, por exemplo,
Coimbra, 28 de Abril de 1943
[...]
Profissão?
- Meretriz.
- Filhos?
- Oito.
- E todos desde que...
- Todos.
[...] Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco [...]
- Abortos?
- Nenhum.
[...]
O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada [...]
Será que estas seriam as mesmas personagens com o conhecimento dos contraceptivos orais modernos, disponibilizados pela química a partir dos anos 1960?

O Diário espelha também muito bem a evolução de atitudes perante o tabaco, um produto natural que faz muito mal por se ingerir o seu fumo cheio de produtos também naturais, infelizmente cancerígenos. Nos anos 1940 fazia tosse, nos anos 1980 era já claramente nocivo,
Coimbra, 15 de Abril de 1943 – Era preciso dizer-lhe que o fumo lhe fazia mal, lhe aumentava a tosse e o pigarro. Nos livros, pelo menos, vinha assim. Mas filosofei:
- Olhe, a vida, sem uma pitada de risco, não presta. [...] um diabo que se esconda no bolso do colete [...] Intoxica, mas é um regalo vê-lo depois desfeito em cinza, vencido à custa de um segundo da nossa vida.

Praia do Pedrógão, 23 de Agosto de 1981Os malefícios do tabaco. […] os do cigarro que concreto que toda a gente fuma. […] E pôs-me diante dos olhos as estatísticas, por mim, de resto, conhecidas. Simplesmente, eu navegava noutras águas. Nas da angústia humana, que desde os primórdios […] se socorreu de tóxicos que a acalmassem, pacificassem, fosse qual fosse o preço. […] Há dores mais profundas e pertinazes do que essas que se aliviam com aspirina.
Podemos encontrar aspectos químicos ainda mais subtis. A partir do conto A vindima, já muito analisado em termos linguísticos e sociológicos, podemos seguir um manancial de alusões química. A produção do vinho, as reações de transformação da glicose em etanol na produção do vinho. Os efeitos do álcool no mosto parcialmente fermentado,
Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. […]
Podemos seguir a química do amor, com as moléculas norepinefrina, serotonina e dopamina, que, sendo, palavras bonitas contribuem para a beleza do amor,
Ou porque trazia dentro o fogo da paixão a aquecê-la, ou inspirada pela beleza do cenário, a Lúcia punha o coração a voar […]
E chegar à química da tragédia e do sofrimento,
[…] quando daí a bocado chegou congestionado à vinha e deu a notícia do desastre, quase teve de berrar.
Foi então que a voz da Lúcia estacou de vez. Garroteada como a do namorado, a garganta fechou-se-lhe num espasmo de perpétua agonia.
Vitorino entrou dentro do tonel e já não saiu com vida, provavelmente devido a envenenamento com monóxido de carbono, mas também poderia ter sido devido a asfixia por dióxido de carbono, como acontece, por vezes, em poços. No primeiro caso, o monóxido de carbono, um gás que não tem uma densidade muito diferente do ar, mas que tem uma afinidade muito maior para a hemoglobina do que o oxigénio, adormece-se e morre-se – numa tragédia infelizmente ainda hoje repetida - sem o sentir, com a presença de concentrações mínimas de monóxido no ar. No segundo caso, o dióxido de carbono é um gás mais denso que o ar e morre-se de asfixia em locais em que este se acumule.

Há vários outros aspectos relacionáveis com a química e a ciência em Torga. Não é possível aqui enumerar todos. A bomba atómica é referida várias vezes no Diário. Também os plásticos e o petróleo são evocados, numa primeira perspectiva parecendo como críticas ao progresso, ou, lembrando uma passagem acima, como progresso não comprendido,
Santo António do Zaire, 22 de Maio de 1973 Petróleo! Escrevo a palavra, creio que pela primeira vez, e quase que me admiro de a não ver alastrar no papel numa grande nódoa negra e gordurosa. […] Contemporâneo do advento triunfal na cena do mundo desse pus untoso e fétido, extraído dos abscessos recônditos da terra, nunca consegui acomodá-lo harmoniosamente nos sentidos e no entendimento. Sei que onde ele aflora, nasce o oiro. Mas nem assim o amo. O ver do céu, há pouco, o primeiro poço a arder, perguntei a mim mesmo dentro o avião, apesar de o saber alimentado a gasolina, se aquela chama seria um lume de esperança ou um sinal de maldição. […] ia pensando na lição que ali estávamos a dar ao indígena. Em vez de lhe emprestarmos consciência racional à sua riqueza anímica, de lhe abrirmos o entendimento para as virtualidades da natureza que ama mas desaproveita, ensinamos-lhe a técnica de a destruir, de a violentar, de a esventrar e de a poluir finalmente com as fezes da sua própria alma queimada.
Pondo de parte a referência paternalista à "lição" ao indígena  já que todas as afirmações têm de ser vistas à luz do seu tempo e do seu espírito, trata-se de uma proposta claramente ecologista. Já sobre o petróleo: dádiva ou maldição? A resposta depende do nosso optimismo ou pessimismo, mas, como Torga bem refere, não podemos, por agora, passar sem ele.
S. Martinho de Anta, 26 de Março de 1978 - A feira. […] Acabou o artesanato, a expressão singular da atividade humana. Nem um barro modelado, nem uma manta tecida à mão, nem o ferro forjado. Plásticos a todos os níveis. E o mais trágico é que ninguém dá por isso. Ninguém parece lembrar-se sequer do latoeiro, do cesteiro, ou do tanoeiro […] Montes e montes de produtos incaracterísticos, feitos em série enfartam agora os compradores.
Mas afinal o que é criticado não é o material, agente inanimado, mas o seu uso. Montes de produtos incaracterísticos que não parecem ter alma ou calor humanos. A culpa não é dos plásticos é nossa!

Em Torga há percursos a explorar com um olhar químico, partindo da banalidade do dia-a-dia para o espanto perante o maravilhoso que nos rodeia. 

2 comentários:

Rui Baptista disse...

Muito me emocionei ao ler este texto tão humano da química embrenhada em caminhos da literatura percorridos pelo seu autor nesta maravilhosa palestra sobre Miguel Torga.

Sérgio Rodrigues disse...

Tenho andado tão ocupado com outras coisas que nem tinha notado o seu agradável e simpático comentário. Bem haja!

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